BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


O Fabulário de João de Deus

Paula Tribuzi   

No volume III do “Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa”, da Editorial Confluência, figuram várias acepções do vocábulo fábula, das quais destaco as seguintes:

“Narração do sucessos fingidos, inventados para instruir ou divertir; pequena composição de forma poética ou prosaica, em que se narra um facto, alegórico, cuja verdade moral se esconde sob um véu de ficção e na qual se fazem intervir as pessoas, os animais e mesmo coisas inanimadas; a história dos deuses e outras personagens do politeísmo ou a teologia dos pagãos”.

A fábula tem sido cultivada ao longo dos séculos pelos escritores portugueses, desde a idade Média até à época Contemporânea. Na “Crónica de D. João I”, de Fernão Lopes, está contida a história do monge e do passarinho; e a obra “Horto do Esposo” apresenta também duas fábulas. No século XVI, de Miranda introduziu a fábula «O Rato do Campo e o Rato da Cidade» na “Carta a Mem de Sá” e na “Écloga Basto” figura “O Cavalo e o Cervo”. As Cartas de Diogo Bernardes apresentam várias fábulas, entre as quais “A Cigarra e a Formiga”. Já no século XVII, D. Francisco Manuel de Melo contou, nas suas Cartas V e VI, a história «As Lebres e as Rãs” e “O Lobo e a Raposa”, respectivamente. O século XVIII foi marcado pela influência de Jean de La Fontaine, escritor traduzido por Bocage. Miguel do Couto Guerreiro divulgou as fábulas de Esopo em língua portuguesa. O género foi também cultivado por Cruz e Silva, Filinto Elísio e pela Marquesa de Alorna. Belchior Curvo Semedo publicou a obra Tradução das melhores fábulas de La Fontaine. Numerosos escritores do século XIX alargaram o fabulário em língua portuguesa. Por exemplo, Garrett publicou, em 1853, Fábulas e Contos; Henrique O’Neill escreveu um livro de fábulas sob a influência de Lessing e de La Fontaine; João de Deus integrou na sua obra poética e pedagógica algumas fábulas.

Do ponto de vista formal, o fabulário de João de Deus, sempre em verso, é marcado pela alternância de esquemas estróficos regulares, em verso, rimados e isométricos, com textos livres, sem preocupações prosódicas, de versos curtos e longos, não obedecendo a uma estrutura estrófica, métrica ou rimática, o que confere uma nota de modernidade à obra de João de Deus. O discurso é marcado por uma grande vivacidade patente na abundância de pontuação, imprimindo um tom coloquial extremamente dinâmico e verosímil às situações textuais da interacção de figuras imaginárias. A musicalidade é uma característica dominante na obra, conseguida por meio de certos recursos estilísticos de âmbito fónico, como a aliteração e a assonância, entre outros.

A intemporalidade da obra resulta da intenção moralizada que combina os vícios criticados e as virtudes exaltadas no processo de antropomorfização dos elementos deste género didáctico.

A composição «Honra e proveito», inspirada em Fedro, demonstra o aproveitamento da mitologia na construção da fábula, consagrando a deusa da sabedoria (Minerva) para a transmissão de uma verdade universal. A fantasia surge, deste modo, corno fonte de inspiração da realidade. A moralidade é extraída do provérbio “Honra sem proveito faz mal ao peito”.

Ossos do ofício

Uma vez uma besta do tesouro,
Uma besta fiscal,
Ia de volta para a capital
carregada de cobre, prata e ouro;
E no caminho
Encontra-se com outra, carregada
De cevada
Que ia para o moinho.

Passa-lhe logo adiante
largo espaço
Coleando arrogante
E a cada passo
Repicando a choquilha
Que se ouvia distante.

Mas salta uma quadrilha
De ladrões
Como leões.
E qual mais presto
Se lhe agarra ao cabresto.
Ela reguinga, dá uma sacada
Já cuidando
Que desfazia o bando;
Mas coitada!
Foi tanta a bordoada,
Ah, que exclamava enfim
A besta oficial:
— Nunca imaginei tal!
«Tratada assim
«Uma besta real!
«Mas aquela que vinha atrás de mim
Porque a não tratais mal?»

— Minha amiga, cá vou no meu sossego.
« Tu tens um belo emprego.
«Tu sustentas-te a fava e eu a troços!
«Tu lá serves el-rei e eu um moleiro!
«Eu acarreto grão e tu dinheiro!
«Ossos do oficio, que o não há sem ossos.»
João de Deus,
Campo de Flores

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