Chegou-me às mãos, por amabilidade do meu
velho amigo Severiano Ferreira das Neves, o Relatório da Associação
Aveirense de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas (vulgo Monte-Pio)
referente ao ano de 1933, elaborado pela direcção presidida por
Francisco António Meireles.
Ao lê-lo, encontrei dados que reputo de
muito interessantes, se os compararmos com a vida actual; e, não só por
isso, mas, também, por eles se verifica a maneira de ser daquele
cidadão, que tinha a coragem de chamar «às coisas pelo seu nome
próprio», sem se importar de saber se, com a sua atitude, iria, ou não,
criar inimigos ou incitar contra si más-vontades; e, por isso, o
alcunhavam de rezingão.
Foi seu companheiro de Direcção o meu
saudoso amigo José Marques Sobreiro, com feitio muito semelhante ao do
Meireles, e que eu bem conheci por ter trabalhado com ele muitos anos,
quer nos Bombeiros Velhos, quer no Recreio Artístico. Cargo para que
tivesse sido eleito – e aceitasse – dele procurava desempenhar-se
cabalmente, sacrificando, para tal, o seu tempo e, até, algumas vezes, o
seu dinheiro.
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Logo de entrada, afirma-se nesse Relatório:
– «Ao tomarmos posse, vimo-nos desajudados de qualquer auxílio material.
Não tínhamos Cartorário, e parte dos livros de escrituração achavam-se
fora da Secretaria. A escrituração e arquivo eram um labirinto. Tudo em
desordem, tudo num verdadeiro caos»!
E a seguir: – «Há livros sem assinaturas: há
uns poucos de anos sem Actas das Direcções e Conselho Fiscal; muitos
anos sem termos de posse e entregas dos corpos gerentes; muitos outros
sem contas do tesoureiro; e acha-se, finalmente, por escriturar, desde
há longos anos, a conta corrente com os sócios».
E, ainda mais: – «Uma nota típica que dá
ideia do desleixo e da negligência. Desde 1916 que não se fazia uma
revisão do inventário do mobiliário existente, no qual, além doutras, se
nota a falta de vinte cadeiras completas! Nenhum fragmento das que
desapareceram!».
Noutro capítulo, lê-se: – «Houve que
exonerar o antigo Cartorário. Não podia deixar de ser. Pode, para muitos
que ignoram os factos e as circunstâncias que se deram, parecer um acto
de violência da Direcção ou um propósito antecipado. Tal não sucedeu. O
sr. Cartorário é que, com as suas atitudes, arrastou a Direcção para tal
caminho.»
E mais adiante: – «Pretendeu Sua Ex.ª pôr à
prova a energia da Direcção.
E a Direcção, sem hesitar e cônscia dos seus
deveres e obrigações, deu-lhe essa prova».
Afirma-se, nesse Relatório, que a situação
financeira que foi legada a esta Direcção não era das mais lisonjeiras,
pois a despesa excedia, em alguns milhares de escudos, a receita, pelo
que se revelou, desde logo, a existência de um «deficit» real, embora as
contas viessem acusando saldos; é que, para se conseguirem esses saldos,
recorreu-se à confusão dos cofres (havia o das Pensões – viúvas – e o da
Inabilidade, além do Fundo Disponível) e ao recurso às dívidas passivas.
Assim, a Direcção, para evitar o agravamento
desta situação, viu-se forçada a tomar resoluções tendentes a comprimir
as excessivas despesas, atacando, desassombradamente, o mal no seu ponto
vulnerável, que era o do receituário dos clínicos estranhos à Associação
pois, pelos arquivos, verificava-se que ele correspondia a 2/3 do total
dispendido na assistência farmacêutica.
Foi enviada aos associados, em 21 de Março,
uma circular, na qual a Direcção dizia estar colocada num dilema grave:
«ou ter de entrar, abertamente, na prática dos déficits e das dívidas,
ou o regime de severas economias, tendo optado por estas, tanto mais que
o balancete de Fevereiro já acusa, no cofre do Fundo Disponível, o
déficit de 1 773$50, proveniente da assistência farmacêutica – por
bastantes vezes prestada a sócios em óptima situação económica –, o que
constitui o grande cancro da Associação.»
Na referida circular, também se diz que é em
volta deste melindroso caso
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que tem de convergir toda a acção fiscalizadora das Direcções, e que já
a Direcção de 1932 se viu forçada a suspender as chamadas especialidades
farmacêuticas, não o fazendo, porém, a tempo de evitar a dívida que
legou, a respeitável importância de 1 974$50, infringindo, por tal
motivo, a clara disposição do art.º 46.º do Estatuto; e, quase no final:
– «Em face do que, sucintamente, fica exposto e perante a contingência
de vir a agravar-se o mal, porque a despesa com o receituário cresce – a
Direcção viu-se forçada a suspender os «vistos» nas receitas dos médicos
estranhos à Associação, a partir do dia 25, cujas receitas,
consequentemente, deixam de ser abonadas».
A seguir, a Direcção lamenta-se da
extraordinária atitude que teve de tomar, mas que está nos precisos
termos do art.º 46.º já citado, que não permite exceder a receita do
Fundo Disponível.
A circular termina por dizer que a Direcção,
em tempo oportuno, justificará o seu gesto; isto, é claro, sem prejuízo
do direito que assiste aos sócios de reclamarem no lugar competente e
quando o entenderem.
Mas... isto de se abusar dos direitos
concedidos pelo Estatuto, era pecha velha, como se vê pelo artigo que o
jornal “O Democrata” publicou em 13-VII-1913, sob o título PUROS,
referindo-se ao Monte-Pio: «/.../ Os membros da quadrilha, abusando
infame e criminosamente dos direitos de sócios, faziam assalto aos
cofres da benemérita e pobre associação.
Foi, durante anos um constante assalto, um
verdadeiro saque!
Conseguiam de alguns médicos a nota de
urgente nas receitas e, assim, só nos fins dos meses é que a direcção
conhecia por quanto lhe ficavam os beneméritos associados, sempre
honrados, sempre dignos e humanitários.
Essa gente, desde as dúzias de garrafas de
águas mineraes, que às quatro e às cinco levava para casa, até aos mais
caros e variados medicamentos nacionais e estrangeiros, que se dividiam
pelos amigos, familiares, servos e servas, tudo arrebatava à referida
associação sem o mais leve sentimento de reparo, de pundonor ou de
honradez, essa gente, dizíamos, se fosse susceptível de um assomo de
dignidade e de vergonha, indemnizaria o cofre do Monte-Pio que exausto
por êsses assaltos, teve de diminuir e cerciar os benefícios, já de si
bem poucos, que fornecia ao sócio digno e respeitador do interesse
comum.»
Termina, assim, aquele artigo:
«É um abismo!
Não há memória de uma coisa assim!
Verdadeiros vampiros qualquer dos sócios da grande quadrilha! «Onde
possam meter os tentáculos tudo levam.
No Monte-Pio, nas farmácias, nas casas dos clientes, no diabo que os
carregue!...»
Fiquemos, agora, por aqui, que este artigo já vai longo.
A seguir, passaremos a analisar o Relatório
de 1933.
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O facto de terem sido suspensos os «vistos»
nas receitas passadas pelos médicos estranhos à Associação Aveirense de
Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, deu lugar a várias reacções,
havendo alguns sócios que pediram a demissão; e um deles, a quem foi
recusado o «visto» em Outubro (muito depois de expedida a circular a que
me referi no artigo anterior) queixou-se, do facto, ao Director da
Previdência Social que, de tal queixa, deu conhecimento à Direcção do Monte-Pio. Esta, por ofício de 5-XII-1933, respondeu, informando que o
sócio queixoso e a farmácia fornecedora que o incitava «transgrediram,
propositadamente e intencionalmente, a determinação da Direcção que foi
tomada na melhor das intenções e na defesa dos legítimos interesses da
Associação.» E, depois de argumentar, com base no Estatuto, a defesa da
sua atitude, dá o seguinte exemplo:
– «No penúltimo triénio (1930-1932) o
dispêndio com farmácias, incluída a dívida da gerência anterior – que
esta já pagou – na importância de 1.922$00, foi de 30.803$00!!! Pois a
importância das cotas cobradas pertencentes ao Fundo Disponível, foi de
20.437$00.»
E continua – «Convém esclarecer que, cerca
de 2/3 do receituário daquele triénio é de médicos estranhos à
Associação que não tendo em nenhuma conta os interesses da colectividade
e a sua situação financeira, são de uma liberalidade assombrosa no
receituário. O abuso ia a ponto de se consultarem especialistas fora da
cidade, apresentando a pagamento as suas receitas!
Se a isto aliarmos o estreito e baixo
egoísmo de um grande número de sócios que com uma cotação anual de 42$50
chegavam a atingir as verbas de 400, 500, 800 e até mil escudos de
despesas de farmácia, teremos a plena justificação da necessidade
imperativa que as Direcções têm de adoptar medidas de severa defesa no
interesse colectivo.»
E continua o ofício: – «Não queremos
terminar, sem acrescentar que o cidadão reclamante é um insatisfeito e
irrequieto sócio a quem falta a autoridade moral para se queixar,
porquanto só em 1932 e 1933 já tem dispendido 168$80, mais do dobro da
sua cotisação, não obstante ter 30 anos de idade, apenas.
Em conclusão temos:
1.º) Que a Direcção se viu forçada a tomar
uma tal medida para não cair em fatal transgressão do art.º 44.º com
grave prejuízo das suas finanças.
2.º) Que as Direcções que forem obrigadas ao
pagamento de receituário de médicos estranhos, hão-de ver por tal forma
as suas finanças perturbadas que causarão irreparáveis prejuízos e
gravames à vida da Associação.»
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Assim termina o ofício; se o Director da
Repartição da Previdência Social deu qualquer resposta, esta não consta
do Relatório – e não é de admirar que tal aconteça, visto a data em que
o mesmo foi expedido.
Noutro capítulo, lê-se o seguinte: «–
Cremos, firmemente, que a gerência de 1933 há-de marcar uma nova etapa
no caminho das futuras administrações da nossa Associação, desde que se
compenetrem do papel social que dentro dêstes organismos lhes é
reservado. Devemos de pôr acima de todos os interesses individuais, o
bem comum da colectividade e os seus legítimos direitos, para que ela se
engrandeça e prospere.
O mutualismo bem compreendido repele o
egoísmo pessoal, que pretende obter o maior lucro com o mínimo esforço
ou sacrifício.
O auxílio bem merecido, justo e legal
adentro das forças do cofre respectivo, está certo, e nem para outra
coisa foram instituídas estas Casas. Mas tudo o que representa abuso,
exploração ou negócio, deve ser implacavelmente expurgado, sem
transigência nem contemplações.
A certa altura, e acerca das receitas da
Associação, refere-se à renda da dependência ocupada, desde 1922, pela
Associação dos Empregados do Comércio, dizendo: – «A renda inicial foi
de 120$00 por ano (um ovo por um real!). E continua: «– Em 1932 pagavam
240$00!»
Depois de relatar as negociações entre o
senhorio e o inquilino que se arrastavam – desde Janeiro – por vários
meses, e apesar da Direcção ter ficado autorizada, na Assembleia Geral
de 8 de Maio a recorrer aos tribunais, por circunstâncias estranhas à
vontade da Direcção, não pôde cumprir-se aquele mandato, pelo que as
rendas de 1933 estão depositadas na Caixa Geral e figuram, portanto, nas
importâncias que aquela Direcção legou à sua sucessora, a quem só deixou
dívidas activas no valor de 1.433$30.
Do referido Relatório constam vários mapas:
Relação dos Sócios que, no ano de 1933, se aproveitaram dos socorros
farmacêuticos e respectivas importâncias, no qual figuram valores de $40
(a menor) a 405$94 (a maior); mapa demonstrativo de toda a assistência
farmacêutica com o número de sócios a quem ela foi prestada e o número
de receitas pagas, pelo qual se verifica que, em 1932, se gastavam
10.505$00 e, em 1933, 4.340$53; relação das viúvas que receberam não só
a importância existente no referido cofre (que, pelo novo Estatuto, foi
extinto) como, também, o subsídio entregue pela Misericórdia
(importâncias que vão desde 1$35 até 34$40); os dos movimentos do Fundo
Disponível do Cofre de Pensões (viúvas), do Cofre de Inabilidade (que,
também, foi extinto) e o do Activo da Associação que totaliza 48.613$13;
este, é acompanhado de uma NOTA que diz: – «Este fundo, para uma
Associação com 70 anos de existência é mais que modesto: é mesquinho.»
Consta, também, desse Relatório, a nota dos
funcionários da Associação e
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seus vencimentos que são, anualmente, os seguintes: clínico,
Doutor
Armando da Cunha Azevedo, 1 200$00; cartorário, Inocêncio Soares,
540$00; e cobrador, Firmino Fernandes, 180$00.
Do capítulo final, todo muito interessante
pelo seu conteúdo, respigamos os seguintes passos: – «Por outras
palavras: a continuar a prevalecer o sórdido egoísmo pessoal e a
criminosa indiferença dos últimos anos, a sua nobre missão virá a
finalizar por completo num futuro mais ou menos próximo. Não é de
admitir que a Associação tenha sido património de duas dúzias de sócios
que nestes últimos dez anos lhe têm sugado fabulosas quantias! O
cadastro do receituário dos últimos anos, a partir de 1925, é uma coisa
que faz calafrios! São estes factos que forçam as gerências, que o sabem
ser, a lançar mão de recursos extremos e medidas julgadas violentas. É
da sabedoria das nações: Para grandes males, grandes remédios.»
E no final: – «Concluindo, só nos resta
pedir indulgência para as nossas faltas e perdão para os nossos actos
que porventura possam ter parecido mais molestos, porque não houve neles
intenções preconcebidas! Não há crime onde não existe a intenção.»
Quantos comentários todas estas palavras me
sugerem…
Não é, porém, nestas achegas, o lugar
próprio para os fazer… |