Já por várias vezes, nos dois volumes
anteriores deste Guia, se fez referência às obras chamadas alfarge,
que, conforme se disse no vol. I, caracterizaram a arte decorativa
peninsular, e cujo inventário, em Portugal foi iniciado por Joaquim de
Vasconcelos (vol. I, pág. 113). Segundo este historiador da arte
nacional, o «lavor do alfarge ou almoçárabe domina em
Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a
conquista árabe, até ao primeiro terço do séc. XVIII». É um
revestimento interior, como o fresco e o mosaico, mas representando
uma técnica especial, aplicada a todo o género de construção e de
decoração interiores, técnica original, essencialmente mourisca, e que
aos peninsulares foi ensinada por mestres mouriscos. Por isso se chama,
indiferentemente, ao mesmo tempo que árabe, mudéjar ou mudégar,
moçárabe, mourisca, e ainda mogrebina. Joaquim de Vasconcelos
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propõe que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço
(em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicatado. A
etimologia que se dava à palavra alfarje ou alfarge (como
também se escreve; o vocabulário oficial não regista aquele), era
al-farash, que alguns traduziam por assoalhado.
Segundo o
exímio arabista Dr. David Lopes, a melhor etimologia teria sido
recentemente proposta pelo Dr. Pedro Machado (“Boletim de Filologia”,
tomo VI, 1939): o termo viria de al-harg, cuja tradução, para o
Dictionnaire arabe-français de Beaussier, seria «aparelho,
engrenagem, equipagem, enfeites, bordaduras, guarnição de passamanaria».
Quanto à alxamia que J. e Vasconcelos também regista, parece ser
vocábulo mal formado, por ser tendência no árabe assimilar-se o I
do artigo ao x do termo acompanhante, devendo pois, no dizer do
prof. David Lopes, reduzir-se a axamia. A título de curiosidade
diremos que alhamia é o nome que se dá segundo o Baedeker (Espagne
et Portugal, 2.ª ed., Leipzig,
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1908, pág. 386), a uma pequena antecâmara do Alcácer de Sevilha, forrada
de velhos pavimentos e onde se rasgam janelas de ajimez. Pelo que
se refere a almoçárabes, também empregado por J. de Vasconcelos,
vemo-lo igualmente no Baedeker (ed. prefaciada por Justi acima citado,
pág. 385); ao descrever o «salão dos Embaixadores» no alcácer de
Sevilha, fala-nos ele de «la large frise d'arcatures surmontée d'un
bandeau d'almoçarabes», e acrescenta, entre parênteses: «ornements
mauresques».
No que toca à definição de alfarge,
Caldas Aulete apresenta esta: «estilo peninsular de artes
decorativas, caracterizado pela multiplicidade de lavores.» Tal
definição não é rigorosa, pois se poderia aplicar com igual propriedade,
quase indistintamente, a todas as espécies de estilo decorativo, embora
a multiplicidade dos planos, dos desenhos, das cores, o entrecruzamento
e a complexidade dos ornatos, seja realmente uma das distintivas do
chamado estilo árabe ou mourisco. Em todo o caso, quer-nos parecer que o
termo se aplica mais especialmente à carpintaria artística, embora o
mencionado historiador de arte pareça enjeitar tal particularização. E
todavia é ele próprio que, citando, sem menção de discrepância, o douto
escritor Mariátegui, como diz, autor dum glossário ao grande tratado de
carpintaria de Diego de Arenas, reproduz as seguintes definições de
lavores moçárabes apresentadas por esse autor; «labores en forma
de lazo con que se adornan los paños, racimos, cubos, tirantes, etc., de
los techos de alfarge: moçarabes ó mozarabes, llamaban a los
techos de maderas doradas que después se llamó artesonado». Podemos
portanto presumir que é sobretudo aos tectos de madeira de lavor
mourisco que se aplica mais especialmente o nome de alfarge, como
aliás é de uso quase geral na Península, e que este estilo de decoração
seria caracterizado essencialmente pelo entrelaçamento das formas
geométricas e a policromia.
Convém notar que artesonados ou
artesoados se pode dizer, em geral, dos tectos apainelados ou
de caixotões (à caissons, como se diz em francês), mas
aplica-se mais especialmente o termo também às «voutes mauresques à
alvéoles», como se exprime o Baedeker. De aqui deriva, evidentemente,
que nem todo o tecto apainelado ou de caixotões se pode dizer um tecto
de alfarge. Caldas Aulete, no seu dicionário, identifica artesão
com ornato mourisco, desde que o define como «adorno de figura quadrada
ou pentagonal [por que não, mais geralmente, poligonal?], rodeado de
molduras, às vezes com uma floração no centro, que ordinariamente se
coloca nos tectos, abóbadas e voltas de arco». Hoje emprega-se, porém,
mais correntemente, artesão como sinónimo de nervura (nas abóbadas) ou
ogiva. «Moldura ou faixa em relevo das abóbadas góticas», é como o
define a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
«Erradamente – acrescenta – há quem qualifique de artesões os florões ou
adornos pendentes das abóbadas, no cruzamento das nervuras. Os
artesões são as próprias nervuras». Assim, dizer abóbada artesoada
ou nervada é a mesma coisa. (Tábua de forro rincoada ou de rincão, na
linguagem comum da carpintaria, é aquela que apresenta ranhuras que
servem, quando aplicadas em tectos, para quebrar a monotonia da simples
lisura).
Em geral, os principais elementos
construtivos e decorativos dos tectos artísticos, propriamente ditos de
alfarge, são o traçado poligonal e alveolar, a policromia e o
emprego de fechos com pingentes. Uma grande enciclopédia técnica e
prática dessa arte moçárabe teria sido feita no séc. XVII: seria o
compêndio de Diego Lopez de Arenas, intitulado Carpinteria de lo
blanco y tratado de alarifes, cuja 1.ª ed. é de 1633; 2.ª de 1727;
3.ª de 1867; 4.ª de 1912) e cuja influência sobre as artes decorativas
da Península foi grande.
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A admiração que tal compêndio suscitou entre os artistas de carpintaria
espanhola traduz-se de um modo sugestivo no hiperbólico panegírico que
um desses artistas lhe dedicou:
|
Tan ciertas reglas nos das,
que juzgo Diego de Arenas,
no hay quién las dé tan buenas
con la regla y el compás.
Y tan adelante estás. |
En todo lo que divides,
Y en lo que trazas y mides
Das muestras, que eres tan
diestro
Que pudieras ser Maestro
De Archimedes y de Euclides. |
|
|
Dos tectos mudejares, quase todos do séc.
XV, que se conservam em Espanha, são sobretudo notáveis os do Alhambra
de Granada, no Alcácer dos Reis Mouros, de «abóbadas
estalactíticas ou alveoladas», como na «salla de los Reyes», e sobretudo
na das «Duas Irmãs», considerada como a maior de todas deste género, com
5000 alvéolos, todos diferentes uns dos outros; da Casa de Mesa em
Toledo; em Guadalajara, o da sala das Linhagens, no palácio dos
Duques do Infantado; em Saragoça, os das salas do Castillo de la
Aljafería, sobretudo do «grande salão»; e, em Sevilha, os de algumas
salas do Alcácer como a dos Embaixadores, e da Casa de Pilatos,
esta já dos princípios do séc. XVI.
Dos tectos mouriscos portugueses,
exemplares notáveis da arte de alfarge, citamos já o da chamada «sala
árabe» da Madre de Deus, em Lisboa, (vol. I, pág. 318), e os da capela e
sala dos Brasões e dos Cisnes do paço de Sintra (págs. 499, 501, 502,
507, 509). Neste vol. III faremos referência a alguns tectos de Coimbra,
como o que ainda se conserva na Casa de Sub-Ripas e os que hoje se
guardam no Museu Machado de Castro, entre os quais se destaca o do
antigo coro da Sé Velha, datado de 1477. No vol. IV encontraremos ainda
outros exemplares interessantíssimos em Caminha e Bragança.
Embora seja para supor a influência da
tradição mourisca e da sua técnica na construção e na decoração de
alguns tectos que Joaquim de Vasconcelos nos cita, supomos haver exagero
da sua parte inserir na categoria de obras de alfarge os tectos de
Lamego (casa Padilha), Seia (Mota Veiga) e de outras terras da Beira
(entre os quais, a admitir tal extensão do termo, deveriam ser incluídos
os de Góis, Mangualde e Oliveira do Conde) ainda que alguns sejam
realmente sumptuosos e ricos de cor. Joaquim de Vasconcelos fala em
exemplares notáveis que viu em Viseu, Guarda, Coimbra, Braga, Tagilde,
Amarante, Bragança (que não é naturalmente o da igreja de S. Bento, esse
na realidade de alfarge alveolar e policromado). Chega mesmo a
acrescentar: «Há obra e alfarge em quase todas as igrejas e capelas
semeadas pelas duas vertentes da serra da Estrela (vales do Mondego e do
Zêzere)»; devendo em seu parecer invocar-se a abundância que na região,
em outros tempos, houve de boa madeira de castanho, para se compreender
a enraizada tradição da arte de carpinteiro decorador em toda a Beira.
Renunciando à excessiva generalização do
emprego da noção de alfarge – que este meritório Investigador e
valorizador de tantas expressões de arte nacional usa na classificação
das obras de carpintaria artística, não queremos deixar de transcrever
neste lugar as seguintes considerações de Joaquim de Vasconcelos, que
reputamos interessantes:
«O alfarge – diz ele, num dos capítulos
das Notas sobre Portugal dedicado às artes decorativas
portuguesas – é uma arte complexa com processos técnicos especiais,
complexa, porque abrange, no sistema do traçado geométrico, não só a
carpintaria, mas todo o mobiliário, o azulejo, o lavor variadíssimo do
estuque, enfim, grande parte da obra de ferro e aço, secções importantes
da cerâmica, da ourivesaria e da obra esmaltada. No sentido restrito da
carpintaria de construção que prevalece em toda a habitação humana, é a
arte que ensina a traçar, enlaçar, embutir as listas,
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faixas, fitas ou bandas, que ora cobrem de figuras estreladas os
aposentos interiores, em superfície corrida ou ininterrupta (alisares,
tabuleiros das paredes, frisos, nichos, etc.), ora pendem dos tectos
formando estalactites; é a arte da alxamia, que produz os adornos
pendentes de desenho poligonal; é, enfim, a arte que criou as cúpulas de
construção alveolar, as feéricas armações que recordam as
cintilações do céu estrelado. Se houve arte decorativa, original,
peninsular, e por isso também portuguesa, foi a do alfarge. Desde
1881 andamos registando pacientemente e desenhando as relíquias do
alfarge, da arte moçárabe, entre nós. São ainda numerosas e muito
notáveis – e a sua técnica perdura ainda.» «Por quase todas as
freguesias da Beira, desde os pequenos templos da 1.ª e 2.ª metade do
séc. XVII e princípios do séc. XVIII, desde a laçaria mais simples,
formada de polígonos enlaçados ou sobrepostos e armados sobre outros
pares de tirantes (réguas) paralelos, até à deslumbrante armação
pseudo-gótica de 1711, do antigo palácio dos Peixotos-Padilhas, em
Lamego, temos uma série ininterrupta de obras de arte que documentam de
um modo brilhante, surpreendente, a vitalidade da tradição moçárabe em
Portugal, o vigor ingénito de um ofício privilegiado, a tenacidade, o
método, a virtude, em suma, de um ensino que resiste a todas as
influências das modas exóticas importadas. O carpinteiro português quis
ser e foi sempre, até meados do séc. XVIII, fiel depositário de uma arte
ancestral digna de figurar ao lado e em concorrência com os primeiros
modelos estrangeiros.»
Este trecho de inventário de um dos mais
autorizados e probos indagadores tem essencialmente o mérito de provar
ao caminhante de gosto, particularmente interessado na apreciação de
obras de carpintaria artística, que a região descrita neste volume, não
sendo, de modo algum, possuidora de um espólio de tão alto valor como
são algumas províncias de Espanha, contém no entanto bastantes
testemunhos merecedores de procura intencional.
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As expressões de alfarge, genuínas, acentuamos, são, entre nós,
raras. Mas não são menos dignas de interesse as obras de revestimento de
madeira de outras feições. Os tectos artesoados, na cor natural da
madeira, de sumptuoso relevo da casa Padilha (Lamego) ou Albergaria
(Oliveira do Conde) não representam menos um elevado sentido decorativo
dos interiores do que o tecto policromado da Sala dos Capelos. Uns e
outros exprimem um momento de elevado culto artístico da casa, que tão
vivo foi entre nós, desde o séc. XV ao XVIII.
Depois do séc. XVIII, o custo dos
artesoados fez com que os caixotões de madeira fossem substituídos pelos
estuques, em que predominam como decorações a combinação da flora e da
fauna mitológica, alternando muitas vezes com a figura humana. Assim se
foi obliterando a tradição dos tectos de madeira.
Bibliografia
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Iglesias mozarábes. Arte español de los siglos IX a Xl.
Lamperez y Romea,
História de Ia arquitectura cristiana en España, 1912.
J. Pijoan,
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EI arte de la laceria, 1904.
Joaquim de Vasconcelos,
Arte decorativa portuguesa (in Notas sobre Portugal, vol.
II. pág.1 79, 1909).
P. Ricard,
Pour comprendre l'art musulman, Hachette, 1924.
F. J. Sanchez-Canton,
Fuentes literários para el estúdio del arte español, 1923.
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Mobiliário artístico português (elementos para a sua história),
1924, pág. 57.
José F. Ràfols,
Techumbres y artesonados españoles, 1926.
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(1)
– De um rascunho, do espólio de RAUL PROENÇA.
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