Henrique J. C. de Oliveira, Relatório do Inquérito Linguístico realizado na Gafanha do Carmo, Aveiro, 1967.

O MOLICEIRO

Como o próprio nome indica, o moliceiro é o barco destinado à apanha e transporte do moliço que, uma vez seco, irá fertilizar a terra. Barco bastante típico, caracteriza-se pelo seu bordo baixo e alongado, fundo chato e proa alta e recurvada, fazendo lembrar as gôndolas venezianas e os antigos barcos «vikings». E quem sabe se não terá sofrido alguma remota influência deles? Por outro lado, a sua proa decorada com cores garridas e vistosas é um belo exemplo da espontânea e fértil arte do nosso povo.

Fig. 15 - Dois barcos moliceiros carregados de moliço. Clicar na imagem.

Ao lado deste barco, essencialmente destinado à recolha de moliço, existe ainda um outro tipo característico da região. Trata-se do «mercantel» ou «salineiro», de bordo mais elevado e proa menos altiva e sem curvatura.

Após a breve apresentação acima feita dos dois tipos de barco, vejamos os nomes das diferentes partes que os constituem. Para tal, iremos fazendo a descrição delas com a ajuda sucessiva dos desenhos que elaborámos, a partir da observação directa, e das fotografias que obtivemos durante a nossa curta estadia na região da Gafanha do Carmo.

Na fotografia da figura 15, vemos dois barcos moliceiros já de regresso ao respectivo ancoradouro, após terem recolhido o útil moliço, com o qual vão bastante carregados. Repare-se como o bordo está totalmente mergulhado na água que, todavia, não entra no barco, graças a duas tábuas dispostas ao longo dele e que lhe dão maior altura. No situado em primeiro plano, nota-se a ausência da bica que, no entanto, deverá ter existido, como bem o dá a entender a curvatura característica da proa. E permitimo-nos fazer tal afirmação, visto que todo o moliceiro possui esse elemento, que o distingue do mercantel. Ainda na proa, vêem-se os ancinhos com os quais é apanhado o moliço que flutua à superfície das águas. Na ré, estão longas varas, que servem para empurrar a embarcação na ausência de vento suficiente para a fazer mover.

Fig. 16 - Barco moliceiro representado de forma esquemática. Clicar na imagem para ver as legendas.

A figura 16 dá-nos um aspecto geral do moliceiro. Temos na parte anterior a proa (2) com a característica curvatura e bica (1), na extremidade. Lateralmente, os moliceiros distinguem-se dos outros tipos de barco pelos painéis decorativos, um de cada lado da proa.  Vemos também duas pequenas saliências, as mãozinhas (3), que servem para enrolar e segurar as cordas e os instrumentos da faina da apanha do moliço. Ao lado do bordo (5), encontramos uma prancha de madeira (4) utilizada para bolinar, isto é, para navegar contra o vento. Sobre o bordo e alteando-o, encontramos a falca (6), que impede a entrada da água quando o barco vai muito carregado. Na ré (8), onde existe um banco chamado cagarête, temos um leme de grandes dimensões e forma característica (9). Nele vemos o chamado «pau do leme» (10) que, com a ajuda da corda do leme (7), cabo que percorre todo o barco e corre na argola da vara vertical (11), situada na proa, permite a condução da embarcação em qualquer lugar onde o mestre se encontre. Convirá acrescentar que a bica tem uma função que é mais do que decorativa e da qual nós, pessoalmente, só nos conseguimos aperceber quando tivemos a oportunidade de navegar num moliceiro em plena faina. Não é por acaso que a proa é tão elevada nos moliceiros e com a bica na extremidade, geralmente pintada com uma cor viva. Vejam-se os barcos da fotografia 15, carregados de moliço. O mestre vai em pé e, apesar da elevada carga, quase da altura dele, consegue sempre ver a bica, que se destaca acima da linha do horizonte (1). É esta bica que funciona como um ponto de mira de uma arma. O mestre aponta a bica a uma objecto no horizonte, uma casa, por exemplo, e, deste modo, consegue facilmente manter o rumo pretendido.

Se ampliarmos e analisarmos atentamente a fotografia 15, veremos que o mestre do barco «desbicado», em primeiro plano, conduz a embarcação em pé, em cima de uma prancha que atravessa o moliceiro de um bordo ao outro, colocada junto à carga de moliço, segurando com uma das mãos o cabo do leme (a «corda do leme») que percorre toda a embarcação até à vara colocada verticalmente no castelo da proa. Sentado no cagarête, vai possivelmente o moço ou ajudante do mestre.

A figura 17 mostra-nos o conjunto "mastro-vela". Seguro na toste (8), onde entra no chamado «buraco da toste» (9), encontra-se o mastro (3), cuja finalidade é a de suportar a vela (2). Esta, presa ao imbergue (1), longa vara de madeira, é içada com o auxílio de uma corda (ou cabo), a ustaga (6). Por sua vez, o imbergue fica seguro ao mastro, ao longo do qual desliza, por uma argola de corda, a chamada troucha ou urraca (4). Segurando e servindo ainda para orientar a posição da vela, temos a escota (10) e o belanéu (5). A ponta inferior da vela, junto ao mastro, encontra-se a ele preso pela calcadeira (7).

No desenho da figura 18, que nos mostra o barco em corte transversal, temos a carlinga do barco. Esta (1) é uma peça de madeira sobre a qual assenta o mastro, por sua vez seguro pela toste (3), que ele atravessa pelo chamado «buraco da toste» (4). Vemos ainda, além da vela, a corda que a prende à toste, ou seja, a calcadeira (6).

Fig. 18 - Corte transversal da carlinga do barco. Fig. 19 - Vista do interior da ré

O desenho da figura 19 mostra-nos o interior da ré. Em baixo, encontra-se o «peineiro da popa» (1), tendo, logo por cima, um varão de ferro (2), onde fica presa a escota. Mais atrás, fica o banco da ré, também conhecido pela designação de cagarête (3), sob o qual existe um cubículo para guardar alguns objectos. Presa ao pau do leme, encontramos a corda do leme, também conhecida por tirabira (5), palavra curiosa formada a partir de uma expressão verbal: tirar, no sentido de puxar, e virar, por acção do movimento da corda para a frente ou para trás, o que faz virar o leme para um ou outro lado.

O facto de navegar contra o vento, e que já dissemos chamar-se bolinar, é designado na região pelos termos «beliar» ou «veliar».

Para impedir a entrada da água no barco, quando carregado com o moliço até grande altura, são colocadas entre o bordo e a falca tiras de pano de saco, a que dão o nome de "tiras» ou "lonas».

Andando eu no campo com o meu informador e tendo-lhe perguntado se, na região, existiam muitos pinheiros, de ideia em ideia, passámos a uma interessante conversa sobre moliceiros. Por tal motivo e visto ter bastante interesse, transcrevemos o diálogo com ele travado, que tivemos a feliz ideia de transcrever na integra, à medida que a nossa conversa se ia desenrolando.

«− Ó Ti Melro, sabe-me dizer se existem por aqui muitos pinheiros? − perguntei eu.

− Não, home, aqui não há pinheiros.

− Sabe qual a utilidade deles?

− Sei, sim senhor. Onde os há, fazem uma sarruscadela no pinheiro práprobeitar a razina qui o pinheiro sangra. E essa razina ópois atão é p'ra fazer breu.

− E para que serve o breu, Ti Melro?

− Intigamente, home, cumpraba duas arrobas de breu, chamava-se um escalufate...

− Um escalufate? Mas o que é isso, um escalufate?

− Um escalufate, home, é o mestre que amanha o barco. Depois, corriam-se as costuras todas do barco, butavam-se estopas nas costuras qui o barco tinha, com um maço de ferro, depois aquecia-se o breu ò lume numa panela de ferro e òpois atão o mesmo escalufate qu' andaba a amanhar o barco fazia um escupêro de pele de carneiro.

− E o que é um escupêro, Ti Melro?

− Um escupêro, home, é pele de carneiro enrolhada num pau de madeira e pregada com pregos ao pau p'rà pele não cair. E com ele molhava na panela de breu e òpois atão corria as costuras todas a butar o breu por riba p'ra não deixar cair a estopa.»

Desta conversa concluí que amanhar o barco não é mais do que vedar todas as frinchas entre cada tábua, impedindo assim a entrada da água. Segundo ainda o meu informador, é necessário amanhar todos os anos o barco.

Fig. 20 - Proa de um moliceiro num postal ilustrado da década de 1960. Clicar na imagem

Fig. 21 - Barco moliceiro a navegar à vara, num postal  ilustrado da década de 1960. Clicar na imagem

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(1) No caso do primeiro barco da fotografia 15, o mestre só conseguiria ver a bica na sua imaginação, porque a parte superior da proa estava deteriorada e «desbicada».

 

 

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