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Boletim da Biblioteca    

Um texto de Arsélio de Almeida Martins
(professor de Matemática da ESJE)

A biblioteca ou a vida?

     

Já se cruzaram com ele nos corredores da Escola?

 
     

Um dia de cada vez, mais velho um dia me sinto. Lembro-me vagamente  de ter vontade de ser mais velho em anos do que era realmente. Também tinha a ideia que sabedoria e experiência eram maiores e  melhores quanto mais velho fosse. E, de certo modo, para mim a vida  não era interessante e bem a trocava por números maiores a  representar a mesma vida. À minha volta, todos me diziam que não tinha razão.
 

Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a sabedoria e a  experiência. Lembro-me vagamente de chegar a dar-me por satisfeito  com esta lenta acumulação por ver outras pessoas a elogiar este ou aquele aspecto  de coisas que eu dizia ou fazia. De certo modo, devo ter incorporado na minha sabedoria e  também na minha experiência, os livros e os filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia  que passava por minha sabedoria e minha experiência o que constava dos livros que lia  ou dos filmes que via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou descoberto algumas coisas que posso não ter feito  e muito menos descoberto. Dava por certo para mim mesmo que uma boa parte da minha vida  conhecida se tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.

Hoje, duvido dessa razão e lamento o tempo que perdi a ler os livros e a ver os filmes dos outros. Porque não guardo memória dos livros que li nem dos filmes que vi, nem dos meus actos passados, nem dos factos a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a escrever e começo a pensar que, para os outros, eu também sou o livro. O que me tem dado muitos dissabores e complicações que perturbam a minha vida que... não é mais que o livro que estou a escrever.


Por ter tomado  consciência de não ter memória de mim, em cada visita à biblioteca, procurava escrever uma fatia da minha vida que permanecesse em condições de ser consultada por mim em qualquer momento. Comprei um caderno de folhas  que fui preenchendo laboriosamente. Como o tempo podia ser pouco,  tinha de ser rápido na construção da minha vida. Esta, não a outra  de que não guardara memória. De manhã, ia para a biblioteca municipal, perdido entre os outros velhos a ler as frescas pelos títulos dos diários. E passava a maior parte das tardes numa biblioteca  que me diziam ser na escola onde  trabalhara a maior parte da minha vida. Para não ser interrompido pela amizade  curiosa das pessoas, que  me conheciam não me lembrava de onde, passei a mostrar-me sempre muito ocupado e passei a ir também à biblioteca da universidade. Bem, para ser franco, eu não ia  propriamente às bibliotecas. Ia para as salas de leitura e procurava livros que contassem uma história de vida de alguém que, em cada momento, podia ser a história  dos anos que me faltavam à minha vida escrita. E copiava, principalmente copiava, excertos de romances tendo o cuidado de
mudar os nomes das personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos romances, escrevia os nomes de pessoas  de uma lista laboriosamente escrita e confirmada pelas pessoas que moravam na casa de que tinha chave e onde me aparecia comida, cama  e roupa lavada.

Foi assim que eu escrevi milhares de folhas que foram sendo ordenadas como um diário da minha vida, desde o nascimento  até agora. Por me ter sobrado algum tempo, cheguei a substituir alguns anos da minha vida por outros, se encontrava algum romance que aumentasse a coerência do relato que eu ia lendo com regularidade (era a minha vida que ali estava guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo, já que o tempo ia passando e eu tinha sempre de acrescentar a vida lida por cada dia de vida.

Uma mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora me esqueça das pessoas todos os dias, falou-me do meu caderno e de um outro acontecimento que lá estaria descrito. Fui verificar e lá estava o assunto de que ela me tinha falado. Ela estava afinal a  perguntar-me coisas sobre a minha vida!!! Tinha andado a ler o romance da minha vida! Não me zanguei, antes pelo contrário.  Na altura até teve muita piada  porque ela corrigia a pontuação e até fazia comentários engraçados sobre a forma como aparecia no meu caderno este ou aquele acontecimento, esta ou aquela pessoa. A confusão só começou quando ela deu a ler o caderno a outras pessoas da família e houve alguém que se lembrou de dizer que aquilo era afinal o diário da minha vida e fez notar que todos os nomes eram reais. Alguém estava muito zangado com a forma como era tratado nos meus cadernos.            Continua na página 7

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