Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

O Ti Zé Maria, banheiro

Pessoa amiga e leitora assídua do LITORAL chamou-me a atenção para os erros que, involuntariamente, cometi no meu artigo anterior, pelo que me apresso a rectificá-los.

Na verdade, aquele cavalheiro, com uns anitos (poucos) mais do que eu – mas, ainda, com boa memória –, soube, na oportunidade, do episódio que contei, porque convivia com a sociedade no seio da qual o mesmo se deu.

Vista aérea da Barra em 1934. Clique na imagem.

Diz-me ele que não foi um qualquer soldado da Guarda-Fiscal que, atenciosamente, esteve a escutar o Dr. Elmano da Cunha e Costa, mas sim o José Maria, banheiro da Barra, que, possivelmente, teria ido àquela hora, à «meia laranja», para observar o estado do mar e determinar a que horas seria o banho, no dia seguinte.

Então, os banhos do mar eram aconselhados pelos médicos; e tinham preceito para serem tomados, quer quanto à hora, quer quanto ao número de mergulhos que cada um devia tomar, sendo os das marés do Equinócio os que melhor faziam à saúde, segundo era voz corrente.

Lembro-me, perfeitamente, apesar de miúdo, de que muitos dias, em Setembro, pelas seis horas da manhã – porque assim o exigia a maré – já «ti Zé Maria» andava a bater às portas dos seus clientes, avisando-os de que eram horas do banho.

E, ainda ensonados, mas já vestidos com a roupa própria para aquele fim, e toalha debaixo do braço, lá marchavam os pequenos – e os grandes também – para a borda do mar, onde os esperava o «ti Zé Maria», pronto a iniciar o «sacrifício».

Aos mais novos, o banheiro pegava-lhes ao colo e, depois dos respectivos mergulhos, acompanhados de gritaria – a água, algumas vezes estava muito fria –, entregava-os aos familiares que os acompanhavam; aos maiorzitos e às senhoras pegava-lhes nas mãos para mergulharem com confiança; e aos maiores, que ele mantinha sob vigilância, em local que, junto dele, tinha delimitado, ia gritando, de vez em quando: – «Essa é boa! Mergulhem todos, «gregórios»! E, a esta ordem, toda a gente se abaixava para que a onda lhe passasse por cima.

E, quando o entendia, dava o banho por terminado; e o grupo desandava para fora da borda do mar, recolhendo a casa.

O «ti Zé Maria» era «pau para toda a colher»: era ele e a sua família que se encarregavam, fora da época balnear, de abrir e fechar as janelas das casas; de procederem à limpeza na altura própria; e era ele quem tratava do arrendamento / 77 / e até se encarregava da venda das mesmas, se os proprietários estavam, nisso, interessados.

Ouvi contar que, um dia, um inglês, que vivia no Porto, veio de passeio a Aveiro e estendeu esse passeio até à Barra (fora da época balnear) no carro do Luís da Clarinda, e, a conselho deste, que com ele tinha andado na cidade.

O inglês gostou da pacatez e sossego da Barra e perguntou ao Luís se era possível comprar ali uma casa, pois gostaria de lá passar uma temporada para descansar. O Luís procurou o Zé Maria, endossou-lhe o inglês e retirou-se para Aveiro.

O inglês e o Zé Maria iniciaram as visitas às casas que, possivelmente, poderiam ser adquiridas, e aquele ia dizendo: «Mim gostar muito deste praia; ser muito sossegado; querer comprar um casa»…

Fez-se noite. O Zé Maria arranjou onde o inglês ficasse, combinando onde e a que horas se deviam encontrar no dia seguinte.

De noite, caiu, na Barra, uma grande nevoeirada; e a «ronca» teve que tocar…(1)

O Zé Maria, à hora combinada, foi procurar o inglês e não o encontrou em parte nenhuma.

A ronca tinha-o incomodado tanto que ele fugiu, não se sabe como, mas, presumivelmente, a pé, pois, de noite, não havia outro meio de transporte.

Vamos, porém, à rectificação prometida, e foi ela que me obrigou a escrever este artigo.

O Dr. Cunha e Costa – segundo o meu informador –, quando acabou de executar a peça, perguntou ao Zé Maria:

– Gostou? Que me diz?

O Zé Maria respondeu: – Olhe, senhor doutor, essa música, se fosse tocada por pessoa que soubesse, devia ser coisa muito linda…

Entre a resposta atribuída ao guarda-fiscal e esta, venha o Diabo e escolha…

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(1) – A ronca era um sistema de aviso para os barcos em dias de nevoeiro cerrado, que impedia que a luz do farol fosse vista a grande distância. O som rouco e potente ouvia-se a quilómetros, incomodando os habitantes da Barra e impedindo-os de dormir em silêncio. [HJCO]

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