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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VII

ENSEIRAMENTO E PRENSAGEM

 

 As seiras são colocadas numa superfície circular, existente debaixo da vara, na zona compreendida entre as virgens e as agulheiras. Com um diâmetro um pouco maior que o das seiras, esta superfície apresenta formas e nomes diferentes de região para região. 

 

 
 

Figura 99: Aspecto do alguerbe ou sertã onde são empilhadas as seiras para prensagem (Ponte da Mata, conc. Penacova, dist. Coimbra).

 

Vejamos, em primeiro lugar, algumas das formas por nós encontradas.

Num grande número de lagares, a área de empilhamento das seiras é delimitada por uma coroa circular, escavada no próprio granito de que é feita a plataforma destinada ao enseiramento, tal como se pode observar na figura 99. Para um melhor escoamento do azeite, a superfície interna pode ser ligeiramente convexa, apresentando ainda um rego em toda a volta, entre a coroa e a área central. É por este rego que o óleo escorre em direcção à bica de saída e, através desta, para o interior das tarefas.

 

 
 

Figura 100: Aspecto da sertã do lagar de Canelas de Baixo, conc. Arouca, dist. Aveiro. No chão, à direita, os frades e a adufa; à esquerda, os potes ou tarefas.

 

No norte do País, e de uma maneira muito especial no concelho de Arouca, no distrito de Aveiro, os alguerbes ou sertãs – assim se chamam estas zonas circulares, entre outros nomes que adiante veremos – não são mais do que um recipiente granítico circular, de feitio muito semelhante ao de uma sertã, donde possivelmente a origem do seu nome. No lagar de Canelas de Baixo, P. 118, que encontra documentado na figura 100, as paredes da sertã apresentam mais de um palmo de altura, saindo o azeite por uma bica de secção em  U  feita do mesmo material. É de notar que todo o conjunto, segundo pudemos concluir depois de atenta observação, é feito a partir de um bloco maciço de pedra, que hábeis mãos de pedreiro foram desbastando até conseguirem a forma documentada pela figura.

 

 
 

Figura 101: Aspecto da sertã do lagar de Vila Viçosa, P. 116, freg. Espiunca, conc. Arouca, dist. Aveiro.

 

No lagar de Vila Viçosa, P. 116, no mesmo concelho, a sertã apresenta pouco mais de um metro de diâmetro. Feita também a partir de um bloco de pedra, as suas paredes são relativamente baixas, como se pode verificar pela análise da figura 101. A saída da bica é tapada por tosco objecto de madeira sem nome específico. À área formada por ampla laje de pedra, situada à direita da sertã e sobre a qual colocam as seiras durante as caldas é dado o nome invulgar e talvez inédito de sãofridoiro.

No país vizinho, o alguerbe ou sertã, conhecido pela designação de encapazadero, é, segundo informação de Klemm, relativamente à região estudada pelo Autor, «una superficie circular formada por una o varias losas situada a 5 cm. sobre el nivel del suelo, con un diámetro de 115 cm. (en Poyales), y está circundada en la periferia», à semelhança do que se passa entre nós, «por un canal circular plano de 10-15 cm. de ancho.(12)»

Apresentadas algumas das muitas formas que a zona  de  empilhamento  das  seiras  pode  apresentar, resta-nos enumerar e analisar os nomes por que é vulgarmente conhecida; são eles os seguintes: albergue/alvergue, algarbe, algrabe, algrebe, alguebre, alguel, alguer, alguerbe, alguergue, alguermi, arguel, assento, enseiradouro, sartã, sertã, sertem.

Pertencentes à mesma família semântica e provenientes do árabe alqirq(13) são as formas albergue/alvergue, algarbe, algrabe, algrebe, alguebre, alguel, alguer, alguerbe, alguergue, alguermi, arguel, cuja distribuição poderemos fazer segundo o esquema:

Na primeira coluna estão indicadas as formas apocopadas. Na do meio, aquelas que se encontram mais próximas da forma primitiva. A terceira e última coluna apresenta-nos formas encontradas apenas numa povoação e, como tal, um tanto susceptíveis de dúvida, apesar de registadas por Cândido de Figueiredo(14). Segundo este Autor, alvergue é um «tanque em que repoisa o líquido escorrido dos bagaços da azeitona, nos lagares de azeite», donde um sentido muito diferente do apontado por nós e que encontrámos em vários locais.

A forma mais antiga e mais próxima do étimo alguergue – surge-nos documentada apenas nos dicionários, muito embora Maria Margarida Furtado Martins(15) a indique como termo alentejano. Define-o a Autora como «espécie de prato grande de pedra, onde se colocam as seiras para serem espremidas (Alentejo)».

O dicionário de Bluteau(16) define o mesmo vocábulo da seguinte maneira: «(...) Em lagar de azeite, é uma laje redonda, sobre que descansam as seiras, quando dentro delas a azeitona se está espremendo. Saxum, super quod olivae calcantur».

Segundo o dicionário de Morais(17), alguergue, do árabe alquerque, é um «jogo de rapazes com arriozes, sobre tábua raiada, a modo de damas» e «pedra do lagar, onde descansam as seiras da azeitona,  que vai a espremer-se».

Os dicionários modernos citam, de um modo geral, o vocábulo alguergue, que definem como «pedra do lagar onde se colocam as seiras da azeitona(18)». As restantes formas são consequência de múltiplas alterações fonéticas ocorridas através dos tempos.

Albergue/alvergue, por nós registado apenas no distrito de Coimbra, P. 261, encontra-se documentado em mais do que um trabalho. Além do já citado dicionário de Cândido de Figueiredo, Ferreira Lapa, segundo informações colhidas através de Guilherme Felgueiras(19), cita o termo, definindo-o como «o tanque de separação do azeite». Segundo Tavares da Silva(20), o termo é próprio da Beira Alta, designando «o prato da prensa que espreme o bagaço da azeitona». O citado dicionário de Almeida Costa e Sampaio e Melo(21) apresenta o vocábulo na acepção de «tanque de lagar onde se apara o azeite que escorre do bagaço da azeitona».

Das restantes formas, a mais documentada é sem dúvida alguerbe, apresentada pelo dicionário de Morais(22), que a considera provincianismo beirão e define como «prato da prensa que espreme o bagaço da azeitona, o mesmo que alvergue e alguergue», e por nós registada nos distritos de Coimbra, P. 253, 255, 256, 258, 262, 286, 294, e Guarda, P. 206, 211.

Algarbe, registado nos distritos de Braga, P. 31, e Coimbra, P. 297, com o sentido de 'zona circular sob a vara, na qual são empilhadas as seiras para serem espremidas', é apresentado por Pires de Lima(23) com o sentido de alfurja, isto é, de «pio ou vaso grande de pedra em forma de alguidar, dentro do qual se deita a azeitona, e onde giram as rodas (galgas)». Este mesmo termo está registado na "Revista Lusitana", vol. XIV, pág. 182, com sentido idêntico ao acabado de transcrever.

Algrabe e algrebe (Braga, P. 29) são apresentados pela "Revista Lusitana" também com o sentido de alfurja.

Alguebre, apresentado por Jaime Lopes Dias(24) ao lado de sertã e alguer, tem um sentido idêntico ao por nós registado. Segundo o Autor, consiste numa «grande pedra de cantaria ou de xisto onde assentam as seiras».

Alguel foi registado num inquérito do I.L.B. efectuado no distrito de Santarém, P. 334.

Alguer surge-nos em mais do que um trabalho. António Ladislau Piçarra(25) dá-o como próprio do concelho de Serpa, distrito de Beja. Segundo este Autor, «por baixo do couce, quer dizer, sob a parte posterior da vara e firme no solo, há uma pedra circular, de superfície lisa, cujo diâmetro mede mais de um metro». É a esta pedra «sobre a qual assentam as seiras» que se dá o nome de alguergue e à qual por apócope o povo chama alguer. «Na sua periferia acha-se cavado um sulco – a regueira – por onde corre o azeite que resulta da compressão das seiras».

Ao lado do alguer, foram ainda registadas as formas alguermi e arguel, respectivamente nos distritos de Beja (conc. de Alvito) e Braga, P. 8. Neste último ponto, a palavra arguel foi registada com o sentido de 'lugar onde no lagar é moída a azeitona para o fabrico do azeite'.

Os restantes vocábulos a que teremos de fazer referência são assento, enseiradouro  e sartã, sertã ou sertem.

O primeiro, registado num inquérito do I.L.B. efectuado no distrito de Castelo Branco, concelho da Covilhã, apresenta-se-nos como caso único e esporádico.

Do segundo já nós falámos, quando do estudo do vocábulo enseiramento, neste mesmo capítulo. Como então dissemos, enseiradouro, pronunciado também inseiradouro e enseradouro, aplica-se não só à zona circular onde são empilhadas as seiras sob a prensa, mas também a toda a área à volta desse círculo. Segundo o que nos diz António do Casal(26), lagareiro da Casa Real, «o enseiradouro é uma mesa de folha de Flandres sobre a qual estão todas as seiras vazias (...)».

As três últimas formas, das quais duas não são mais do que o resultado da alteração fonética de sertã, foram registadas nos distritos de Aveiro, P. 116, 117, 118, Braga, P. 32, Porto, P. 51, 52, 54a, 54b, 56, 57. Provenientes do latim  SARTAGINE,  o nome de sertã deve-se provavelmente à forma larga e baixa que a zona circular apresenta, o que lhe confere um feitio que nos faz evocar as frigideiras ou sertãs que vulgarmente encontramos nas nossas cozinhas.

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(12) – Veja-se A. KLEMM, La cultura popular de la província de Ávila, in: "Anales del Instituto de Linguística", 1962, tomo VIII, pág. 138.

(13)Veja-se ARNALD STEIGER, Contribución a la fonética del hispano-árabe y de los arabismos en el ibero-románico y el siciliano, Madrid, 1932, pág. 216.

(14) – CÂNDIDO DE FIGUEIREDO, Pequeno dicionário da língua portuguesa, Lisboa, pág. 70, 2ª col.

(15)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, A oliveira (Estudo linguístico), Dissertação de licenciatura (inédita), Coimbra, 1945, pág. 86.

(16) – RAFAEL BLUTEAU, Vocabulário português e latino, Coimbra, 1712, vol. I, pág. 251, 2ª col.

(17)ANTÓNIO DE MORAIS SILVA, Dicionário da língua portuguesa, 5ª ed., Porto, pág. 65, 1ª col.

(18)Veja-se, por exemplo, o dicionário de J. ALMEIDA COSTA e A. SAMPAIO E MELO, Dicionário da língua portuguesa, 5ª ed., Porto, pág. 65, 1ª col.

(19)GUILHERME FELGUEIRAS, Terminologia agrícola. Linguagem dos campos, in: "Gazeta das Aldeias", Porto, 1937, nº 1872, pág. 336, 1ª col.

(20)DOMINGOS ALBERTO TAVARES DA SILVA, Esboço dum vocabulário agrícola regional, Lisboa, 1944, pág. 46.

(21) – Op. cit., pág. 77, 1ª col.

(22)ANTÓNIO DE MORAIS SILVA, Grande dicionário da língua portuguesa, 10ª ed., vol. I, pág. 627, 2ª col.

(23)AUGUSTO CÉSAR PIRES DE LIMA, "As oliveiras em Portugal", In: Estudos etnográficos, filológicos e históricos, Porto, 1951, vol. VI, cap. V, pág. 206.

(24)JAIME LOPES DIAS, Etnografia da Beira, Lisboa, 1942, vol. VI, pág. 186.

(25) – ANTÓNIO LADISLAU PIÇARRA, O azeite no concelho de Serpa; seu fabrico tradicional, In: "Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústria do azeite em 1905", Lisboa, (Real Associação Central da Agricultura Portuguesa), 1906, vol. II, pág. 629.

(26) – ANTÓNIO DO CASAL, Como eu faço o azeite, in: "Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústria do Azeite em 1905", Lisboa, (Real Associação Central da Agricultura Portuguesa), 1906, vol. II, pág. 667, § 3.

 

 

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