BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


O Fabulário de João de Deus

Paula Tribuzi   

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A fábula “O cão e a presa” é constituída por duas partes: na primeira, é descrito o comportamento insensato e ambicioso de um cão em busca da sua presa, bem como o resultado frustrado da sua conduta; na segunda, é esclarecida a intenção do texto através das seguintes palavras — “Abençoada prudência / (E é esta a moralidade!) / Quantos pela aparência / Perdem a realidade!”.

  Na composição “A águia e o corvo”, a mensagem é transmitida numa frase de tipo imperativo, com o conjuntivo exortativo: “Cada qual veja suas aptidões”. A imprudência do corvo é contestada sob a forma de uma punição — a frustração da sua ambição de se igualar à águia, metaforizada em “rainha do ar”, é agravada pela inversão da situação em que se liberta a presa e sai enclausurado o corvo. 


O cão e a presa

 

Um cão apanha um coelho
À margem de uma ribeira,
Mas vendo-o naquele espelho
larga-o, salta a ribanceira...
E assim perde o que levava
E mais o que ambicionava,

Abençoada prudência
(E é esta a moralidade!)
Quantos pela aparência
Perdem a realidade.

João de Deus, Campo de Flores

 

A fábula termina com um comentário humorístico que associa a moralização à diversão: “A unha de um gatuno pouco abarca; / Um pio se tanto, quando não é preso! / Roubo de peso, / Roubo de vulto, só ladrão de marca”. 

A CIGARRA E A FORMIGA

Como a cigarra o seu gosto
É
levar a temporada
De Junho, Julho e Agosto
Numa cantiga pegada,
De Inverno também se come,
E então rapa frio e fome!

Um Inverno a infeliz
Chega-se à formiga e diz:
— Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade;

Que em chegando a novidade,
Até faço um juramento,
Pago-lhe seja o que for.

Mas pergunta-lhe a formiga:
— Pois que fez durante o Estio?
— Eu, cantar ao desafio.
—Ah! cantar! Pois minha amiga,
Quem leva o Estio a cantar,
Leva o Inverno a dançar!
JOÃO DE DEUS,
Campo de Flores

FÁBULA DA FÁBULA

Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.
MIGUEL TORGA,
Diário VIII

“Cabra, carneiro e cevado” é o título de uma fábula longa e complexa em que se combinam diferentes modos de expressão: o tom narrativo, marcado através da expressão inicial “Uma vez”, é alterado com o lirismo do desabafo pungente de um cevado que, à beira da morte, lamenta a sua triste sorte. Na impossibilidade de fugir a um destino implacável e irreversível, o animal humanizado exprime dramaticamente o seu “mal fatal” e conclui com uma sábia reflexão acerca da existência: “Antes ser insensato, que prudente, / Um insensato, ao menos, menos sente: / Não vê um palmo adiante do nariz, / Vê o presente / E está contente... / E mais feliz!”. O tema da morte é ainda glosado na fábula “Leão moribundo”, inspirada em La Fontaine e recontada por Bocage. O sentido da decadência é traduzido na cena patética em que o rei dos animais é injuriado pelos seus súbditos, através de uma linguagem pitoresca: “Veio o cavalo e deu-lhe uma patada! / Veio o lobo, ferrou-lhe urna dentada! / Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada!”. O comportamento do leão sofre uma evolução psicológica: a aparente serenidade revelada na expressão “manso como um lago” é alterada com a humilhação sofrida num momento burlesco com a vinda de um asno aos pinotes, desencadeando o horror do felino. A fábula culmina em grande intensidade dramática: “Rei dos bosques e feras, / Em suma, o grande, o generoso, o forte, / Arranca das entranhas / Um gemido, um rugido, um uivo, um urro, / Que retumbou por vales e montanhas: / Antes a morte! A morte”’. A densidade psicológica é manifestada por uma linguagem expressiva, particularmente marcada pela recorrência de sons que testemunham a força do leão no seu rugido derradeiro.

Nas fábulas de João de Deus, a expressão directa, simples, espontânea e despretensiosa coaduna-se com a personalidade do criador e adapta-se perfeitamente ao contexto educativo da literatura infantil e juvenil de todos os tempos. Elas deixam entrever, em alguns momentos, a versatilidade do escritor, a sensibilidade do lírico, o humor do satírico e a experiência do pedagogo.

Na qualidade de fabulista, João de Deus é considerado, na opinião de David Mourão-Ferreira, “talvez o nosso melhor poeta no género”. Sob a sua orientação, a Fundação Calouste Gulbenkian publicou, em Maio de 1996, um Boletim Cultural dedicado às fábulas, com a intenção de despertar e incentivar o gosto pela leitura. Coube ao escritor António Torrado, também autor deste género didáctico, a abordagem do tema “Conto e Reconto”. Entre os fabulistas portugueses contemplados, figuram João de Deus (com “Meia fábula”, “O cão e a presa” e “Ossos do oficio”) e Miguel Torga, autor da “Fábula da fábula”. Neste texto, é retratada humoristicamente a fábula “A cigarra e a formiga”, sendo subvertida a mensagem tradicional no intuito de veicular a ideia da riqueza espiritual e artística contraposta à pobreza material: “Enquanto a fábula contava, / Um demónio secreto / Segredava / Ao ouvido secreto / De cada criatura / Que quem não cantava / Morria de fartura”.

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi


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