Como o próprio nome indica, o moliceiro é o barco destinado à apanha e
transporte do moliço que, uma vez seco, irá fertilizar a terra. Barco
bastante típico, caracteriza-se pelo seu bordo baixo e alongado, fundo
chato e proa alta e recurvada, fazendo lembrar as gôndolas venezianas e
os antigos barcos «vikings». E quem sabe se não terá sofrido alguma
remota influência deles? Por outro lado, a sua proa decorada com cores
garridas e vistosas é um belo exemplo da espontânea e fértil arte do
nosso povo.
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Fig.
15 - Dois barcos moliceiros carregados de moliço. Clicar na imagem. |
Ao lado deste barco, essencialmente destinado à recolha de moliço,
existe ainda um outro tipo característico da região. Trata-se do «mercantel»
ou «salineiro», de bordo mais elevado e proa menos altiva e sem
curvatura.
Após a breve apresentação acima feita dos dois tipos de barco, vejamos
os nomes das diferentes partes que os constituem. Para tal, iremos
fazendo a descrição delas com a ajuda sucessiva dos desenhos que
elaborámos, a partir da observação directa, e das fotografias que
obtivemos durante a nossa curta estadia na região da Gafanha do Carmo.
Na fotografia da figura 15, vemos dois barcos moliceiros já de regresso
ao respectivo ancoradouro, após terem recolhido o útil moliço, com o
qual vão bastante carregados. Repare-se como o bordo está totalmente
mergulhado na água que, todavia, não entra no barco, graças a duas
tábuas dispostas ao longo dele e que lhe dão maior altura. No situado em
primeiro plano, nota-se a ausência da bica que, no entanto, deverá ter
existido, como bem o dá a entender a curvatura característica da proa. E
permitimo-nos fazer tal afirmação, visto que todo o moliceiro possui
esse elemento, que o distingue do mercantel. Ainda na proa, vêem-se os
ancinhos com os quais é apanhado o moliço que flutua à superfície das
águas. Na ré, estão longas varas, que servem para empurrar a embarcação
na ausência de vento suficiente para a fazer mover.
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Fig.
16 - Barco moliceiro representado de forma esquemática. Clicar na
imagem para ver as legendas. |
A
figura 16 dá-nos um aspecto geral do moliceiro. Temos na parte anterior
a proa (2) com a característica curvatura e bica (1), na extremidade.
Lateralmente, os moliceiros distinguem-se dos outros tipos de barco
pelos painéis decorativos, um de cada lado da proa. Vemos também duas pequenas saliências, as mãozinhas (3), que servem para
enrolar e segurar as cordas e os instrumentos da faina da apanha do
moliço. Ao lado do bordo (5), encontramos uma
prancha de madeira (4) utilizada para bolinar, isto é, para navegar
contra o vento. Sobre o bordo e alteando-o, encontramos a falca (6), que impede a entrada da água quando o barco vai muito carregado.
Na ré (8), onde existe um banco chamado cagarête, temos um leme de
grandes dimensões e forma característica (9). Nele vemos o chamado «pau
do leme» (10) que, com a ajuda da corda do leme (7), cabo que percorre
todo o barco e corre na argola da vara vertical (11), situada na proa,
permite a condução da embarcação em qualquer lugar onde o mestre se
encontre. Convirá acrescentar que a bica tem uma função que é mais do
que decorativa e da qual nós, pessoalmente, só nos conseguimos aperceber
quando tivemos a oportunidade de navegar num moliceiro em plena faina.
Não é por acaso que a proa é tão elevada nos moliceiros e com a bica na
extremidade, geralmente pintada com uma cor viva. Vejam-se os barcos da
fotografia 15, carregados de moliço. O mestre vai em pé e, apesar da
elevada carga, quase da altura dele, consegue sempre ver a bica, que se
destaca acima da linha do horizonte
(1). É esta bica que
funciona como um ponto de mira de uma arma. O mestre aponta a bica a uma
objecto no horizonte, uma casa, por exemplo, e, deste modo, consegue
facilmente manter o rumo pretendido.
Se
ampliarmos e analisarmos atentamente a fotografia 15, veremos que o
mestre do barco «desbicado», em primeiro plano, conduz a embarcação em
pé, em cima de uma prancha que atravessa o moliceiro de um bordo ao
outro, colocada junto à carga de moliço, segurando com uma das mãos o
cabo do leme (a «corda do leme») que percorre toda a embarcação até à
vara colocada verticalmente no castelo da proa. Sentado no cagarête,
vai possivelmente o moço ou ajudante do mestre.
A
figura 17 mostra-nos o conjunto "mastro-vela". Seguro na toste (8), onde
entra no chamado «buraco da toste» (9), encontra-se o mastro (3), cuja
finalidade é a de suportar a vela (2). Esta, presa ao imbergue (1),
longa vara de madeira, é içada com o auxílio de uma corda (ou cabo), a
ustaga (6). Por sua vez, o imbergue fica seguro ao mastro, ao longo do
qual desliza, por uma argola de corda, a chamada troucha ou urraca (4).
Segurando e servindo ainda para orientar a posição da vela, temos a
escota (10) e o belanéu (5). A ponta inferior da vela, junto ao mastro,
encontra-se a ele preso pela calcadeira (7).
No
desenho da figura 18, que nos mostra o barco em corte transversal, temos
a carlinga do barco. Esta (1) é uma peça de madeira sobre a qual assenta
o mastro, por sua vez seguro pela toste (3), que ele atravessa pelo
chamado «buraco da toste» (4). Vemos ainda, além da vela, a corda que a
prende à toste, ou seja, a calcadeira (6).
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Fig.
18 - Corte transversal da carlinga do barco. |
Fig.
19 - Vista do interior da ré |
O
desenho da figura 19 mostra-nos o interior da ré. Em baixo, encontra-se
o «peineiro da popa» (1), tendo, logo por cima, um varão de ferro (2),
onde fica presa a escota. Mais atrás, fica o banco da ré, também
conhecido pela designação de cagarête (3), sob o qual existe um cubículo
para guardar alguns objectos. Presa ao pau do leme, encontramos a corda
do leme, também conhecida por tirabira (5), palavra curiosa formada a
partir de uma expressão verbal: tirar, no sentido de puxar, e virar, por
acção do movimento da corda para a frente ou para trás, o que faz virar
o leme para um ou outro lado.
O
facto de navegar contra o vento, e que já dissemos chamar-se bolinar, é
designado na região pelos termos «beliar» ou «veliar».
Para impedir a entrada da água no barco, quando carregado com o moliço
até grande altura, são colocadas entre o bordo e a falca tiras de pano
de saco, a que dão o nome de "tiras» ou "lonas».
Andando eu no campo com o meu informador e tendo-lhe perguntado se, na
região, existiam muitos pinheiros, de ideia em ideia, passámos a uma
interessante conversa sobre moliceiros. Por tal motivo e visto ter
bastante interesse, transcrevemos o diálogo com ele travado, que tivemos
a feliz ideia de transcrever na integra, à medida que a nossa conversa
se ia desenrolando.
«− Ó Ti Melro, sabe-me dizer se existem por aqui muitos pinheiros? −
perguntei eu.
− Não, home, aqui não há pinheiros.
− Sabe qual a utilidade deles?
− Sei, sim senhor. Onde os há, fazem uma sarruscadela no pinheiro
práprobeitar a razina qui o pinheiro sangra. E essa razina ópois atão é
p'ra fazer breu.
− E para que serve o breu, Ti Melro?
− Intigamente, home, cumpraba duas arrobas de breu, chamava-se um
escalufate...
− Um escalufate? Mas o que é isso, um escalufate?
− Um escalufate, home, é o mestre que amanha o barco. Depois, corriam-se
as costuras todas do barco, butavam-se estopas nas costuras qui o barco
tinha, com um maço de ferro, depois aquecia-se o breu ò lume numa panela
de ferro e òpois atão o mesmo escalufate qu' andaba a amanhar o barco
fazia um escupêro de pele de carneiro.
− E o que é um escupêro, Ti Melro?
− Um escupêro, home, é pele de carneiro enrolhada num pau de madeira e
pregada com pregos ao pau p'rà pele não cair. E com ele molhava na
panela de breu e òpois atão corria as costuras todas a butar o breu por
riba p'ra não deixar cair a estopa.»
Desta conversa concluí que amanhar o barco não é mais do que vedar todas
as frinchas entre cada tábua, impedindo assim a entrada da água. Segundo
ainda o meu informador, é necessário amanhar todos os anos o barco.
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Fig.
20 - Proa de um moliceiro num postal ilustrado da década de 1960.
Clicar na imagem |
Fig.
21 - Barco moliceiro a navegar à vara, num postal ilustrado da
década de 1960. Clicar na imagem |
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(1)
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No caso do primeiro barco da fotografia 15, o mestre só conseguiria ver
a bica na sua imaginação, porque a parte superior da proa estava
deteriorada e «desbicada».
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