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Origens da língua portuguesa: antecedentes históricos; povos da
Península Ibérica anteriores à romanização; noção de substrato;
a romanização; a noção de România e as línguas românicas; os
Bárbaros; a invasão árabe e a reconquista cristã; os
superstratos; os conceitos de latim erudito, latim vulgar e
latim cristão; do latim ao português.
Do século XII à actualidade: as diferentes periodizações na
evolução do português; a via erudita e a via popular; o período
galaico-português; Lisboa, centro difusor da língua padrão; os
cancioneiros; os primeiros textos em português: um testamento;
Cantiga da Garvaia; Cantiga de D. Sancho I; duas cantigas de D.
Dinis; uma cantiga de Afonso X; o período pré-clássico:
principais datas referentes à expansão portuguesa; alguns textos
desta fase; o período clássico: enriquecimento lexical do
português; alguns textos e nomes; os gramáticos; o período
moderno: breve panorama. |
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DO SÉC. XII À ACTUALIDADE
AS DIFERENTES PERIODIZAÇÕES NA
EVOLUÇÃO DO PORTUGUÊS
Vimos
até agora as origens do
português, desde épocas remotas até finais do século XI, muito embora
tenhamos já feito referência à expulsão definitiva dos árabes da
Península Ibérica em 1492, com a conquista de Granada pelos Reis
Católicos de Espanha. Iremos agora continuar a ver alguns aspectos da
evolução do português desde o século XII até à situação actual.
Por uma questão metodológica, o período de tempo entre o
século XI e o século XX costuma ser subdividido em momentos distintos,
cuja delimitação não pode ser encarada de modo rígido, mas antes como
balizas temporais aproximadas. Na evolução da Humanidade não é possível
marcar épocas como compartimentos estanques. O fluxo temporal processa-se
de modo uniforme, com alterações ou marcas de evolução humana quase
imperceptíveis para os homens que viveram essas fases evolutivas. Só à
distância de muitos anos ou mesmo séculos o Homem consegue ter uma visão
de conjunto e uma consciência perfeita da evolução e das características
de uma determinada época. Frequentemente, verificamos a coexistência de
mentalidades diferentes dentro de uma mesma época, com os consequentes
conflitos de geração que daí advêm.
Tal como acontece, por exemplo, com o problema da
periodização literária, que é sempre discutível e com limites temporais
flutuantes, o mesmo sucede com a divisão das épocas históricas ou com a
evolução de uma língua. Daqui se infere que uma divisão temporal é
sempre bastante arbitrária, variando, por isso mesmo, de autor para
autor. Quer isto dizer que para a marcação de épocas distintas na
evolução do português encontramos não só designações como limites
temporais diferentes.
Para nos darmos conta do quanto se torna difícil a
marcação de períodos de evolução ─ embora estes nos sejam
extraordinariamente úteis, permitindo-nos uma melhor situação no tempo ─
começaremos por indicar a periodização da evolução do Português tal como
a encontramos em vários trabalhos.
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Figura 35: Quadro com os
períodos da evolução do português segundo vários autores. |
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Carolina Michaëlis divide a fase do português arcaico
em três períodos: o período proto-histórico, desde o século IX
até ao século XII, que constitui uma fase complexa e de obscura
elaboração (veja-se o quadro da figura 28); o período trovadoresco,
do início do século XII até 1350, que está representado por um conjunto
de produção literária com base no grupo linguístico galego-interamnense;
o período do português comum, que corresponde a uma época de
produção de textos em prosa de carácter histórico. Será talvez
fundamental referir que esta divisão elaborada por Carolina Michaëlis
foi estabelecida tendo em conta a produção poética dos trovadores
galego-portugueses, inicialmente, e a produção em prosa a partir
essencialmente do reinado de D. João I (segunda dinastia). A datação
anterior ao começo da segunda dinastia deve-se ao facto de, desde 1350,
existirem dois grandes centros de produção textual em prosa: os
mosteiros de Santa Cruz, em Coimbra, e de Alcobaça.
Segundo José Joaquim Nunes[16]
já
existe o português no século VIII, existência «atestada em documentos
dessa época, escritos em latim bárbaro, nos quais, devido à insciência
dos notários que os redigiam, transparecem aqui e ali termos que eles
iam buscar à língua falada, sendo só no século XII que aparecem textos
completos nesta última». Assim sendo, considera duas épocas
distintas: anteriormente ao século XII, época a que dá o nome de
português proto-histórico, compreendido entre os séculos VIII e XII;
posteriormente ao século XII, a época do português histórico.
Segundo José Joaquim Nunes, o vocabulário da língua
portuguesa é constituído por três espécies de elementos: populares,
semi-eruditos e eruditos. Considera como populares
aqueles que passaram do latim ao português por via popular, sofrendo as
consequentes transformações fonéticas, bem como todos quantos se
formaram posteriormente a partir dos primeiros. São os vocábulos obtidos
por via popular que constituem, segundo ele, a verdadeira base da língua
portuguesa. Considera como vocábulos semi-eruditos aqueles que só
em parte sofreram influência das leis da evolução fonética, tais como,
por exemplo, apostoligo, vodivo, religas, insoa,
ledania, etc. Considera como eruditos os vocábulos de
proveniência latina ou grega que, desde muito cedo, entraram no
português.
Uma vez fixada a língua portuguesa, Joaquim Nunes
considera duas grandes fases na evolução da língua: a fase arcaica,
desde o século XII até ao século XVI; a fase moderna, desde o
século XVI até aos nossos dias.
As considerações tecidas por José Joaquim Nunes têm ainda
para nós a qualidade de nos alertar para as duas grandes vias de
evolução do léxico na passagem do latim ao português: a via erudita
e a via popular. Enquanto a primeira se caracteriza pelo seu
carácter conservador, mantendo praticamente a palavra latina em
português, a segunda transforma a palavra latina num novo vocábulo, mais
fácil de articular e frequentemente bastante afastado do étimo, sofrendo
toda uma sequência de fenómenos fonéticos[17].
Serafim da Silva Neto divide o período arcaico do
português em duas fases: a fase trovadoresca, desde o último
terço do século XII até 1350 ou 1385 (data da batalha de Aljubarrota); a
fase da prosa histórica, «verdadeira e exclusivamente portuguesa»,
de 1385 até aos princípios do século XVI.
De acordo com o que nos diz Pilar Vázquez Cuesta, não há
até ao momento nenhuma nomenclatura verdadeiramente satisfatória para
designar as diferentes etapas que se podem distinguir na história da
língua portuguesa. No entanto, divide a evolução da língua em quatro
momentos:
1 - período galaico-português, desde os finais do
século XII até 1350 aproximadamente;
2 - período pré-clássico, de 1350 a 1540;
3 - período clássico, desde 1540 até meados do
século XVIII;
4 - período moderno, desde meados do século
XVIII até à data actual.
Perante tamanha diversidade de divisões e já que todas
elas são passíveis de discussão, adoptaremos a última e por ela nos
orientaremos na nossa viagem através da história evolutiva do português.
PERÍODO GALAICO-PORTUGUÊS
Este
período, que vai desde os finais do século XII até meados do século XIV
e que corresponde aproximadamente ao período da lírica trovadoresca
galaico-portuguesa, é assim designado por Vásquez Cuesta pelo facto de,
nesta altura, se tornar difícil distinguir o português do galego.
A separação da Galiza e Portugal só ocorre após a
conquista de Toledo, em 1085. É nesta altura que Afonso VI, para premiar
o auxílio prestado pelos cavaleiros francos, D. Henrique e D. Raimundo,
lhes concede a mão de suas filhas. A D. Raimundo é-lhe concedida a mão
de D. Urraca; a D. Henrique é-lhe dada D. Teresa. Como D. Urraca, filha
legítima, seria a herdeira do reino de Leão por morte do pai, a D.
Teresa, filha bastarda, é-lhe concedido o Condado Portucalense, faixa de
terra que se estendia do Minho até ao Mondego.
Mais tarde, D. Afonso Henriques, desgostoso talvez pela
ligação de sua mãe com o padrasto, mas sobretudo desejoso de governar um
país independente e liberto da vassalagem a Leão, consegue a
independência do Condado Portucalense e inicia o alargamento do
território para sul. Conquista sucessivamente aos mouros vários
castelos e burgos, entre os quais se contam Santarém e, sobretudo,
Lisboa, a grande cidade moçárabe, que vai permitir a deslocação da
capital do reino para sul.
No reinado de D. Afonso III, o Bolonhês, Portugal atinge
as dimensões actuais, com a conquista do Algarve e a expulsão definitiva
dos árabes para o extremo sul da Península Hispânica.
A deslocação da capital do reino para Lisboa levantou um
problema bastante discutido actualmente: onde terá nascido a língua
comum hoje chamada português? Terá sido Coimbra, o centro do país, ou
terá sido Lisboa o grande centro director e difusor da língua portuguesa,
do designado português padrão?
As opiniões são muito divergentes. Há quem aponte Coimbra,
há quem considere Lisboa como a região onde se localizará o português
padrão. Serafim da Silva Neto[18]
considera Lisboa como o grande centro difusor, devido à sua situação
privilegiada. Se efectuarmos uma retrospectiva histórica da situação
portuguesa, tudo parece confirmar a opinião de Serafim da Silva Neto. No
reinado de D. Afonso III (1250), Lisboa passa a ser a capital do reino.
Quando, em 1290, são criados os Estudos Gerais, é em Lisboa que a
Universidade é fixada. Apesar de ter sido transferida para Coimbra, em
1308, regressa à capital trinta anos depois. Em 1354 volta para Coimbra,
mas em 1377 está de novo em Lisboa e, desta vez, para sempre. A partir
do reinado de D. Fernando, Lisboa vai ganhando sempre, e cada vez mais,
nobreza, carácter e dignidade. Durante o período do interregno, entre
1383-85, período conturbado em que a nacionalidade portuguesa se vê
ameaçada e em que várias cidades tomam voz por Castela, é Lisboa que vai
assumir a liderança do país com a escolha do Mestre de Avis, cuja defesa
e aclamação pelo povo de Lisboa nos é mostrada por Fernão Lopes, no
capítulo «Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavam o Mestre, e
como lá foi Álvaro Pais e muitas gentes com ele». E, segundo Fernão
Lopes, Lisboa é a «mais famosa entre as cidades, forte esteio e
coluna que sustém Portugal, (...) vida e coração deste reino, purgada de
todas as fezes no fogo da lealdade.»[19]
Para Lisboa convergiram elementos de várias proveniências,
tais como homens de letras, artistas, filósofos, juristas, moralistas,
educadores e pedagogos, líderes políticos, etc..
Durante a primeira fase, em que o português e o galego
são difíceis, se não impossíveis, de distinguir, floresce em toda a
península uma literatura de carácter profano e religioso, compilada nos
cancioneiros, dos quais chegaram até nós quatro valiosos exemplares[20].
A língua presente nos cancioneiros é de feição literária,
o que significa que se trata de um registo diferente do da língua falada.
As cantigas registadas nos cancioneiros representam, como bem nos lembra
Serafim da Silva Neto, «uma estilização da língua falada
contemporaneamente na região Entre-Douro-e-Minho, língua que em relação
àquela que mais tarde se tornou padrão mostrava aspecto conservador».
Os primeiros documentos em português são de natureza
jurídica e datam dos finais do século XIII. Até 1957, eram considerados
como os mais antigos o auto de partilhas, a que era atribuída a
data de 1192, um testamento de 1193 e a Notícia de Torto,
dos princípios do século XIII. A partir de 1957, o problema dos
primeiros documentos renovou-se por completo. Foi nesta data que o
Doutor Avelino Costa chegou à conclusão que o famoso auto de
partilhas não era o original, mas uma cópia bastante posterior. A
esta mesma conclusão chegou também posteriormente o Doutor Rui de
Azevedo, que confirmou as suspeitas de falsificação ou, pelo menos, de
cópia mais tardia, tanto mais que aparecem no aludido documento traços
linguísticos próprios de uma época posterior à atribuída ao documento.
Assim sendo, parece que os documentos não literários
mais antigos serão a Notícia de Torto, que deverá ser dos
princípios do século XIII, como já referimos (1211?), e o Testamento
de Afonso II, de 1214.
No domínio dos textos literários, considerou-se durante
bastante tempo que o texto mais antigo era a célebre Cantiga da
Garvaia (ou Guarvaia), atribuída por Carolina Michaëlis de
Vasconcelos a Pai Soares de Taveirós. Actualmente pensa-se que este
texto será do segundo terço do século XIII, pelo que os textos
literários mais antigos serão uma cantiga de amigo de D. Sancho I
(1154-1211) e uma cantiga de maldizer de João Soares de Paiva,
nascido por volta de 1140 e que datará, segundo López Aydillo, de 1196.
Antes de vermos
alguns destes primeiros textos, vejamos
algumas das características do português da época. De uma maneira
bastante sintética, poderemos apresentar as seguintes:
1 - Abundância de hiatos por síncope da consoante intervocálica:
exs.: door < latim DOLORE(M) veer < latim VIDERE
2 - Era fechada a vogal o em adjectivos com
terminação em -oso, -osa e nos comparativos maior,
melhor, pior, bem como noutras palavras em -or
provenientes da terminação latina -OREM. Só mais tarde, por analogia com
as formas do plural, as vogais passaram a ser abertas. Portanto,
pronunciava-se [fremôsa], [piôr], [maiôr], etc.[21]
3 - As palavras terminadas em -ONEM e -ANEM em latim
conservavam a terminação -OM e -AM.
exs.: razom < latim RATIONE(M) multidom <
lat.MULTITUDINE(M) pam < lat. PANE(M)
4 - O grupo CH tinha uma pronúncia africada, isto é,
pronunciava-se [tch]
5 - Eram uniformes os nomes e adjectivos terminados em
-OR, -OL, -ES e -ANTE.
exs.: mia senhor fremosa
6 - Presença do artigo partitivo, à semelhança do que
ainda hoje ocorre no francês actual.
7 - Presença dos pronomes adverbiais, ainda hoje
existentes no francês.
8 - Grande quantidade de vocábulos de origem francesa e
provençal.
Todas estas características e muitas outras aqui não
referidas poderão ser facilmente detectadas a partir da leitura das
cantigas da época trovadoresca ou encontradas na obra de Pilar Vázquez
Cuesta, Gramática da língua portuguesa[22].
Vejamos agora alguns textos do período galaico-português[23]:
Texto 1:
Testamento
In Christi nomine. Amen. Eu Eluira Sanchiz offeyro[24]
o meu corpo aas virtudes de Sam Saluador do moensteyro de
Vayram e offeyro co' no meu corpo todo o herdamento que eu ey en
Centegãus e as tres quartas do padroadigo d'essa eygleyga e todo
hu herdamento de Creixemil, assi us das sestas como todo u outro
herdamento: que u aia u moensteyro de Vayram por en saecula saeculorum.
Amen.
Fecta karta mense Septembri era MCCXXXI.
Menendus Sanchiz testes. Stephanus Suariz testes. Vermuu
Ordoniz testes. Sancho Diaz testes. Gonsaluus Diaz testes.
Ego Gonsaluus Petri presbyter notauit.
In: J. LEITE DE VASCONCELOS, Textos arcaicos, 3ª
ed., pp. 14-15.
O texto acima transcrito é um documento notarial, um
testamento em que Elvira Sanches lega ao mosteiro de Vairão diversos
bens imóveis situados em Santarém e em Creixomil. Trata-se precisamente
do testamento que, juntamente com o auto de partilhas, foi considerado
até 1957 como o segundo texto mais antigo e hoje considerado, talvez,
uma falsificação ou, mais provavelmente, uma cópia posterior do
original.
Vairão é o nome de um lugar no concelho de Vila do Conde.
Elvira Sanches é o mesmo nome que se encontra no auto de partilhas. Este
testamento foi apresentado por J. Leite de Vasconcelos com a data de
1193.
Texto 2:
Cantiga da
Garvaia
No mundo non me sei parella
mentre me for como me vãy. ca ia moi
ro por vos e ãy. mia sennor branca e
vermella. queredes que vus retraya.
Quando vus eu vj en saya. mao dia
me levãtey. que vus enton non vj
fea.
E mia señor des aquel. dia. y.
me foy ami muy mal.
e vus filla de don paay.
moniz eben vus semella.
daver eu por vos guarvaya.
pois eu mia señor dalfaya
nunca de vos ouve në ey
valia düa correa.
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A cantiga da garvaia é um daqueles textos que têm
levantado problemas, quer relativamente à data e à autoria, quer
relativamente à interpretação. Embora não seja a mais antiga, é uma das
que mais polémicas tem levantado devido, em grande parte, à sua
dificuldade de interpretação.
O texto apresentado encontra-se em transcrição
diplomática, isto é, apresenta-se tal como vem no Cancioneiro da Ajuda,
devendo datar do segundo terço do século XIII. Os pontinhos parecem
separar versos, embora não se encontrem em alguns sítios.
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O sistema rimático da primeira estrofe, tendo em conta os
pontos assinalados ao longo da composição, seria a, b,
b, a, c, c, d, e com rimas
interpolada, emparelhada e solta nos dois últimos versos. Na segunda
estrofe, os dois primeiros versos não se podem esquematizar. Os
restantes seguem rigorosamente o esquema da primeira estrofe.
A esquematização da rima torna-se muito mais fácil se
efectuarmos uma nova transcrição da poesia, separando cada verso pelo
ponto que parece marcar o seu final.
Esta composição, como todas as do Cancioneiro da Ajuda, é
anónima, ao contrário do que acontece com os outros cancioneiros. Para
descobrir o nome do autor, Carolina Michaëlis foi ao Cancioneiro da
Biblioteca Nacional e efectuou o estudo comparativo entre este e o outro
cancioneiro. Verificou que a composição se encontrava no meio das
cantigas de Pai Soares de Taveirós, concluindo dever ser este o seu
autor.
Para a atribuição da data de 1189, data esta que não deve
estar correcta, Carolina Michaëlis apoiou-se nos versos em que se diz
«... e ben vus semella daver eu por vos guarvaya». Relacionou este verso
com D. Maria Pais, a Ribeirinha, a quem a cantiga deverá ser dirigida.
Segundo se crê, estaria esta numa fase em que recebera grandes favores
do rei. E, assim sendo, foi procurar um documento em que se fizesse
referência às doações feitas por D. Sancho I a D. Maria Pais. Encontrou-o
em Vila do Conde, num foral datado de 1189, data que não deverá estar
correcta devido a erro do copista. A data do foral encontra-se em era
romana e indica 1257. Para a reduzir à era cristã, terão de ser
retirados 38 anos, o que dá a data de 1219. Após o estudo de vários
historiadores, a data foi emendada para 1257 ou 1247, sob a alegação de
um erro do copista. Foram-lhe retirados 10 anos, o que dá em era cristã
a data de 1209, anterior à morte de D. Sancho I, em 1211. Dado que a
base em que Carolina Michaëlis se apoiou para estabelecimento da data
está errada, a cantiga da Garvaia deverá datar de 1200, segundo parece
inferir-se dos forais de Pousada e Paradela.
Outro problema suscitado pela Cantiga da Garvaia é o da
sua interpretação. Branca e vermella deverá referir-se às cores
do rosto, tanto mais que se trata de uma expressão frequente noutras
composições da época. Retraya é uma forma do verbo retraer,
que significa 'contar'. En saya parece aludir ao facto da mulher
usar um vestido comprido e sem manto. O facto do sujeito poético a ter
visto em saia sem outra peça de vestuário terá feito com que a mulher se
lhe afigurasse mais bela, cativando-o. Daí o afirmar que em mau dia se
levantou, porque então não a viu feia, apaixonando-se por ela. Mas o
maior problema relativo à interpretação assenta na expressão e vus
filla de don paay moniz. Esta permite mais do que uma interpretação,
variável de acordo com a maneira como considerarmos, quer a forma
pronominal vus, quer a palavra filla. Vus tanto
poderá ser considerado como uma forma tónica como átona, enquanto a
palavra filla poderá ser considerada como um nome ou como uma
forma verbal.
Se vus for uma forma tónica, separada da palavra
seguinte por uma vírgula, a palavra seguinte terá de ser considerada
como o nome filha e o fragmento terá como leitura «e vós, filha de D.
Pai Moniz». Se o vus for átono, poderemos considerar a palavra
seguinte como uma forma do verbo «filhar», podendo ser entendido quer no
sentido de 'tomar', 'tirar', quer de 'apropriar-se', o que poderá dar
estas duas leituras: «e vos toma de don Pai Moniz» e «e se apropria de
vós Pai Moniz».
Segundo Elza Paxeco, o vus é átono e não tónico,
pelo que será [vos] em vez de [vós], o que dará lugar a uma
interpretação diferente relativamente à palavra filla, que
passará a ser uma forma do verbo filhar, que significa 'tirar, tomar'.
Assim sendo, a leitura proposta por Carolina Michaëlis de Vasconcelos «e
vós, filha de D. Pai Moniz» não estará correcta. Partindo da
interpretação de Elza Paxeco, a composição em português moderno deverá
ter o seguinte sentido:
«No mundo não conheço desgraça igual à minha /
enquanto as coisas me correrem como agora: / pois já me sinto morrer por
vossa causa. / E, ai, minha senhora branca e vermelha, / quereis que vos
lembre / que já vos vi em saia? / Em má hora me levantei naquele dia! /
Porque não vos vi então antes feia? // E, minha senhora, desde aquele
dia / houve para mim mui mal: / não só Pai Moniz se apropria de vós /
como a vós parece coisa natural / que de vós receba (em compensação) uma
garvaia, / quando até hoje nunca de vós recebi (como prova de amor) nem
coisa no valor de uma correia».
Para concluirmos a análise da cantiga, resta-nos dizer
que a garvaia (ou guarvaia) era uma peça de vestuário bastante
cara, feita de pele de arminho, donde o contraste de cores referido no
poema: branca, da pele de arminho, e vermelha, das cores do rosto.
Entre os textos literários mais antigos encontra-se uma
cantiga de maldizer de João Soares de Paiva e a célebre
cantiga de D. Sancho I, que passamos a transcrever:
Texto 3:
Ay eu, coitada, como viuo
en gram cuydado por meu amigo
que ey alongado! muyto me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ay eu, coitada, como viuo
en gram deseio por meu amigo
que tarda e non ueio! muyto me tarda
o meu amigo na Guarda.
C. B. N. 398, C. B. 348
O texto, atribuído por Carolina Michaëlis a D. Sancho I,
é uma cantiga paralelística de métrica irregular. Encontra-se no
Cancioneiro da Biblioteca Nacional com o número 398 e é anónima. O que
levou Carolina Michaëlis a atribuí-la a D. Sancho I foi uma nota que se
encontra no verso do fólio do C. B. N., na margem inferior, e que diz:
Rº outro Rº das Cantigas q fez o mui
nob' Rey don Sancho deyoit (Che) e
diz ai eu coitada como uiue.
Todavia, o problema não fica desde logo resolvido, pois
para complicar a questão, na própria página da cantiga, aparece a
rubrica que diz «El Rey don affonso de leon». Assim sendo, a quem
atribuir a composição: a D. Sancho ou a D. Afonso de Leão? Mesmo que
optemos por uma das hipóteses, continuaremos com o mesmo problema, uma
vez que não saberemos a que rei D. Sancho ou D. Afonso de Leão a a
atribuir.
Carolina Michaëlis optou pela hipótese de D. Sancho I e
propôs a data de 1199 em virtude de no refrão se afirmar que «muyto me
tarda o meu amigo na Guarda» e por ter D. Sancho I concedido um foral à
cidade da Guarda e aí ter permanecido por mais de uma vez.
Segundo Silvio Pellegrini[25],
é de Afonso X que se trata e o vocábulo guarda não é um topónimo
mas sim um substantivo comum[26].
Os textos que transcrevemos, pertencentes ao período
galaico-português, estão longe de primar quer pelo seu conteúdo,
quer pelo seu valor literário. O primeiro texto constitui
um exemplar de um documento notarial dos mais antigos que se conhecem;
o segundo e o terceiro são já de carácter literário e destacam-se apenas
pelo facto de serem dos mais antigos. Estão longe de revelar as
capacidades literárias dos poetas deste período, o que equivale a dizer
que, quer no domínio da lírica, seja ela de natureza profana ou
religiosa, quer no domínio da narrativa em verso, encontramos
composições dignas de figurar numa antologia, tornando-se difícil
seleccionar um exemplar de cada.
Há em muitas composições dos nossos trovadores, como bem
o salienta Serafim da Silva Neto, «frescura e espontaneidade», aliando à
beleza da imagística e aos sentimentos expressos uma grande musicalidade.
Se as chamadas cantigas de amigo apresentam relativamente às
cantigas de amor menor riqueza de ideias, têm para nós o mérito de
serem mais espontâneas, menos artificiais e buriladas, com muito maior
musicalidade e ritmo de feição mais ao gosto popular. No entanto, umas e
outras abordam geralmente o mesmo tema ─ o amor ─, embora visto por
facetas diametralmente opostas. As cantigas de amigo revelam-nos o
sentimento amoroso pelo lado feminino; as de amor apresentam-nos o
homem apaixonado e subjugado à dama, a quem prestam preito, isto
é, vassalagem amorosa.
Para encerrar a breve panorâmica aqui apresentada acerca
da época galaico-portuguesa, procure realizar as actividades a seguir
propostas na «Sugestão de trabalho». Aí encontrará três composições da
época analisada. As duas primeiras, da autoria de D. Dinis, são
respectivamente uma cantiga de amigo, paralelística perfeita, e uma
cantiga de amor. A terceira composição é uma narrativa em verso de
carácter religioso, na qual se apresenta um milagre da Virgem contado
por Afonso X.[27]
Quer D. Dinis, quer Afonso X, foram os dois soberanos que mais se
distinguiram nesta época no domínio da literatura, tendo-nos deixado um
elevado número de textos.
Sugestão de trabalho
9
São-lhe apresentados três textos do período galaico-português da autoria
dos dois reis mais importantes no domínio da produção poética: D. Dinis
e D. Afonso X. Antes de os ler, preste atenção às questões formuladas,
procurando efectuar as actividades aí propostas. Estas permitir-lhe-ão
não só descobrir as ideias dos textos, segundo uma progressão lógica,
mas também verificar e aplicar conhecimentos adquiridos em capítulos
anteriores.
Texto 1:
Ay flores, ay flores do uerde
pyno
se sabedes nouas do meu amigo!
Ay Deus, e hu é?
Ay flores, ay flores do uerde ramo,
se sabedes nouas do meu amado!
Ay Deus, e hu é?
Se sabedes nouas do meu amigo,
aquele que metiu do que pos cõmigo!
Ay Deus, e hu é?
Se sabedes nouas do meu amado,
aquel que mëtiu do que mh á jurado?
Ay Deus, e hu é?
Vos me preguntades polo uoss' amigo,
e eu ben uos digo que é san' e uiuo;
Ay Deus, e hu é?
Vos me preguntades polo uoss' amado,
e eu bë uos digo que é uiu' e sano.
Ay Deus, e hu é?
E eu bë uos digo que é san' e uyuo,
e seera uosc' ant' o prazo saydo;
Ay Deus, e hu é?
E eu be uos digo que é uiu' e sano,
e seera uosc' ant' o prazo passado!
Ay Deus, e hu é?
D. Dinis, C. V. 171, C. B. N. 533
1 - Leia atentamente o texto, procurando captar as ideias.
Para sua ajuda, as palavras transcritas em letra negrita ou
«bold» encontram-se na nota[28].
2 - A composição pode dividir-se em duas partes distintas,
com igual estrutura, existindo em cada uma delas um emissor e um
receptor, entre os quais se estabelece a comunicação:
2.1 - Delimite as duas partes presentes na composição;
2.2 - Identifique o sujeito emissor e o receptor para
cada uma das partes;
2.3 - Identifique, transcrevendo-as, as mensagens
produzidas nos dois momentos da situação de comunicação existente no
texto.
3 - Identifique o tema e o assunto do texto.
4 - Quando uma pessoa se encontra preocupada com algum
problema, a maneira de aliviar o sofrimento é desabafar com alguém com
quem tenha grande amizade e confiança. A essa pessoa com quem se
desabafa e nos ouve pacientemente, dando-nos palavras de conforto, dá-se
o nome de confidente.
4.1 - Haverá no texto uma situação de confidência?
4.2 - Caso afirmativo, identifique os intervenientes.
4.3 - Diga, por palavras suas, o que se passou.
5 - Ideologicamente, a composição pode reduzir-se a sete
versos apenas. Efectue a síntese das ideias, transcrevendo esses versos.
6 - Do ponto de vista formal, uma composição pode ser
isomórfica ou heteromórfica. Se é constituída por estrofes todas elas
com a mesma estrutura, será isomórfica; se as estrofes apresentam uma
estrutura variável, por exemplo, número de versos diferente ou diferente
número de sílabas métricas, a composição será heteromórfica.
6.1 - Por quantas estrofes (coplas ou coblas) é
constituída a composição?
6.2 - Verifique se os dois primeiros versos de cada
estrofe apresentam dez sílabas métricas;
6.3 - Diga quantas sílabas métricas apresenta o último
verso de cada estrofe;
6.4 - Que nome dá a esse último verso sempre igual em
todas as estrofes?
7 - Se ideologicamente a composição é relativamente pobre,
formalmente a cantiga apresenta características que lhe conferem ritmo e
musicalidade.
7.1 - Sublinhe, usando cores diferentes, os versos que
são rigorosamente iguais dois a dois.
7.2 - Verifique agora, relativamente às quatro primeiras
estrofes, se o segundo verso da primeira estrofe é o primeiro da
terceira e se o segundo verso da segunda estrofe é o primeiro da quarta.
7.3 - Efectue actividade idêntica à anterior
relativamente às quatro estrofes seguintes.
7.4 - Compare as estrofes duas a duas. Verifique o que é
igual nos versos e quais as alterações introduzidas. Repare, por exemplo,
nos seguintes versos das estrofes 5 e 6:
«e eu ben uos digo que é san' e uiuo;»
«e eu be uos digo que é uiu' e sano.»
Registe as conclusões que esta análise lhe permitiu tirar.
8 - Classifique os versos quanto ao esquema rimático e à
qualidade da rima[29].
Texto 2:
Quer' eu en maneyra de proençal
fazer agora hum cantar d'amor
e querrey muyt' i loar mha senhor,
a que prez nem fremusura non
fal
nen bondade, e mays uos direy en:
tanto a fez Deus conprida de ben
que mays que todas las do mundo ual.
Ca
mha senhor quiso Deus fazer tal
quando a fez, que a fez sabedor
de todo bë e de mui grã ualor
e cõ tod' est [o] é mui comunal,
aly hu deue; er deu-lhi bõ
sen
e des y nõ lhe fez pouco de ben,
quando nõ quis que lh' outra foss' igual.
Ca en mha senhor nüca Deus pos mal,
mays pos hi prez e beldad' e loor
e falar mui bë e rjir melhor
que outra molher; des y é leal
muyt', e por esto nõ sey oi' eu que
possa compridamente no seu be
falar, ca nõ á, tra lo seu ben, al.
D. Dinis, C. V. 123, C. B. N. 485[30]
1 - Leia atentamente o texto acima transcrito, procurando
captar-lhe as ideias. Consulte a nota[31],
que lhe
apresenta a explicação das palavras transcritas em letra negrita ou
«bold».
2 - Foi dito nas páginas anteriores relativas ao período
galaico-português que uma das características desta época era a grande
importação de vocábulos de origem francesa e provençal.
2.1 - Prove que a composição transcrita é um claro
exemplo da influência da língua e cultura francesa e provençal em
Portugal (Releia com atenção as notas referidas na alínea 1;
2.2 - Transcreva a expressão do texto que melhor revela
essa influência;
2.3 - Que pretende concretamente o sujeito poético?
3 - Transcreva do texto expressões referentes às
qualidades físicas, psicológicas, morais e sociais da «dona»,
preenchendo o quadro apresentado:
|
Qualidades físicas |
Qualidades
psicológicas |
Qualidades
morais |
Qualidades
Sociais |
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|
|
|
|
4 - Explique o sentido das seguintes expressões:
4.1 - «tanto a fez Deus conprida de ben / que mays que
todas las do mundo ual» (vv. 7-8);
4.2 - Qual a intenção do sujeito poético ao efectuar esta
afirmação?
4.3 - Esta afirmação encontra-se amplificada pelo
processo repetitivo: transcreva outras expressões em que a mesma ideia
é reforçada.
4.4 - A superioridade da mulher «louvada» é "superlativada"
com uma expressão com a qual o sujeito poético conclui a sua
caracterização. Transcreva-a e explique o sentido.
5 - As cantigas de medievais podiam ser de refrão ou de
mestria. As primeiras eram consideradas mais simples, de feição mais
popular, enquanto as segundas eram composições de mestre, isto é,
composições que exigiam maior mestria, maiores conhecimentos e
habilidade por parte do trovador. Segundo José Joaquim Nunes, as
cantigas de mestria seriam «as mais antigas, propriamente cortesãs e de
pura imitação provençal». Por outro lado, as cantigas profanas de
temática amorosa dividem-se em duas classes, conforme o amor é visto
pelo lado feminino ou pelo lado masculino. Se é a rapariga que fala do
amigo, teremos uma «cantiga de amigo»; se, pelo contrário, o amor é
visto pelo lado do homem, que fala da mulher amada, teremos uma cantiga
de amor.
Tendo em conta as informações fornecidas no parágrafo
anterior, classifique o texto em análise.
6 - Na lírica medieval, existia um processo poético
trovadoresco que consistia em ligar as estrofes entre si por meio de uma
conjunção tal como, por exemplo, car, ca, pois,
e, etc, conhecido pelo nome de atafinda. Veja se tal se
verifica na composição em análise, destacando e classificando
morfologicamente a conjunção utilizada.
7 - Analise formalmente o texto tendo em conta as alíneas:
7.1 - isomorfismo ou heteromorfismo;
7.2 - número de sílabas métricas;
7.3 - esquema rimático;
7.4 - Classificação da rima quanto:
7.4.1 - ao esquema rimático;
7.4.2 - à qualidade da rima;
7.5 - Classificação dos versos quanto à acentuação.
8 - Elabore um comentário pessoal ao texto, expondo o que
pensa acerca dele [alguns aspectos que poderá ter em conta: valor
literário; valor documental; actualidade ou anacronismo do tema, etc.]
[32].
|
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Figura 36: Como um
monge rogava sempre Santa Maria que lli mostrasse o ben do paraiso.
Ilustração da cantª CIII, estampa 114. |
|
Texto 3[33]:
Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao
canto da passarya porque lle pedia que lle mostrasse qual era o
ben que auian os que eran en Paraiso.
Quen a Uirgen ben seruira
a Parayso ira.
E daquest' un gran miragre uos quer' eu ora contar,
que fezo Santa Maria por um monge, que rogar
ll' ia sempre que lle mostrasse qual ben en Parais' á
Quen a Uirgen ben seruira...
E
que o uiss' en ssa uida, ante que fosse morrer,
Et porend' a Groriosa uedes que lle foi
fazer:
fez-lo entrar en hüa orta, en que muitas vezes
ia
Quen a Uirgen ben seruira...
Entrara; mais aquel dia fez que hüa font' achou
mui crara et mui fremosa, et cab' ela
s'assentou;
et, pois lauou ben sas mãos, diss': «Ai, Uirgen, que
sera?
Quen a Uirgen ben seruira...
Se uerei do Parayso o ch' eu muito pidi,
algun pouco de seu uiço ante que saya d' aqui,
e que sabia do que ben obra que galardon
auera?»
Quen a Uirgen ben seruira...
Tan toste que acabada ouu' o mong' a oraçon,
oyu hüa passarinna cantar log' en tan bon son,
que se escaeceu seendo et, catando
sempr' ala,
Quen a Uirgen ben seruira...
Atan grand sabor auia daquele cant' e daquel lais,
que grandes trezentos anos esteue assi ou mays,
cuidando que non esteuera senon pouco com' esta
Quen a Uirgen ben seruira...
Monge algüa vez no ano, quando sal ao uergeu;
des i foi-ss' a passarynna, de que foi a el mui greu,
et diz: «Eu d'aqui ir-me quero, ca oy mais comer
querra
Quen a Uirgen ben seruira...
O convent'.» Et foi-sse logo et achou un grand portal,
que nunca uira, et disse: «Ai, Santa Maria, ual!
Non é est' o meu mõesteiro; pois de mi que se fara?»
Quen a Uirgen ben seruira...
Des i
entrou na eigreja, et ouueron grand pauor
os monges quando o uiron, et demandou-ll' o prior
dizend': «Amigo, uos quen sodes ou que buscades aca?»
Quen a Uirgen ben seruira...
Diss' el: «Busco meu abade, que agor' aqui leixey,
et o prior e os frades, de que mi agora
quitey
quando fui a aquela orta; u seen, quen mi o dira?»
Quen a Uirgen ben seruira...[34]
Quand' est' oyu o abade, teue-o por de mal
sen
e outrossi o conuento; mais, des que souberon ben
de que fora este feyto, diseron: «Quen oyra
Quen a Uirgen ben seruira...
Nunca tan gran marauilla como Deus por este fez,
pelo rogo de ssa Madre, Uirgen Santa de gran prez!
E por aquesto a loemos, mais quen a non loara,
Quen a Uirgen ben seruira...
Mais d' outra cousa que seia? Ca, par Deus, gran direit'
é
pois quanto nos lle pedimos nos da seu Fill' a la fee,
por ela, e aqui nos mostra o que nos depois dara.
Quen a Uirgen ben seruira...
a Parayso ira.
CSM, CE J. b. 2 e T. j. 1, CIII (ed. de Valmar), R. Lapa,
Alfonso X, o Sabio, Cantigas de Santa Maria, 15. (Vd. também op.
cit. de Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado, pp. 152-154.
1 - Não leia, por enquanto, o texto anteriormente
transcrito. Em vez disso, observe atentamente a
figura 36, procurando
interpretar a narrativa aí apresentada. Para sua ajuda, são-lhe
apresentadas a seguir algumas orientações:
1.1 - Que tipo de texto se encontra documentado na figura
36? Em caso de dúvida, observe também o exemplar apresentado na
figura
37.
2 - Centre a sua atenção na primeira imagem da figura 36:
2.1 - Onde se situa a acção?
2.2 - Que personagens aí se encontram?
2.3 - Que estará a fazer a personagem que se encontra na
metade esquerda?
3 - Centre a sua atenção nas três imagens seguintes.
3.1 - Onde se passa a acção?
3.2 - Que faz a personagem principal? (Preste atenção às
posições e atitudes assumidas por ela nas três quadrículas)
3.3 - Observe mais atentamente a terceira imagem. Além da
personagem principal, encontra-se outra aí presente, cujo papel é
importante. Localize-a.
3.4 - Trace uma diagonal na imagem três, ligando o canto
inferior esquerdo ao canto superior direito.
3.4.1 - Que elementos se encontram nessa diagonal? Se não
conseguiu responder à pergunta 3.3, tente fazê-lo agora.
3.4.2 - Procure descobrir o que estará a personagem
principal a fazer.
3.5 - Observe nas três imagens o portal de entrada do
mosteiro.
3.5.1 - Que alterações observa?
3.5.2 - Qual a função desempenhada por este elemento no
desenvolvimento da história?
4 - Observe a atitude da personagem na imagem 4.
4.1 - Que facto revela?
5 - Centre a sua atenção nas imagens 5 e 6.
5.1 - Onde se passa a acção?
5.2 - Quantos elementos humanos aí se encontram?
5.3 - Que facto se estará a passar?
6 - Centre a sua atenção na imagem 6.
6.1 - Em que parte do mosteiro se passa a acção?
6.2 - Compare com a imagem 1.
6.2.1 - Tratar-se-á do mesmo local?
6.2.2 - Tratar-se-á do mesmo período de tempo?
6.3 - Para ajudar a descobrir a resposta para a questão
6.2.2, efectue a seguinte actividade:
6.3.1 - Compare o portal de entrada nas imagens 1 e 6.
6.3.2 - Observe a lanterna suspensa nas imagens 1 e 6.
6.3.3 - A que conclusão chegou?
7 - O que estarão os monges a fazer na imagem 6?
7.1 - Como explica a sua atitude?
8 - Chegou agora o momento de ler o texto. Faça-o
consultando, para sua ajuda, as notas apresentadas com o vocabulário.
Para facilitar a leitura, salte o refrão.
9 - Estabeleça uma relação entre o texto que acabou de
ler e a banda desenhada medieval presente na figura 36.
9.1 - Procure fazer corresponder os diferentes momentos
da sequência narrativa às imagens da figura 36.
9.2 - Tendo por base os três períodos de tempo
fundamentais, divida o texto em partes.
|
|
|
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Figura 37: Aspecto da
primeira página de uma banda desenhada portuguesa de 1933. |
|
10 - Efectue a leitura da B. D. presente na figura 37.
10.1 - Compare-a com a da figura 36. Responda às questões,
procurando justificar o seu ponto de vista.
10.1.1 - Qual a mais interessante?
10.1.2 - Qual a mais rica ideologicamente?
10.1.3 - Qual a melhor relativamente à qualidade da
imagem?
11 - Analise formalmente o texto 3, tendo em conta os
seguintes aspectos:
11.1 - Agrupamento estrófico: composição hetero ou
isomórfica?
11.2 - Tipo de composição.
11.3 - Número de sílabas métricas.
11.4 - Esquema rimático.
11.5 - Tipo de rima.[35]
[16] – JOSÉ JOAQUIM NUNES, Crestomatia Arcaica, 5ª ed., Lisboa,
Livraria Clássica Editora, 1959, pp. XXI-XXIII.
[17] –
Vejam-se os seguintes exemplos de palavras divergentes, que
nos mostram bem a diferença e o grau de evolução entre as duas vias:
LATIM CLAVEM -----> via erudita clave; via popular
chave
LATIM FOCUM -----> via erudita foco; via popular fogo
LATIM PLANUM -----> via erudita plano; via popular chão
Enquanto na via erudita, nos exemplos citados, apenas ocorre a
apócope da desinência do acusativo latino, na via popular ocorrem
diversos fenómenos:
CLAVE(M)
> clave > chave (apócope e palatalização);
FOCU(M)
> foco > fogo (apócope e sonorização);
PLANU(M)
> plano >*chano > chão (apócope, palatalização, síncope e nasalização.
[18] –
SERAFIM DA SILVA NETO, História da Língua Portuguesa, 3ª
ed., pp. 380 a 395.
[19] – FERNÃO LOPES, Crónica de D. João I, 1ª parte.
[20] –
Chegaram até nós quatro cancioneiros: o Cancioneiro da
Ajuda, o Cancioneiro da Vaticana, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e as
Cantigas de Santa Maria, de Afonso X.
O Cancioneiro da Ajuda é de todos o mais completo.
Apresenta apenas composições anteriores ao reinado de D. Dinis e
deixa de fora os géneros mais vulgares, como as cantigas de amigo e
as de escárnio e de maldizer. É no entanto valioso, porque é da
própria época, apresentando a grafia de então e valiosas iluminuras,
que documentam aspectos da vida da época.
Os Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional
foram compilados após a morte de D. Dinis, abrangendo um período de
tempo mais vasto, apresentando poetas anteriores à época de D.
Afonso III e posteriores a D. Dinis. Apresentam além disso todos os
géneros de composições.
De todos, o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca
Nacional, também conhecido por Cancioneiro de Colocci-Brancuti
por ter pertencido a este erudito italiano. Foi adquirido pelo
governo português em 1924.
Para um conhecimento mais aprofundado, quer dos cancioneiros,
quer da lírica medieval, aconselha-se, além dos verbetes respectivos
presentes em enciclopédias, a obra de ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA e ÓSCAR
LOPES, História da Literatura Portuguesa, 8ª edição, Porto
Editora, pp. 15 a 74.
[21] –
Regista-se entre parênteses rectos, embora sem
recorrer a uma transcrição fonética, a pronúncia das palavras cuja
vogal acentuada com circunflexo tinha um som fechado.
[22] –
PILAR VÁZQUEZ CUESTA e MARIA ALBERTINA MENDES DA LUZ, Gramática
da língua portuguesa, Edições 70, 1988, 702 pp.
[23] –
Para um conhecimento mais aprofundado da lírica medieval,
aconselham-se, entre outras, as seguintes obras:
CORRÊA DE OLIVEIRA e SAAVEDRA MACHADO, Textos portugueses
medievais, 2ª edição, Coimbra, Atlântida Editora, 1961.
JOSÉ JOAQUIM NUNES, Crestomatia arcaica, 5º edição, Lisboa,
Livraria Clássica Editora, 1959, CXXII+624 pp.
[24] –
Comentários às palavras por nós destacadas no documento:
offeyro:
do latim offerio, de offerire, por oferre, que
significa oferecer; moensteyro: do latim *monisteriu-
'mosteiro'; Vayram: do latim Valeriani; eygeygga:
do latim ecclesia- 'igreja'; hu: ao lado de outras
formas como u e us, é o artigo definido masculino do
singular o (do latim illu-); fecta: do latim
factus, a, um 'feita'; Petri: apelido patronímico, forma
do genitivo do latim Petrus.
[25] – SILVIO PELLEGRINI, Studi su trove e trovatori della prima
lirica ispano-portoghese, Turim, 1937, pp. 59-71.
[26] –
A cantiga atribuída a D. Sancho I tem tido várias
leituras, das quais transcrevemos algumas:
1 - Segundo Silvio Pellegrini, na obra citada, apresenta a seguinte
forma:
Ay ei coitada como viuo
Em gram cuydado por meu amigo
que ey alongado chuyto me tarda
O meu amigo na guarda
Ay eu coitada como viuo
Em gm deselo por meu amigo
Que tarda e non ueio muyto me tarda
o meu amigo na guarda
2 - Segundo Oskar Nobiling, em Archiv für das Studium der neueren
Sprachen und Literaturen, CXXI, p. 999:
Ai eu coitada!
Como vivo em gram cuidado
por meu amigo
que ei alongado!
Muito me tarda
O meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada!
Como vivo em gram desejo
por meu amigo
que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
3 - Segundo Leite de Vasconcelos, em Textos arcaicos, 3ª ed.,
pp. 17-18, encontramos a seguinte forma:
Ay eu coitada, como vivo en gran cuidado
por meu amigo que ei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ay eu coitada, como vivo en gran desejo
por meu amigo que tarda e não vejo
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
4 - Na edição da REVISTA DE PORTUGAL, cuja transcrição é idêntica à
de Teófilo Braga, na sua História da Literatura Portuguesa, Idade
Média, p. 188, encontramos o seguinte:
Ay! eu coitada
como viuo
En gram cuydado
por meu amigo
Que ey alongado!
Muyto me tarda
o meu amigo
na guarda!
Ay! eu coitada
como viuo
En gram deseio
por meu amigo
Que tarda e non veio!
Muyto me tarda
o meu amigo
na guarda!
[27] –
Da Crestomatia Arcaica de José Joaquim Nunes transcrevemos
os dados biográficos relativos aos poetas apresentados nestas
páginas:
Pai Soares, de Taveiroos
─
(Taveiroos equivale à forma actual Taveirós) Pertence este trovador
à nobre família dos Velhos, a qual mais tarde devia ilustrar
ainda outro seu descendente, fr. Gonçalo Velho, o descobridor dos
Açores; a sua actividade poética, que se manifestou em cantares de
amor e de amigo, deve ser colocada nos primeiros decénios do século
XIII, parecendo até que ainda poetou no século XII (pág. 542 da op.
cit.).
D. Sancho I
─
A ser o segundo rei português o autor da cantiga de amigo que no
Cancioneiro de Colocci Brancuti tem o nº 348, como prova D. Carolina
Michaëlis de Vasconcelos (...), é este um dos primeiros que suspirou
versos na sonora língua portuguesa (pág. 546 da op. cit.).
D. Dinis
─
Ocupa sem dúvida o primeiro lugar entre os trovadores
galego-portugueses o príncipe que a história cognominou de
rei-lavrador. Do seu zelo pela instrução do povo é testemunho
irrefragável a fundação da Universidade, do seu talento e fecunda
veia poética falam exuberantemente os seus versos. Embora admirador
e sequaz da escola provençal, não desdenhou o género popular, sendo
um dos que maior número de composições nos deixaram desta espécie. A
julgar pela especial estima que consagrou a seu filho bastardo, D.
Afonso Sanchez, é de crer que algumas das suas cantigas de amor
sejam dirigidas à mãe deste, Aldonça Rodrigues da Telha, filha dum
fidalgo, Rui Gomes da Telha, nomeado numa das Cantigas, a 1.059, do
Cancioneiro da Vaticana. Enquanto o mais rico dos trovadores
figura nos Cancioneiros com 56 poesias apenas, existem deste monarca
138, repartidas pelos três géneros (pág. 532 da op. cit.).
D. Afonso de Leão e Castela
─
Ocupa D. Afonso X, o sábio, um lugar distinto entre os trovadores do
seu tempo que utilizaram a língua galego-portuguesa nos seus cantos,
não só pelo que nos legou, mas principalmente pela protecção e
acolhimento que na sua corte dispensou a quantos cultivavam a poesia
nessa época. Além de cantigas de amor e maldizer em que se
exercitou na sua mocidade, deu-se a um género especial, o verso
sacro, escrevendo as suas Cantigas de Santa Maria, nas quais
canta vários prodígios atribuídos à protecção da Virgem (...) (pp.
529-530 da op. cit.).
[28] –
pyno: do latim PINU(M) - pinho, pinheiro; nouas: o
mesmo que novas, ou seja, novidades, notícias; hu: do latim
UBI, confronte-se com o francês où, significa 'onde, em que'; pos
cõmigo: combinou comigo.
[29] –
A composição de D. Dinis apresentada para análise é uma cantiga de
amigo de refrão e uma paralelística perfeita com a característica de
ser dialogada. Nas quatro primeiras estrofes ou coplas (na época
trovadoresca, as estrofes eram designadas pelas expressões cobra,
cobla ou talho), a rapariga pergunta às flores do
verde pinho se têm notícias do seu amado e, nas quatro seguintes, as
flores sossegam-na dizendo-lhe que o amigo está bem e que estará com
ela antes do prazo marcado.
Temos por tema o amor ou a preocupação da rapariga pelo amigo ou
amado ausente. Quanto ao assunto, verificamos que a época é aquela
em «que a flor tem consigo a cor», como diria poeticamente D. Dinis
para se referir à Primavera. Possivelmente, o amigo ausente e que
lhe jurou regressar andaria no fossado e ela, ansiosa e
apaixonada, pede às flores do pinheiro que lhe dêem notícias dele.
Elas sossegam-na dizendo-lhe que está vivo e são e que estará com
ela antes do prazo expirado.
Do ponto de vista formal, temos uma composição isomórfica,
constituída por estrofes formadas por um dístico decassilábico com
rima toante, excepto na 3ª e 4ª estrofes, e um refrão de cinco
sílabas. Possivelmente a composição seria cantada por três vozes,
isto é, a primeira parte por uma das moças que dançavam, a segunda
parte por outra e o refrão seria cantado por um coro. A cantiga é
também uma paralelística perfeita, uma vez que há repetição de
versos segundo um esquema perfeito: o segundo verso da primeira
estrofe é o primeiro da terceira e o segundo da segunda é o primeiro
da quarta, repetindo-se depois o mesmo esquema na segunda metade do
texto. Além deste tipo de paralelismo, verificamos existir também
paralelismo estrutural e semântico entre os versos. Por exemplo, os
primeiros versos das duas primeiras estrofes apresentam não só a
mesma estrutura como também a mesma ideia, apenas havendo a troca de
pyno por ramo. Idêntico facto ocorre com os segundos
versos nestas e nas estrofes seguintes. Na segunda metade ocorre
também um quiasmo, na medida em que as palavras, por exemplo, vivo e
sano, são as mesmas, mas trocando entre si de lugar.
Ideologicamente a composição é pobre, podendo reduzir-se a sete
versos apenas, que passamos a transcrever em linguagem actual: «Ai
flores, ai flores do verde pinho, / se sabedes novas do meu amigo, /
aquele que mentiu relativamente ao que combinou comigo, / Ai Deus,
e onde está? // Vós me perguntais pelo vosso amigo / e eu bem vos
digo que está são e vivo / e estará convosco antes do prazo expirado».
Se ideologicamente a composição é relativamente pobre, as
repetições frequentes, próprias do paralelismo, e a sua
interpretação por mais de uma voz deveriam conferir-lhe uma certa
plasticidade, musicalidade e ritmo. Pena é que, à excepção de cinco
cantigas de Martim Codax, se tenham perdido os registos musicais.
[30] –
Para os textos transcritos na sugestão de trabalho
optámos, de entre as várias transcrições disponíveis em obras sobre a
lírica medieval, pelas versões presentes na colectânea Textos
Portugueses Medievais de Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado,
anteriormente citada.
[31] –
À medida que for lendo o texto, preste atenção ao vocabulário que a
seguir lhe é explicado. Deste modo poderá ficar com uma ideia mais
rigorosa do sentido do texto:
querrey:
forma da primeira pessoa do singular do futuro do indicativo do
verbo querer, do latim QUAERERE, que significa 'buscar, procurar'.
i:
advérbio de lugar aí, do latim IBI (latim IBI >ii > i), que
nos faz lembrar o pronome adverbial y da língua francesa.
loar:
infinito do verbo louvar, do latim lodare, em vez da
forma erudita LAUDARE (latim LAUDARE > lodare > loar). Eis o
sentido do verso onde se encontram esta e as duas palavras
anteriores em português actual: «e procurarei aqui (ou aí) louvar a
minha senhora». Como já foi anteriormente referido, as palavras
terminadas em -OR eram nesta época uniformes, o que equivale a dizer
que mantinham a mesma forma para o masculino e o feminino.
prez:
palavra proveniente do provençal pretz (do latim PRETIU-, que
deu a actual forma portuguesa 'preço'), que designa o conjunto de
dotes ou qualidades que tornavam a senhora digna de ser amada,
podendo ser traduzida por 'mérito, dignidade'.
fal:
terceira pessoa do singular do presente do indicativo de falir,
do verbo latino FALLERE (lat. fallit > fal). Neste caso, poderemos
fazê-la equivaler a faltar: «a quem mérito nem formosura não faltam».
en
ou ë: forma proveniente de ende, do latim INDE, que
terá dado a forma actual do pronome adverbial francês en e
que encontramos também no português da época galaico-portuguesa com
o valor de 'disso, acerca disso, daí'.
conprida:
forma proveniente do verbo comprir (do latim COMPLERE);
significa 'perfeita, completa'. No caso do verso em que se encontra,
«conprida de ben» significará 'cheia de bem'.
ca:
palavra que facilmente entenderemos se nos lembrarmos do francês
car. É a conjunção subordinativa causal, proveniente do latim
QUIA e significa 'porque'.
comunal:
palavra proveniente do «baixo latim» COMMUNALE-, está relacionada
com os vocábulos comum, comunidade, comunicar,
o que significa que a senhora era muito sociável, tratável, com boas
maneiras ou até mesmo lhana. Como diz o próprio poeta, é ela
«mui comunal, aly hu deve», que é como quem diz 'sabia comportar-se
condignamente em sociedade'.
hu:
palavra que faz evocar a forma francesa où, é uma palavra
proveniente do latim UBI, que significa 'onde, quando'.
sen:
tem a ver com senso, podendo significar 'juízo, pensar, opinião'.
des y:
significa 'além disso'.
tra lo:
significa 'além do'.
al:
provém do latim vulgar ale, por sua vez de ALID, ALIUD,
significando 'outro, outra, outra coisa, outra pessoa, alguma coisa'.
[32] –
Quando apresentámos algumas das características do
português do período trovadoresco ou galaico-português, referimos a
grande influência das línguas francesa e provençal na península, com
importação de grande número de vocábulos. Tal como hoje, já por esta
altura se notava uma grande influência da cultura francesa em Portugal,
o que não será de admirar se nos lembrarmos da ascendência francesa dos
nossos primeiros governantes. A composição transcrita de D. Dinis é uma
prova irrefutável dessa influência. Apesar de noutra composição este
grande poeta criticar os poetas provençais pela sua grande falta de
sinceridade amorosa, ao trovarem por suas damas apenas na primavera, ele
próprio quer agora compor uma cantiga de amor à maneira provençal.
Esta cantiga caracteriza-se pelo seu isomorfismo e isometria.
Trata-se de uma cantiga de mestria, isto é, de uma cantiga
sem refrão, com três coplas isomórficas e isométricas, constituídas
cada uma por sete versos decassilábicos agudos.
Na composição o poeta exprime o desejo de fazer uma cantiga de amor
à maneira provençal, a fim de nela louvar muito a sua senhora, a
quem Deus concedeu tantos dotes físicos e morais que não há no mundo
outra que se lhe assemelhe.
No retrato traçado predominam essencialmente os dotes
psicológicos. Exceptuando a «fremusura» e «beldade», termos
praticamente sinónimos, tudo o mais se refere às qualidades morais,
psicológicas e sociais da dama, expressas através das palavras ou
expressões que destacamos do texto:
prez; bondade; comprida de bem; sabedora de todo o bem; de muito
grande valor; muito comunal ali onde deve (o que poderá ser
entendido de duas maneiras: ou que é muito sociável, com boas
maneiras, quando é ocasião para isso, ou que tem estas qualidades na
medida certa, nem a mais nem a menos); tem bom senso; é exemplar
único, sem igual; e além de tudo isto nunca Deus lhe pôs mal, mas
sim louvor, falar muito bem e rir melhor que outra mulher; fê-la
muito leal a ponto de ser impossível falar de maneira completa
acerca dela. Por muito bem que se diga dela, ainda há-de ficar muito
por dizer.
Além da grande enumeração de qualidades, com recurso quer ao assíndeto, quer ao polissíndeto e aos advérbios, encontramos as
estrofes ligadas entre si por meio de conjunção, neste caso da
conjunção subordinativa ca, processo que na época
trovadoresca tinha a designação de atafinda.
O
esquema rimático da composição pode ser reduzido à fórmula 3 (a b b
a c c a), havendo por isso rima emparelhada e interpolada. Quanto à
qualidade, a rima é consoante. Quanto à acentuação, os versos são
todos agudos.
[33] –
Não leia já o texto transcrito. Se o fizer, prejudicará a
sua actividade de reflexão. Passe directamente para
as questões que lhe
são apresentadas a seguir ao texto. Só depois, quando tal lhe for
solicitado, deverá efectuar a leitura do texto. As palavras em letra
negrita ou «bold» encontram-se explicadas nas notas ao texto.
[34] –
passarya: também grafado com as formas passarinna,
passarinha, é uma palavra proveniente do latim PASSER + INU.
Hoje masculina e com a forma passarinho, era na época arcaica
do género feminino.
porend:
esta palavra é proveniente do latim vulgar porinde, por sua
vez do latim PROINDE. Significa 'por isso, por este motivo, por
causa disso, portanto'; pode também aparecer registada com as
variantes poremde, por em, por en ou por
ende.
groriosa:
o mesmo que gloriosa, ocorreu a assimilação regressiva
completa do fonema L por influência do fonema da sílaba seguinte
(lat. GLORIOSUS, A, UM; gloriosa- > groriosa).
orta:
o mesmo que horta, apresenta o sentido do actual vocábulo
horto, isto é, jardim.
ia:
o mesmo que já (do latim JAM), significa 'logo, desde este
momento, já'.
crara:
o mesmo que clara (do latim CLARUS, A, UM), pode surgir com o
valor de adjectivo -claro- ou de advérbio -claramente,
manifestamente,evidentemente.
cab:
forma apocopada ou elidida de cabo (do latim CAPUT 'cabeça,
cume, cimo'), pode significar 'princípio, começo, fim, extremidade,
extremo, cume, junto de, ao lado de; pode surgir em diferentes
expressões como «como de cabo» ('como de princípio, de começo') «e
cabo» ('ao cabo de, ao fim de'), «de cabo» ('de junto de') ou «por
meu cabo» (fórmula de juramento).
che
ou ch': forma da segunda pessoa do pronome pessoal, que ainda
subsiste no galelo e que corresponde ao actual português te.
sabia:
forma do presente do conjuntivo do verbo saber: saiba.
galardon:
também registado galardom ou gualardom, é uma palavra
proveniente do antigo alemão WIDARLON e significa 'galardão, prémio,
recompensa'.
toste:
forma do provençal tost, que deu no actual francês tôt,
proveniente do latim TOSTUS, forma do particípio passado de TORRERE,
significa 'logo, depressa, cedo'.
se escaeceu seendo:
significa que se enlevou, que se esqueceu de tudo quanto o rodeava e
que ficou suspenso, alheado de tudo, como em êxtase.
catando:
forma do verbo catar (do latim CAPTARE), significa 'olhar,
procurar', examinar'.
lais:
também registado com as formas lai, lays ou laix,
de origem céltica (no irlandês, laid, 'canto, poema; no
francês, lai, que deu origem ao inglês lay), designa
um poema lírico ou narrativo, cantado pelos jograis ingleses. É
bastante conhecido o lais de João de Lobeira, poeta que frequentou a
corte portuguesa entre 1258 e 1285.
sal:
forma do verbo SALIRE, significa 'sai'.
vergeu:
o mesmo que vergel, pomar, jardim.
greu:
forma proveniente do latim GRAVIS, que significa 'grave, pesado', (latim
GRAVIS > *grevis > greve > greu); significa neste texto 'penoso,
desagradável'.
oy mais:
aparece também registado oymais (do latim HODIE MAGIS) e
significa 'desde hoje, doravante, já'.
querra:
forma da terceira pessoa do singular do futuro do indicativo do
verbo querer (cfr. fr. voudra); o étimo latino é QUAERERE,
que significa 'querer, querer bem, bem querer, amar'.
ual:
imperativo optativo do verbo valer (latim VALERE), significa 'valha-me,
acuda-me, socorra-me'.
des i:
surge também com as formas desy, des i, desi,
des hi e provém do latim DE EX HIC e pode significar 'depois,
então, desde então, além disso, ainda por cima'.
demandou:
do latim DEMANDARE, pode significar 'perguntar, demandar, procurar,
buscar, pelejar'; confronte-se com o actual verbo francês
demander.
quitey:
forma verbal proveniente do francês quitter, do baixo latim
jurídico QUITARE, de QUIETUS, forma do supino do verbo QUIESCERE;
QUIETUS significa 'quieto, calmo, tranquilo'; a forma quitar
significa 'deixar, afastar, separar, livrar de, pôr de lado,
desobrigar, pagar'.
seen:
também registada com a forma seem, é a terceira pessoa do
plural proveniente do latim SEDENT, de SEDERE, que significa 'estar'.
sen:
também registado com a grafia ssem, provém do provençal
sen que deu no francês actual sens ('sentido, senso'),
proveniente por sua vez do latim SENSUS, significa 'juízo,
inteligência'; na expressão «de mal sen» significa 'mau juízo,
loucura, louco'.
[35] –
O texto transcrito, da autoria de Afonso X (vejam-se as
notas anteriores, nas quais foram apresentados alguns elementos acerca
dos autores), embora considerado como uma cantiga de refrão e de
atafinda, é no fundo uma narrativa versificada, com todas as
características próprias do género narrativo: narrador e narratário,
personagens, referentes espácio-temporais e acção, à qual nem sequer
falta o diálogo. Para melhor atestar a nossa opinião, uma
maravilhosa «banda desenhada» ilustra a cantiga CIII, cuja cópia
está muito aquém da beleza original.
Poder-se-á falar de banda desenhada quando nos encontramos em pleno
período galaico-português? Mas que outro nome mais adequado
poderemos empregar para uma sequência de seis imagens de formato
quadrado, dispostas em três faixas ricamente emolduradas, às quais
não falta sequer a respectiva legenda, evocando a moderna banda
desenhada surgida por volta de 1920-1930?
Recordemos, por exemplo, para o caso de Portugal, algumas das
primeiras revistas de B. D. aqui publicadas, como é o caso, por
exemplo, do ABCzinho, cujo primeiro número surgiu em 15 de
Outubro de 1921, ou do jornal infantil Tic-Tac, surgido nos
anos 30, e muitos outros. Comparando, por exemplo, a primeira página
desta última publicação com a estampa 114 (vejam-se as figuras 36 e
37), que ilustra a cantiga transcrita, teremos de admitir que,
exceptuando o texto, mais completo na revista, a sequência de seis
imagens apresenta maior riqueza de informação e originalidade. Se
observarmos a terceira quadrícula, encontraremos uma técnica gráfica
utilizada na banda desenhada mais moderna, em que certas figuras
ultrapassam os limites da cercadura, parecendo sair do espaço que
lhes está destinado. Nesta terceira imagem, a figura de um
passarinho, figura importante para o desenrolar da acção, encontra-se
no ponto mais alto da imagem, na extremidade da árvore, saindo dos
limites da quadrícula e ocupando a linha forte da imagem, formada
pela diagonal que une o canto inferior esquerdo ao canto superior
direito, permitindo estabelecer espacialmente a relação directa
entre o monge, que olha e escuta embevecido, e a avezita. Os
elementos envolventes, além de situarem a acção no espaço, permitem
uma leitura do tempo. Prestando-se atenção aos pormenores
arquitectónicos, especialmente aos relativos ao portal de entrada,
veremos que estes se vão alterando, que vão mudando de estilo e
enriquecendo-se, assinalando a passagem do tempo e marcando três
épocas diferentes. Igualmente o interior da capela onde o monge
reza à Virgem sofre alterações. Atentando-se na janela e na candeia
que ilumina o altar, verificaremos que a janela era inicialmente
simples, sem elementos decorativos, e que a candeia estava suspensa
por uma corda presa na coluna central; na imagem final, a janela
passa a apresentar elementos decorativos à volta e a corda que
sustém a candeia passa a estar fixa na coluna junto ao portal de
entrada.
Uma observação cuidada da reprodução do original permitirá uma
melhor apreciação e confirmação de tudo quanto dissemos. Convirá
também frisar que esta estampa não é o único exemplar precursor da
moderna banda desenhada. Nos códices medievais encontramos mais dois
exemplares de igual jaez, além de iluminuras «panorâmicas» ocupando
toda a largura da página, riquíssimas não só pela beleza da imagem e
da cor, mas sobretudo pelo seu conteúdo, que nos dá a conhecer pela
imagem aspectos da vida na Idade Média, mostrando-nos os tipos
sociais –
clérigos, cavaleiros, jograis e grandes senhores –,
as actividades da época, os instrumentos musicais utilizados, etc.
O texto transcrito é constituído por estrofes regulares, formadas
por três versos agudos bastante longos, de catorze sílabas, e um
refrão com dois versos de oito e sete sílabas métricas, segundo o
esquema a a b B B. Trata-se
de uma cantiga de carácter narrativo na qual se apresenta um milagre
que a Virgem fez a um monge, permitindo-lhe que estivesse em êxtase
durante trezentos anos ou mais, porque sempre lhe pedia nas suas
orações que lhe mostrasse em vida qual o bem do paraíso.
Apresenta como local de acção o convento e o horto; e como
personagens, o monge, a cujo pedido a Virgem acede, uma avezita e os
monges do convento. Entre o começo e o fim da narrativa medeia um
espaço de tempo equivalente a trezentos anos. Além das personagens,
encontramos presentes, logo no começo da narrativa, elementos
referentes ao narrador e ao narratário.
Num primeiro momento, constituído pelas quatro primeiras estrofes, o
narrador introduz-nos no assunto, começando por nos dizer do que vai
falar e por nos apresentar a personagem que, tendo entrado no jardim
onde habitualmente ia, faz a sua oração à Virgem, apresentada em
discurso directo. O fim da oração e do discurso directo marca o
começo do momento seguinte, constituído pelas estrofes 5, 6 e 7, que
correspondem ao milagre e à passagem de trezentos anos. As estrofes
8 a 13 mostram-nos o momento final, em que o monge regressa ao
convento e onde encontra tudo mudado. O mosteiro já não é o mesmo
que deixara. Apresenta novas características de que o próprio monge
se dá imediatamente conta, ao verificar que o portal de entrada não
é o mesmo. Em vez do portal simples por onde saíra, encontra agora
um grande portal, que nunca vira e por onde entra. Uma vez lá
dentro, nova surpresa o espera. Os monges, que ele assusta com a sua
presença, são desconhecidos. Gera-se uma certa confusão. Os actuais
ocupantes tomam-no por louco. No entanto, passado o primeiro
impacto da surpresa e averiguados calmamente os factos pelo actual
abade, compreendem que se trata de um grande milagre da Virgem,
a quem dão graças pelo dom concedido. E a narrativa acaba com a
lição de moral: «tudo quanto Lhe pedirmos com fé nos concede seu
Filho por intercessão Dela».
Poderemos, pois, para concluir estas breves linhas de análise,
considerar o texto estruturado em três partes distintas,
equivalentes a três períodos de tempo distintos: antes,
durante e depois do milagre, obtendo-se a seguinte divisão:
1ª parte – estrofes 1 a 4: Introdução e apresentação do monge;
2ª parte – estrofes 5 a 7: Concretização do milagre;
3ª parte – estrofes 8 a 13: Regresso ao convento trezentos anos
depois e agradecimento à Virgem. |