Por várias vezes, pessoas amigas ou simples
conhecidas que trocam, comigo, impressões acerca destes meus escritos
terminam a conversa dizendo «continue... continue...»
Ora esta insistência traz-me à ideia a
lembrança de um caso que me foi contado há muitos, muitos anos, e que
vou tentar reproduzir.
Era uso e costume, nesse tempo, que os
veraneantes da praia da Barra – pessoas da sociedade aveirense –
fizessem todas as noites, na Assembleia (na altura um barracão de
madeira que ficava situado do lado esquerdo da estrada que liga a Barra
à Costa Nova), reuniões familiares, com o fim de passarem o seu tempo,
convivendo uns com os outros. Jogavam-se jogos lícitos, conversava-se,
tomava-se chá e namorava-se.
Na época, as meninas casadoiras não tinham
as facilidades que hoje têm de se encontrarem com os seus «queridos».
Quando o desejavam, visto que faziam «vida de casa» e só saíam às
compras ou em passeio, acompanhadas pelos seus familiares mais directos,
ou pelas criadas de confiança dos pais, aproveitavam essas horas de
convívio, para ouvirem as declarações de amor ou receberem as cartas de
namoro.
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Então, não havia, como hoje há, a telefonia
e a televisão, inventos que desviaram, mesmo dentro de cada família,
aquelas horas de intimidade e sossego que cada um tinha no seu lar; e
até o gosto pela leitura e pela conversa se vão esfumando, para prestar,
unicamente, a nossa atenção àqueles «aparelhómetros» que nos escravizam
com as suas novelas e as suas notícias.
De vez em quando, aquelas reuniões eram
programadas, com antecedência e, nelas, cada qual exibia as suas
habilidades e os seus conhecimentos; tocava-se, cantava-se, recitava-se,
faziam-se números de ilusionismo, e até se representavam pequenas peças
teatrais.
Foi numa dessas reuniões que tomou parte o
ilustre causídico Elmano da Cunha e Costa, nosso patrício que,
normalmente, vivia em Lisboa, onde tinha a sua banca de advogado, mas
que vinha passar as suas férias a Aveiro.
Era um apaixonado pela música e pelo
instrumento que tocava – violoncelo – e até fazia parte, como
executante, do grupo dos amadores musicais que o rei D. Luís reunia nos
seus serões, no Paço.
O Dr. Elmano, chegada que foi a altura da
sua exibição, começou a tocar uma peça, possivelmente de música
clássica. A determinada altura, apercebeu-se de que a assistência não
estava a prestar-lhe a atenção que ele entendia ser-lhe devida, pelo
que, pegando no instrumento, se retirou da Assembleia, dizendo, de si
para si, que estava em frente de gente com pretensões a ser ilustrada,
mas que não tinham sensibilidade para apreciar boa música, sendo
portanto, uns «rudes».
Era uma noite de Agosto, com um luar
admirável, pelo que o Dr. Elmano, para satisfazer a sua vontade de
tocar, resolveu ir para a «meia laranja», executando uma peça do seu
agrado, só para si e para a Natureza.
Já lá estava, há pedaço, tocando,
apaixonadamente, quando notou que um soldado da Guarda Fiscal, que
andava de ronda pelo «paredão», estava parado, com toda a atenção, a
ouvi-lo, pelo que redobrou – se possível – a sua virtuosidade, na
execução, fazendo, para si, o confronto entre aquela gente que ele tinha
deixado na Assembleia e um simples soldado, mas que era sensível à boa
música.
Terminada a peça, o Dr. Elmano, muito
satisfeito, perguntou-lhe: – Então?! Gostou?
O soldado, abanando a cabeça
afirmativamente, respondeu:
– Continue... continue... que ainda deve dar
alguma coisa nisso... Tal resposta, como se adivinha, desconcertou o Dr.
Elmano.
É caso para eu perguntar a mim próprio:
– Devo continuar?
– Continuará a interessar? |