Nenhuma
estrada permite, por enquanto, fazer o circuito da ria de Aveiro,
por não estar construída ainda a projectada ponte entre a Béstida
e a Torreira e não haver mais do que simples caminhos entre esta e S.
Jacinto. No entanto, alguns interessantes aspectos da ria podem
colher-se seguindo pelo ramal da E.N. n.º 40-2.ª, até Ílhavo e Vagos;
pela 32-2.ª, até Béstida; pela 28-2.ª, até Ovar. Além desta rede
de estradas, duas linhas férreas, a do Norte e a do Vale do
Vouga, desvendam típicas paisagens: a primeira, ao longo da orla
ocidental da ria (entre Cacia e Estarreja); e a segunda, na zona
de transição da chamada Ribeira para as formosas antecâmaras da
Beira Serrana, que são a Várzea de Águeda e a Macinhata do Vouga.
1.º À Barra e à Costa Nova
(8,5 km. Oeste até à Barra; 11,2 km Sudoeste à Costa Nova, por um ramal
da E.N. n.º 40-2.ª, denominada a estrada da Barra).
Passeio recomendado.
A estrada começa na pequena ponte da Dobadoura e,
no seu primeiro troço, é acompanhada à direita, pelo Canal das
Pirâmides. Passadas estas, obliqua à esquerda para seguir, orlada de
tamargueiras, ao longo da Cale da Vila (ou da Cidade).
O cenário, todo linhas horizontais, que brandamente ronda
diante dos olhos do viandante, é o mesmo que se contempla de barco,
seguindo pela Cale da Vila. A cada momento passa na estrada uma
bicicleta, ou uma varina de passo ligeiro com a pequena canastra do
peixe à cabeça sobre o gracioso chapelete. De um lado e outro, largos
caixilhos de água. Se estamos no Estio, os tabuleiros líquidos das
salinas, muito nítidos e brilhantes, estremecem sob o sol, como
rectângulos de âmbar. À esquerda, mais amplo, no primeiro plano da vista
sobre os longes de Verdemilho e Ílhavo, espraia-se a superfície
cismática do Lago do Paraíso.
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Acerca desta suave paisagem, deixou ainda Luís de Magalhães uma página
que merece, pela sua beleza, ser transcrita:
«Quem, por uma calma e luminosa manhã de Agosto ou
Setembro, deixar a cidade, seguindo a estrada da Barra – essa estrada
singular, ladeada de água, com a ria por uma banda e pela outra as
marinhas – e parando a meio caminho, pelas alturas do Lago do Paraíso,
circunvagar em torno a vista, terá a larga visão panorâmica duma das
mais admiráveis e soberbas paisagens do nosso País. Voltando-se para a
cidade, olhando por sobre os tabuleiros das marinhas, de águas paradas e
polidas como placas rectangulares de vidro, vê-la-á estender-se numa
linha de casaria acotovelada – traços brancos de paredes sob traços
vermelhos de telhados – acima da qual se erguem perfis de torres ou
altos muros de edifícios públicos e de fábricas. Depois, num segundo
plano, duma extensa gama de verdes, descobrirá os campos, os imensos
milharais, as massas do arvoredo – os choupos e salgueiros que formam as
cortinas marginais do Vouga, os pinheiros sombrios, os velhos álamos da
estrada de Ílhavo, os tufos isolados dos esguios eucaliptos. Dentre essa
verdura, surgir-lhe-á a mescla branca das povoações circunvizinhas,
aninhadas à sombra dos seus campanários – a Vista Alegre, Ílhavo,
Verdemilho, Esgueira, Sarrazola e Cacia, e depois, já ao norte do Vouga,
Angeja, Fermelã, Salreu, Estarreja e a vasta e longa tira da Murtosa,
parecendo uma grande cidade distante. E para lá, enfim, de toda esta
zona verdejante e apenas levemente ondulada, erguer-se-á ante a sua
vista, no esplendor duma imaterialização luminosa, num traço longo e
caprichoso, que se diria dado com uma pincelada de ametistas e safiras
liquefeitas, a magnífica linha orográfica das cordilheiras da Beira: as
serranias majestosas de Arouca, das Talhadas e do Caramulo, com o seu
pico central, e, mais para o sul, a avançada do Buçaco e os perfis vagos
da Estrela e da Lousã, esbatendo-se diafanamente no céu de lápis-Iazúli.
E voltando-se então, verá as águas mansas da extensíssima ria fulgurando
de todos os lados; e, entre elas, as salinas reticuladas pelos
tabuleiros em evaporação, com os seus montes cónicos de sal novo dando a
impressão dum largo acampamento de tendas imaculadamente brancas,
espalhadas a perder de vista pela vastidão dos polders. Para o
sul, terá o braço da ria que segue para Ílhavo e Vagos e que margina os
pinhais e campos arenosos da Gafanha; a seguir, em sentido inverso, o
outro braço que se alonga para as Duas Águas e vai dar à Barra, e de
onde emergem as mastreações das chalupas e iates ancorados; ao poente, a
linha fulva das dunas da costa, vaporizadas pela tremulina; e para o
norte a imensa ria da Torreira, onde o arquipélago das ilhas baixas,
formadas pelos aluviões, a Testada, Amoroso, a dos Ovos, a das Gaivotas,
Monte Farinha, verdejam nas suas extensas praias de junco. É nessa
vastidão de águas tranquilas, nesse gigantesco pólipo fluvial que por
todos os lados estende os seus fluidos tentáculos, entre a rede confusa
dos esteiros e canais, bordados de tamargueiras e de caniços, velas sem
conta, velas às dezenas, às centenas, vão, vêm, bolinando em todos os
sentidos, e pondo no verde das terras ou no azul das águas a doçura do
seu deslizar silencioso e a graça da sua silhueta branca.»
Ao transpor-se o Canal de Vagos pela Ponte da Gafanha ou
do Esteiro (de 160 metros de comprimento), avistam-se, como já
apontámos, à direita, os estaleiros dos navios de pesca longínqua e, em
certas quadras, a própria frota
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bacalhoeira. Entra-se na parte Norte das antigas dunas da (3,5 km.)
Gafanha, hoje transformadas em uma populosa e produtiva zona
agrícola.
(Cfr. E. de Magalhães Mesquita, Apontamentos
acerca da região litoral compreendida entre as lagoas de Mira e de
Esmoriz – Dunas de Aveiro (in Com. da Dir. dos Trab. Geol. Port.
III), 1895, pág. 24-33;
P.e João Vieira Resende,
Monografia da Gafanha, 1936-38).
Antes do séc. XIX, a
Gafanha
era, segundo a expressão do P.e Resende, um longo areal deserto,
acidentado de algumas lombas de dunas móveis, coberto apenas de
charnecas e de charcos e só de onde a onde salpicada de juncais e
pinhais raquíticos. O esforço do lavrador barqueiro das margens da ria,
servindo-se dos moliços fertilizantes, fez, no decurso desse século, de
grande parte dessa zona marinha, uma zona agrícola, que abastece
actualmente de cereais (milho e cevada), batata, hortaliças e legumes os
mercados de Aveiro, Ílhavo e Vagos, sendo das regiões mais produtivas do
distrito.
RIA DE AVEIRO – A FORMOSA PAISAGEM DAS SALINAS
Considera-se, em geral, como limite Sul da Gafanha, a
linha que vai do Poço da Cruz a Vagos, Nela se contam diversas
localidades, como seja a Gafanha do Paredão ou da Cambeia,
Gafanha de Aquém, Gafanha da Boa Hora, Gafanha dos
Caseiros ou do Carmo, Gafanha da Gramata ou da
Encarnação. A parte que atravessamos chama-se Gafanha da Cale da
Vila ou da Nazaré.
Um dos fenómenos singulares que se observam na Gafanha
são as chuvas de areia que se produzem com as nortadas
(ventos de Norte-Noroeste) e que tanto têm contribuído para o
assoreamento da ria (pág. 501). Outro é o dos olheiros, pequenos
sorvedouros originados
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pela higroscopicidade hibernal, por vezes com mais de 1 metro de
profundidade, e que as areias acumuladas pelo vento dissimulam sob os
passos do viandante constituindo um sério risco para o trânsito de
certas paragens. «Somente, o instinto dos animais ou a longa prática dos
habitantes da Gafanha – garante Magalhães Mesquita – consegue furtá-los
ao perigo dos olheiros».
A região das dunas estende-se da Romelha ao Poço da Cruz,
orlada a Oeste e Este por uma faixa de terrenos aráveis. Ao Sul, do
Seixo aos Palheiros de Mira, encontra-se a grande planície denominada a
Videira (600 hectares), onde são as chamadas lagoas de Mira
(pág. 123). Além da importante obra de recobertura florestal das
extensas dunas de Mira, importa apreciar ao Sul da Gafanha, na
Videira do Sul, o viveiro de carpas, criado há pouco tempo pelos
Serviços Florestais para povoamento das águas lagunares da região (pág.
543). Na própria Gafanha tem-se feito, desde 1888, uma intensa campanha
de arborização. A primeira sementeira de penisco lançou-se num baldio de
400 hectares cedido ao Estado em 1887 pela Câmara de Ílhavo. É hoje o
chamado Pinhal Velho. Em 1916 foram cedidos aos Serviços
Florestais, para o mesmo fim, os restantes baldios.
A par da agricultura e da arborização, têm importância,
na Gafanha, as oficinas de construção e reparações navais e a seca de
bacalhau. De 1916 a 1938 foram construídos 47 navios com a tonelagem
total de 18 401 toneladas. A perícia e competência, embora empíricas,
dos mestres aveirenses construtores de navios é reconhecida por
engenheiros da especialidade, e deve-se em parte a aptidões inatas
aliadas à experiência transmitidas em algumas famílias de geração em
geração. Destacam-se, nos nossos dias, os mestres Mónicas, de cujos
estaleiros têm saído alguns dos melhores navios empregados na pesca
longínqua. As instalações ligadas com esta pesca estão situadas junto do
canal marítimo de acesso e ocupam uma vasta área. Aveiro detém o
primeiro lugar entre os portos de pesca marítima longínqua portuguesa e
o segundo lugar como porto de pesca costeira.
Em 1939 possuía uma frota bacalhoeira de 19 navios, com a
tonelagem total de 8075 toneladas, tripulada por 36 oficiais e 795
marinheiros e pescadores. A pesca do bacalhau faz-se nos bancos da Terra
Nova e, a partir de 1931, na Gronelândia.
«As areias da Gafanha são de grande importância para a
história da Ria». No parecer do autor desta expressão, o geólogo da
região aveirense, dr. Alberto Souto, as enormes acumulações arenosas da
Gafanha seriam, como as situadas a Norte da Ria entre os lados do
Bunheiro e os campos de Avanca, os resíduos duma primeira fase da
formação da laguna, espécie de cabedelos anteriores ao aparecimento do
cordão litoral que hoje separa a Ria do mar. (Cf. Alberto Souto,
Origens da ria de Aveiro, 1923, pág. 96-112).
«O mar da areia, com os seus vagalhões que tremem sob a
luz violenta e o calor escaldante, fumegando e fazendo miragens,
perde-se para o sul até à muralha assoreada do Cabo Mondego...»
Diz um erudito dos princípios deste século (Marques
Gomes) que uma das povoadoras do areal da Gafanha foi a centenária Joana
da Gramata que em vida chegou a ver «reunidos à sua volta cento e
quarenta netos».
Na Gafanha, destaca-se do alinhamento rectilíneo e longo
da estrada, a 4,3 km., uma estrada municipal que, pela esquerda, leva a
Ílhavo, e a seguir, 5,7 km., para a igreja da Gafanha da Nazaré (na
povoação há Posto Telefónico) – 5,8 km., estrada municipal à direita,
para a Ria, – 5,9 km., cruzamento com uma estrada municipal para o Sul.
A estrada é quase continuamente
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bordada de moradias singelas e caiadas, de adobes. As mulheres trabalham
nos campos ou nas secas do bacalhau; os homens, por seu turno, andam na
apanha do moliço na ria ou em volta do arcaboiço dos navios em
construção.
– 6,4 km., à esquerda, estrada florestal para a mata
nacional. Ao sair da Gafanha (6,6 km.) entra-se de novo em plena ria. A
estrada é uma pista entre duas toalhas de água. À esquerda, o braço ou
ria de Mira; à direita, a embocadura do canal de Oudinot (com uma das
suas margens agradavelmente ajardinada) e, para além da ilhota arenosa
da Mó do Meio, a extensa superfície do Canal de S. Jacinto.
As duas pontes, a das (6,7 km.) Portas de Água (138 m.) e a (6,9
km.) da Cambeia (46 m.), lançadas sobre o braço de Mira, levam ao
(7,4 km.) Forte da Barra, situado na Mó do Meio. A torre que ali
se levanta foi construída (em 1840, sob a direcção do eng.º Oliveira
Nunes) para fazer, antes da edificação do farol, os sinais da pilotagem.
RIA DE AVEIRO – VELEIROS DE PESCA E ESTALEIROS DA GAFANHA
Em redor do forte, estabeleceu-se uma pequena povoação
junto duma modesta praia de banhos, a Praia do Forte. Há perto
grandes bancos de moluscos, sobretudo de berbigão. Da torre do Forte,
airoso panorama. Barca de passagem para S. Jacinto.
Na última sexta-feira de Setembro, festas em volta da
ermida do Senhor dos Navegantes.
– 7,5 km., transpõe-se o braço de Mira na ponte do
Paredão (173 metros). Passadas algumas dezenas de metros, uma
estrada municipal que diverge à esquerda permitir-nos-ia ir directamente
à Costa Nova. Seguindo-se em frente,
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divisa-se o moderno Canal da Barra, com os molhes recentemente
construídos do Norte e do Sul e o esporão intermediário, que disciplina
os fluxos e refluxos das marés tendo por base o corredor da Mó do Meio.
Prosseguindo, iremos ter à (8,3 km.) ...
(continua depois das imagens)
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