Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

O Dr. Elmano na meia laranja

Por várias vezes, pessoas amigas ou simples conhecidas que trocam, comigo, impressões acerca destes meus escritos terminam a conversa dizendo «continue... continue...»

Ora esta insistência traz-me à ideia a lembrança de um caso que me foi contado há muitos, muitos anos, e que vou tentar reproduzir.

Era uso e costume, nesse tempo, que os veraneantes da praia da Barra – pessoas da sociedade aveirense – fizessem todas as noites, na Assembleia (na altura um barracão de madeira que ficava situado do lado esquerdo da estrada que liga a Barra à Costa Nova), reuniões familiares, com o fim de passarem o seu tempo, convivendo uns com os outros. Jogavam-se jogos lícitos, conversava-se, tomava-se chá e namorava-se.

Na época, as meninas casadoiras não tinham as facilidades que hoje têm de se encontrarem com os seus «queridos». Quando o desejavam, visto que faziam «vida de casa» e só saíam às compras ou em passeio, acompanhadas pelos seus familiares mais directos, ou pelas criadas de confiança dos pais, aproveitavam essas horas de convívio, para ouvirem as declarações de amor ou receberem as cartas de namoro. / 75 /

Então, não havia, como hoje há, a telefonia e a televisão, inventos que desviaram, mesmo dentro de cada família, aquelas horas de intimidade e sossego que cada um tinha no seu lar; e até o gosto pela leitura e pela conversa se vão esfumando, para prestar, unicamente, a nossa atenção àqueles «aparelhómetros» que nos escravizam com as suas novelas e as suas notícias.

De vez em quando, aquelas reuniões eram programadas, com antecedência e, nelas, cada qual exibia as suas habilidades e os seus conhecimentos; tocava-se, cantava-se, recitava-se, faziam-se números de ilusionismo, e até se representavam pequenas peças teatrais.

Foi numa dessas reuniões que tomou parte o ilustre causídico Elmano da Cunha e Costa, nosso patrício que, normalmente, vivia em Lisboa, onde tinha a sua banca de advogado, mas que vinha passar as suas férias a Aveiro.

Era um apaixonado pela música e pelo instrumento que tocava – violoncelo – e até fazia parte, como executante, do grupo dos amadores musicais que o rei D. Luís reunia nos seus serões, no Paço.

O Dr. Elmano, chegada que foi a altura da sua exibição, começou a tocar uma peça, possivelmente de música clássica. A determinada altura, apercebeu-se de que a assistência não estava a prestar-lhe a atenção que ele entendia ser-lhe devida, pelo que, pegando no instrumento, se retirou da Assembleia, dizendo, de si para si, que estava em frente de gente com pretensões a ser ilustrada, mas que não tinham sensibilidade para apreciar boa música, sendo portanto, uns «rudes».

Era uma noite de Agosto, com um luar admirável, pelo que o Dr. Elmano, para satisfazer a sua vontade de tocar, resolveu ir para a «meia laranja», executando uma peça do seu agrado, só para si e para a Natureza.

Já lá estava, há pedaço, tocando, apaixonadamente, quando notou que um soldado da Guarda Fiscal, que andava de ronda pelo «paredão», estava parado, com toda a atenção, a ouvi-lo, pelo que redobrou – se possível – a sua virtuosidade, na execução, fazendo, para si, o confronto entre aquela gente que ele tinha deixado na Assembleia e um simples soldado, mas que era sensível à boa música.

Terminada a peça, o Dr. Elmano, muito satisfeito, perguntou-lhe: – Então?! Gostou?

O soldado, abanando a cabeça afirmativamente, respondeu:

– Continue... continue... que ainda deve dar alguma coisa nisso... Tal resposta, como se adivinha, desconcertou o Dr. Elmano.

É caso para eu perguntar a mim próprio:

– Devo continuar?

– Continuará a interessar?

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