AO
primeiro silvo da sereia, lúgubre na quietude sonolenta daquela manhã de
Verão, o bombeiro saltou da cama, como se percutido por gigantesca mola,
e correu — nu!!! — para o seu quartel.
Atravessou as ruas do
bairro, ali da Beira-mar, — nu!!! — sob as vistas escandalizadas do
mulherio, que sempre, em emergências sinistras, assoma às portas p'ra
saber onde é o fogo.
Um escândalo!
Quando me relataram a
insólita ocorrência, visionei o piloso varão direito às bombas, lesto
como Mercúrio, e tão absorto em seu humanitário desvario que de tojo se
esquecera de que os seus pés poisavam nesta miseranda terra, exigente,
mesmo para os deuses, quando menos, do resguardo da parra edénica.
E não contive uma
gargalhada — essa gargalhada vil que se gera na epiderme das convenções,
como borbulhaço de recôndito ácaro.
Pensei depois que
talvez Freud não risse. E pensei ainda que Freud leva, ao comum dos
mortais, a vantagem de não ter bom-senso: perfura desapiedadamente a
estratificada crosta de milenárias hipocrisias e de sórdidos interesses,
rasga as pesadas roupagens tecidas com o fio de ancestralidades a
reflectir conveniências no falso dourado de ouropeis — e procura, nas
fundas radículas do homem, o homem verdadeiro, santo ou demónio, águia
ou gusano, seixo ou universo. E, para tanto, cruel mas sincero, Freud
desnuda o homem.
Nauseamo-nos ao ver,
por feitiços do sábio, surgir de rescendentes púrpuras hediondas
deformações? Deslumbramo-nos quando nos surge Apolo dum gibão
esfarrapado? — É que os nossos olhos não têm agudeza nem coragem para
contemplar a Verdade sem véus; nem são os olhos ingénuos daquela criança
da lenda que denunciou à multidão circunspecta e formal a nudez bojuda
do seu rei.
Freud e o menino não
ririam, como eu ri estupidamente, do bombeiro que ia nu, nem se
escandalizariam como as mulheres pudibundas; antes pensavam que a
abnegação do nosso homem — tão espontânea que, ao primeiro grito de
angústia, logo voou, num gigantesco salto, por sobre
/ 38 /
a sólida montanha de venerados pejos — só tem olhos para as tragédias
alheias, e tão exclusivamente postos nas ansiedades do seu irmão em
perigo que não dão conta de que a folha de parra ficou esquecida no
arcaz das decências.
A Mitologia fez os
deuses como deuses; mas os homens vestiram o coração dos deuses da
farrapada humana. Daí não sabermos lobrigar o altruísmo, quando
desadornado dos trapos pomposos deste mundo feito aderecista de
comediantes.
Nos setenta e cinco
anos de existência da benemerente Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários de Aveiro, somam-se, feitas as contas, mais de vinte e sete
mil dias e muito para cima de meio milhão de horas de permanente vigília
— inacreditável contributo de várias gerações de homens tão despidos de
interesses que, em sua desnuda devoção humana, correm para os perigos
onde periga uma vida, esquecidos da sua própria vida; e correm tão
velozmente que, às vezes, lhes sucede deixarem em casa, denvolta com as
suas esquecidas roupas de pobres, a viuvez e a orfandade, lutos de
humildes, sem glória — porque o Mundo, que ri do bombeiro que vai nu,
não descobriu ainda para tão louco heroísmo aquelas faustosas roupagens
com que veste, de comum, as fátuas vaidades dos grandes...
DAVID CRISTO |