Ao decidirmos transcrever neste Boletim Comemorativo uma
página do Dr. David Cristo − primeiro e já reconduzido Presidente da
Mesa dos Encontros das Direcções dos BOMBEIROS DO DISTRITO DE AVEIRO e,
agora, Presidente também da Comissão Central Organizadora do
CONGRESSO-70 – moveram-nos dois propósitos: divulgar, por esta forma,
levando ao conhecimento de todos os Bombeiros, reunidos em magna
assembleia, o magnífico escrito que tão expressivamente lhes respeita,
dado inicialmente à estampa, sob a sugestiva epígrafe − «Um escândalo!»,
em
HUMANITÁRIA (1957); e prestar justíssima e sincera homenagem ao
bombeiro sem farda − assim o Dr. David Cristo costuma intitular-se −,
mas nem por isso menos Bombeiro do que qualquer dos mais prestigiosos e
galardoados Bombeiros portugueses, além do mais pelo contagiante
entusiasmo com que, desde o primeiro minuto em que se começou a falar da
efectivação em Aveiro do XIX CONGRESSO, procurou mentalizar a todos,
como só ele sabe, no sentido de que o importante acontecimento venha a
constituir uma realização séria, válida e proveitosa, com vista ao tão
desejado fomento, valorização e dignificação dos Bombeiros de Portugal.
A REDACÇÃO DO BOLETIM
Ao primeiro
silvo da sereia, lúgubre na quietude sonolenta daquela manhã de Verão, o
bombeiro saltou da cama, como se percutido por mola gigantesca, e correu
– nu! − para o seu quartel.
Atravessou as ruas do bairro, ali na Beira-Mar, nu! − sob
as vistas escandalizadas do mulherio, que sempre, em emergências
sinistras, assoma às portas «p'ra saber onde é o fogo».
Um escândalo!
Quando me relataram a insólita ocorrência, visionei o
piloso varão direito às bombas, lesto como Mercúrio, e tão absorto em
seu humanitário desvario que de todo se esquecera de que os seus pés
poisavam nesta miseranda terra, exigente, mesmo para os deuses, quando
menos, do resguardo da parra edénica.
E não contive uma gargalhada − essa gargalhada vil que se
gera na epiderme das convenções, como borbulhaço de recôndito ácaro.
Pensei depois que talvez Freud não risse. E pensei ainda
que Freud leva, ao comum dos mortais, a vantagem de não ter bom-senso;
perfura desapiedadamente a estratificada crosta de milenárias
hipocrisias e de sórdidos interesses, rasga as pesadas roupagens tecidas
com o fio de ancestralidades a reflectir conveniências no falso dourado
de européis − e procura, nas fundas radículas do homem, o homem
verdadeiro, santo ou demónio, águia ou gusano, seixo ou universo. E,
para tanto, cruel mas sincero, Freud desnuda o homem.
Nauseamo-nos ao ver, por feitiços do sábio, surgir de
rescendentes
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púrpuras hediondas deformações? Deslumbramo-nos quando nos sai Apolo dum
gibão esfarrapado? − É que os nossos olhos não têm agudeza nem coragem
para contemplar a Verdade sem véus; nem são os olhos ingénuos daquela
criança da lenda que denunciou à multidão circunspecta e formal a nudez
bojuda do seu rei.
Freud e o menino não ririam, como eu ri estupidamente, do
bombeiro que ia nu, nem se escandalizariam como as mulheres pudibundas;
antes pensavam que a abnegação do nosso homem − tão espontânea que, ao
primeiro grito de angústia, logo voou, num salto colossal, por sobre a
sólida montanha de venerados pejos − só tem olhos para as tragédias
alheias, e tão exclusivamente postos nas ansiedades do seu irmão em
perigo, que não dão conta de que a folha de parra ficou esquecida no
arcaz das decências.
A Mitologia fez os deuses como deuses; mas os homens
vestiram o coração dos deuses da farrapada humana. Daí não sabermos
lobrigar o altruísmo quando desadornado dos trapos pomposos deste mundo
feito aderecista de comediantes.
Nos setenta e cinco anos de existência da benemerente
Associação
Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro,
somam-se, feitas as contas, mais de vinte e sete mil dias e muito para
cima de meio milhão de horas de permanente vigília − inacreditável
contributo de várias gerações de homens tão despidos de interesses que,
em sua desnuda devoção humana, correm para os perigos onde periga uma
vida, esquecidos da sua própria vida; e correm tão velozmente que, às
vezes, lhes sucede deixarem em casa, denvolta com as suas esquecidas
roupas de pobres, a viuvez e a orfandade, lutos de humildes, sem glória
− porque o Mundo, que ri do bombeiro que vai nu, não descobriu ainda
para tão louco heroísmo aquelas faustosas roupagens com que veste, de
comum, as fátuas vaidades dos grandes...
DAVID CRISTO
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