Muito se falou e
escreveu, há não muitos anos, sobre o estado calamitoso a que chegaram
os cais da cidade, em consequência de dragagens efectuadas.
Era uma dor de
alma ver aquele espectáculo degradante ali mesmo no nosso Canal Central,
que deveria ser, sempre, o cartão de visita de Aveiro. Durante anos,
manteve-se essa nódoa na cidade, nada abonatória dos brios de que sempre
a nossa terra se arrogou. Felizmente que a situação se remediou; melhor:
se tem vindo a remediar. Mas ainda andam obras pelo Canal das Pirâmides;
e o Cais do Alboi, desde que ruiu a sua margem sul, continua a
apresentar-se com um aspecto digno de país do terceiro mundo.
Sabemos que são
trabalhos morosos, muito sensíveis e muito dispendiosos. E, mais do que
tudo isso, de manutenção recorrente. Um dia destes virei de novo a
terreiro, com umas fotografias que há dias colhi ali mesmo em frente ao
edifício da ex-Capitania, bem reveladoras da já evidente necessidade de
novas dragagens, não só aí mas também ao longo de todo o canal do Cojo,
ou da Fonte Nova como agora se lhe chama, e, principalmente, no espelho
de água onde o Hotel Meliá se deveria sempre remirar, ali para os lados
do Centro de Congressos.
O que passo a
narrar refere-se ao tema. Só que com um salto no tempo. Um salto de
centúria.
Com efeito,
perfizeram-se 100 anos sobre a data em que Adolfo Loureiro,
Inspector-Geral das Obras Públicas do Reino, deu à estampa, em edição da
Imprensa Nacional, uma curiosíssima separata de "Os Portos Marítimos de
Portugal e Ilhas Adjacentes", referente ao nosso porto de Aveiro.
De páginas 71 a 74
da referida separata, fala-nos o senhor inspector das vicissitudes da
reconstrução dos cais da nossa cidade. E começa assim:
«A cidade de
Aveiro tem acesso do mar por um belo canal, limitado lateralmente por
muros de alvenaria argamassados, com guardas de cantaria. Neste canal
desembocam outros esteiros e valas, que passam sob pontes de alvenaria,
que mantêm ininterrompida a comunicação marginal dos dois lados do
canal, comunicação que é feita por uma bela estrada macadamizada.
Não pode fixar-se
ao certo a data da construção das primeiras muralhas, nem qual foi o seu
custo. Consta somente que, por provisão de D. Pedro II, em 1680, fora a
Câmara autorizada a lançar um imposto por três anos, de um real em cada
quartilho de vinho vendido, para ocorrer às despesas da restauração do
cais, que já então se achava muito arruinado.
D. Maria I
encarregou da obra, que principiou em 31 de Agosto de 1780, o
desembargador António Gravito Simões da Veiga. Parece que não se
ultimaram então aqueles trabalhos, ou que pouco duraram, se acaso se
fizeram, porque, por provisão de 24 de Maio de 1810, se tomaram novas
providências, lendo-se naquele diploma régio o seguinte:
"Querendo promover
a reparação da importante obra do cais da cidade de Aveiro, que se acha
ameaçando ruína, e cuja reparação exigiria maiores despesas... "
Por aviso de 3 de
Setembro de aquele ano foi ordenado a Luís Gomes de Carvalho se
encarregasse daquela reparação, em consequência de uma representação
dirigida ao príncipe regente e relativa à ruína em que se achava o cais
da cidade, "assim em razão do extraordinário temporal que houve em Maio
daquele ano, como pela falta de solidez do mesmo cais".
Por uns avisos de
1811 e 1816 se mandou proceder à ampliação do cais antigo, sua
reedificação e limpeza.
Esta muralha, em
consequência da má construção que de há muito se lhe notara, sem
argamassa, ou com péssima argamassa, já por diversas vezes havia
carecido de reparos, mesmo posteriormente aos de 1810; mas, não obstante
esses reparos, em 1857 havia chegado ao último estado, ameaçando a perda
total de uma das mais belas obras de Aveiro, na extensão de 1.113
metros, que tanta era a do canal revestido de muros, que conduz à
cidade.
Por isso, em 10 de
Setembro desse ano de 1857, elaborou o engenheiro Júlio Augusto Leiria
um projecto de reparação daquelas muralhas, aproveitando-se das
fundações antigas para os novos muros de cais, fazendo os trabalhos às
marés e estabelecendo os respectivos estaleiros e amassadores em barcas,
ou saleiras, fundeadas no local da obra. O seu orçamento era de 7.248$00
reis.
O Conselho de
Obras Públicas, apoiando o projecto e reconhecendo a urgência da obra,
aconselhava, contudo, o emprego, em lugar de pedra, que era ali muito
cara, de tijolo feito com vasas ou lodos da ria.
Quando o Sr.
engenheiro Silvério Augusto Pereira da Silva, tomando conta da direcção
das obras públicas do distrito de Aveiro, deu parte para o governo do
estado desta obra, em 22 de Janeiro de 1858, ponderou que a fabricação
daqueles tijolos exigia a construção de fornos e de outros trabalhos
caros e demorados, que não estariam em proporção do custo da obra
propriamente dita, e disse que lhe parecia preferível o emprego de pedra
com argamassa de cal, areia e "pozzolana" de S. Miguel, tanto mais que
havia no Rocio de Aveiro pedra que poderia empregar-se nela, e que era
muito melhor e ficaria muito mais barata do que o grês de Eirol,
esperando ainda obter muito economicamente as madeiras para a construção
de uma ensecadeira móvel, que serviria para toda a obra.
Em 22 de Julho de
1859 ponderou ainda aquele engenheiro que a tal verba de 7 000$00 reis
era muito diminuta para reparar os muros, que dos dois lados do canal
tinham a extensão de mais de 2 km, e que estavam completamente
arruinados, acusando inflexões, desnivelamentos e a perda do primitivo
jorramento, tudo em consequência da falta de espessura necessária,
apresentando em alguns pontos depressões que revelavam a falta de
fundação, e em outros profundas cavernas, ou cavidades, de onde se
haviam destacado as pedras que compunham as alvenarias da parede."
E o relatório que
vimos citando continuava:
"Sendo, portanto,
mister fazer de novo quase todo o muro, adoptara para ele um outro tipo,
com major espessura e com reforços de espaço a espaço, ou contrafortes
de 6 em 6 metros para o interior, e com maior jorramento. E, tendo de
refazer quase todas as fundações da muralha, fizera uso de uma
ensecadeira volante, que punha completamente a enxuto a parte em que se
trabalhava e em que empregava a pozzolana de S. Miguel.
Segundo o seu
sistema, estavam construídos naquela época 136 m de cais, e gasta a
quantia do 2.777$935 reis, incluindo materiais e ferramentas, calculando
que para reparar a extensão que faltava seriam precisos ainda 16.000$00
reis. Foram atendidas as suas judiciosas considerações e, em 13 de
Outubro de 1868, tendo continuado a obra da grande reparação do cais de
Aveiro, que antes deveria chamar-se reconstrução, estavam construídos
1.517 metros de cais, faltando somente 476 metros, e tendo importado
todo o trabalho feito em 34.560$030 reis.
Pelo preço médio
da obra a sua conclusão viria a importar ainda em:
-
476 metros de cais a 2$720 reis — 10.843$280
-
Pontes da Dobadoura e S. Gonçalinho — 3.000$000
-
Imprevistos — 156$720
-
Total — 14.000$000
O respectivo
inspector, o conselheiro Plácido de Abreu, informando este projecto,
disse que o cais de Aveiro, entre as pirâmides e a ponte da cidade,
media 2.063 metros, sendo de enxilharia 277 metros e de betão 1.344
metros; e que em 1868 estavam em construção 42 metros de muro e por
construir 330 metros, com duas pontes tendo 70 metros de avenidas.
|
Cais da cidade no
Canal Central com moliceiros, aspecto actualmente quase impossível
de observar, se exceptuarmos algumas raras ocasiões em que estes
barcos entram no coração da cidade, movidos pelos seus meios
tradicionais.
Fotografia de Américo Carvalhinho. |
Os cais de betão,
ultimamente empregados, eram feitos a seco, em uma ensecadeira de duplo
taipal com terra calcada, mas sendo hidráulica a argamassa empregada,
podia endurecer debaixo de água, não havendo por isso necessidade de
fazê-la a seco, e devendo portanto suprimir-se um taipal, dragando-se
dentro da ensecadeira até à profundidade necessária. Este era o seu
parecer.
A média do custo
da obra tinha sido de 22,775 reis por metro linear, ou 4$102 reis por
metro cúbico de trabalho feito, cubando por metro corrente, a guarda
0,227 m3 de alvenaria, o muro 5,130m3 de betão, e o cordão e capeamento
de cantaria 0,141m3.
Esta obra foi
feita por sistema muito engenhoso e económico, foi terminada em 1872,
apresentando um belo aspecto, e havendo-se comportado muito bem até
1888, em que principiou a carecer de alguns pequenos reparos, devido
principalmente a haverem as varas ferradas dos barqueiros atacado em
alguns pontos o rebouco e mesmo o betão, que se apresentava em geral
muito rijo e consistente.
A obra, porém,
conquanto, absolutamente falando, muito barata, subiu muito acima das
primitivas previsões, elevando-se o seu custo para os 2.145 metros de
cais a 55.939$725 reis, compreendendo, porém, as pontes da Dobadoura, de
S. Gonçalinho e da Praça. "
Nenhuma destas
pontes, então construídas, existe hoje.
A da Dobadoura foi
substituída pela que hoje aí está, feita pelo engenheiro Zagalo, no
consulado do Dr. Artur Alves Moreira.
A que então se
chamava de ponte de São Gonçalo, veio a ser alargada quando era director
do porto de Aveiro, o engenheiro Barrosa, já sendo conhecida como ponte
de São João, por certo para honrar a memória da capela do mesmo nome que
existia no Rossio e que entretanto foi destruída.
A da Praça,
possivelmente uma das duas pontes que desapareceram no centro da cidade
para dar lugar à actual ponte-praça.
O tempo voa; e já
lá vai a circunstância em que era possível estimar o custo de duas
pontes -
a da Dobadoura e a de São Gonçalo
-
numa importância de 3.000$000 reis.
Hoje a realidade é
outra.
GASPAR ALBINO |