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E
foi, a partir daí, que a minha vida se complicou
muito. Ainda procurei defender a minha vida tal como
ela estava escrita, mas isso só aumentou a zaragata
à minha volta.
A
partir de certa altura, aquela mulher que era
referida por mulher do Arsélio (que sou eu) deixou
de falar comigo. Não foi mau. Isso permitiu-me
copiar de alguns romances os últimos meses da minha
vida.
Agora parece-me mesmo que toda a gente já leu o meu
livro ou parte dele.
Já vi fotocópias soltas de algumas páginas do meu
diário. É fácil identificar-me pela letra. |
E tenho reparado que os mais velhos, que antes
falavam comigo, vão deixando de me falar.
Uma rapariga mais nova que muitas vezes aparece a
ajudar-me confirmou o que eu suspeitava: as pessoas
mais velhas que comigo se cruzam constam da minha
lista e não têm gostado da forma como são tratadas
no livro. Eu disse à rapariga: “Ninguém lhes pediu
que lessem a minha vida. A minha vida é minha e eu
não dei autorização para tirarem cópias dos meus
cadernos! Ela riu-se na minha cara, enquanto me
respondia: "Oh avô, deixa lá. O teu romance já é um
best-seller e é considerado o livro mais
intrigante que algum dia foi escrito. É mesmo
estudado como um caso original de escrita". Não sei
porquê, mas ocorreu-me chamar-lhe Raquel e vi que
ela dava pelo nome. Então, contei-lhe como é que
fazia e pedi-lhe que me acompanhasse o trabalho de
adaptação pelas bibliotecas durante uns dias. Ela
assim fez. Quando vi que ela tinha aprendido a
completar a minha vida, despedi-me dela e de mim.
Penso que ela sabe quando vai escrever a palavra
FIM. Só não é a mesma letra. Mas isso não é
importante. O importante para uma vida escrita é o
método, a técnica, o tempo e a biblioteca.
Arsélio Martins
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