Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

A Caixa Económica – Vários problemas

Chegou-me às mãos, por amabilidade do meu velho amigo Severiano Ferreira das Neves, o Relatório da Associação Aveirense de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas (vulgo Monte-Pio) referente ao ano de 1933, elaborado pela direcção presidida por Francisco António Meireles.

Ao lê-lo, encontrei dados que reputo de muito interessantes, se os compararmos com a vida actual; e, não só por isso, mas, também, por eles se verifica a maneira de ser daquele cidadão, que tinha a coragem de chamar «às coisas pelo seu nome próprio», sem se importar de saber se, com a sua atitude, iria, ou não, criar inimigos ou incitar contra si más-vontades; e, por isso, o alcunhavam de rezingão.

Foi seu companheiro de Direcção o meu saudoso amigo José Marques Sobreiro, com feitio muito semelhante ao do Meireles, e que eu bem conheci por ter trabalhado com ele muitos anos, quer nos Bombeiros Velhos, quer no Recreio Artístico. Cargo para que tivesse sido eleito – e aceitasse – dele procurava desempenhar-se cabalmente, sacrificando, para tal, o seu tempo e, até, algumas vezes, o seu dinheiro. / 70 /

Logo de entrada, afirma-se nesse Relatório: – «Ao tomarmos posse, vimo-nos desajudados de qualquer auxílio material. Não tínhamos Cartorário, e parte dos livros de escrituração achavam-se fora da Secretaria. A escrituração e arquivo eram um labirinto. Tudo em desordem, tudo num verdadeiro caos»!

E a seguir: – «Há livros sem assinaturas: há uns poucos de anos sem Actas das Direcções e Conselho Fiscal; muitos anos sem termos de posse e entregas dos corpos gerentes; muitos outros sem contas do tesoureiro; e acha-se, finalmente, por escriturar, desde há longos anos, a conta corrente com os sócios».

E, ainda mais: – «Uma nota típica que dá ideia do desleixo e da negligência. Desde 1916 que não se fazia uma revisão do inventário do mobiliário existente, no qual, além doutras, se nota a falta de vinte cadeiras completas! Nenhum fragmento das que desapareceram!».

Noutro capítulo, lê-se: – «Houve que exonerar o antigo Cartorário. Não podia deixar de ser. Pode, para muitos que ignoram os factos e as circunstâncias que se deram, parecer um acto de violência da Direcção ou um propósito antecipado. Tal não sucedeu. O sr. Cartorário é que, com as suas atitudes, arrastou a Direcção para tal caminho.»

E mais adiante: – «Pretendeu Sua Ex.ª pôr à prova a energia da Direcção.

E a Direcção, sem hesitar e cônscia dos seus deveres e obrigações, deu-lhe essa prova».

Afirma-se, nesse Relatório, que a situação financeira que foi legada a esta Direcção não era das mais lisonjeiras, pois a despesa excedia, em alguns milhares de escudos, a receita, pelo que se revelou, desde logo, a existência de um «deficit» real, embora as contas viessem acusando saldos; é que, para se conseguirem esses saldos, recorreu-se à confusão dos cofres (havia o das Pensões – viúvas – e o da Inabilidade, além do Fundo Disponível) e ao recurso às dívidas passivas.

Assim, a Direcção, para evitar o agravamento desta situação, viu-se forçada a tomar resoluções tendentes a comprimir as excessivas despesas, atacando, desassombradamente, o mal no seu ponto vulnerável, que era o do receituário dos clínicos estranhos à Associação pois, pelos arquivos, verificava-se que ele correspondia a 2/3 do total dispendido na assistência farmacêutica.

Foi enviada aos associados, em 21 de Março, uma circular, na qual a Direcção dizia estar colocada num dilema grave: «ou ter de entrar, abertamente, na prática dos déficits e das dívidas, ou o regime de severas economias, tendo optado por estas, tanto mais que o balancete de Fevereiro já acusa, no cofre do Fundo Disponível, o déficit de 1 773$50, proveniente da assistência farmacêutica – por bastantes vezes prestada a sócios em óptima situação económica –, o que constitui o grande cancro da Associação.»

Na referida circular, também se diz que é em volta deste melindroso caso / 71 / que tem de convergir toda a acção fiscalizadora das Direcções, e que já a Direcção de 1932 se viu forçada a suspender as chamadas especialidades farmacêuticas, não o fazendo, porém, a tempo de evitar a dívida que legou, a respeitável importância de 1 974$50, infringindo, por tal motivo, a clara disposição do art.º 46.º do Estatuto; e, quase no final: – «Em face do que, sucintamente, fica exposto e perante a contingência de vir a agravar-se o mal, porque a despesa com o receituário cresce – a Direcção viu-se forçada a suspender os «vistos» nas receitas dos médicos estranhos à Associação, a partir do dia 25, cujas receitas, consequentemente, deixam de ser abonadas».

A seguir, a Direcção lamenta-se da extraordinária atitude que teve de tomar, mas que está nos precisos termos do art.º 46.º já citado, que não permite exceder a receita do Fundo Disponível.

A circular termina por dizer que a Direcção, em tempo oportuno, justificará o seu gesto; isto, é claro, sem prejuízo do direito que assiste aos sócios de reclamarem no lugar competente e quando o entenderem.

Mas... isto de se abusar dos direitos concedidos pelo Estatuto, era pecha velha, como se vê pelo artigo que o jornal “O Democrata” publicou em 13-VII-1913, sob o título PUROS, referindo-se ao Monte-Pio: «/.../ Os membros da quadrilha, abusando infame e criminosamente dos direitos de sócios, faziam assalto aos cofres da benemérita e pobre associação.

Foi, durante anos um constante assalto, um verdadeiro saque!

Conseguiam de alguns médicos a nota de urgente nas receitas e, assim, só nos fins dos meses é que a direcção conhecia por quanto lhe ficavam os beneméritos associados, sempre honrados, sempre dignos e humanitários.

Essa gente, desde as dúzias de garrafas de águas mineraes, que às quatro e às cinco levava para casa, até aos mais caros e variados medicamentos nacionais e estrangeiros, que se dividiam pelos amigos, familiares, servos e servas, tudo arrebatava à referida associação sem o mais leve sentimento de reparo, de pundonor ou de honradez, essa gente, dizíamos, se fosse susceptível de um assomo de dignidade e de vergonha, indemnizaria o cofre do Monte-Pio que exausto por êsses assaltos, teve de diminuir e cerciar os benefícios, já de si bem poucos, que fornecia ao sócio digno e respeitador do interesse comum.»

Termina, assim, aquele artigo:

«É um abismo!

Não há memória de uma coisa assim!

Verdadeiros vampiros qualquer dos sócios da grande quadrilha! «Onde possam meter os tentáculos tudo levam.

No Monte-Pio, nas farmácias, nas casas dos clientes, no diabo que os carregue!...»

Fiquemos, agora, por aqui, que este artigo já vai longo.

A seguir, passaremos a analisar o Relatório de 1933. / 72 /

O facto de terem sido suspensos os «vistos» nas receitas passadas pelos médicos estranhos à Associação Aveirense de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, deu lugar a várias reacções, havendo alguns sócios que pediram a demissão; e um deles, a quem foi recusado o «visto» em Outubro (muito depois de expedida a circular a que me referi no artigo anterior) queixou-se, do facto, ao Director da Previdência Social que, de tal queixa, deu conhecimento à Direcção do Monte-Pio. Esta, por ofício de 5-XII-1933, respondeu, informando que o sócio queixoso e a farmácia fornecedora que o incitava «transgrediram, propositadamente e intencionalmente, a determinação da Direcção que foi tomada na melhor das intenções e na defesa dos legítimos interesses da Associação.» E, depois de argumentar, com base no Estatuto, a defesa da sua atitude, dá o seguinte exemplo:

– «No penúltimo triénio (1930-1932) o dispêndio com farmácias, incluída a dívida da gerência anterior – que esta já pagou – na importância de 1.922$00, foi de 30.803$00!!! Pois a importância das cotas cobradas pertencentes ao Fundo Disponível, foi de 20.437$00.»

E continua – «Convém esclarecer que, cerca de 2/3 do receituário daquele triénio é de médicos estranhos à Associação que não tendo em nenhuma conta os interesses da colectividade e a sua situação financeira, são de uma liberalidade assombrosa no receituário. O abuso ia a ponto de se consultarem especialistas fora da cidade, apresentando a pagamento as suas receitas!

Se a isto aliarmos o estreito e baixo egoísmo de um grande número de sócios que com uma cotação anual de 42$50 chegavam a atingir as verbas de 400, 500, 800 e até mil escudos de despesas de farmácia, teremos a plena justificação da necessidade imperativa que as Direcções têm de adoptar medidas de severa defesa no interesse colectivo.»

E continua o ofício: – «Não queremos terminar, sem acrescentar que o cidadão reclamante é um insatisfeito e irrequieto sócio a quem falta a autoridade moral para se queixar, porquanto só em 1932 e 1933 já tem dispendido 168$80, mais do dobro da sua cotisação, não obstante ter 30 anos de idade, apenas.

Em conclusão temos:

1.º) Que a Direcção se viu forçada a tomar uma tal medida para não cair em fatal transgressão do art.º 44.º com grave prejuízo das suas finanças.

2.º) Que as Direcções que forem obrigadas ao pagamento de receituário de médicos estranhos, hão-de ver por tal forma as suas finanças perturbadas que causarão irreparáveis prejuízos e gravames à vida da Associação.» / 73 /

Assim termina o ofício; se o Director da Repartição da Previdência Social deu qualquer resposta, esta não consta do Relatório – e não é de admirar que tal aconteça, visto a data em que o mesmo foi expedido.

Noutro capítulo, lê-se o seguinte: «– Cremos, firmemente, que a gerência de 1933 há-de marcar uma nova etapa no caminho das futuras administrações da nossa Associação, desde que se compenetrem do papel social que dentro dêstes organismos lhes é reservado. Devemos de pôr acima de todos os interesses individuais, o bem comum da colectividade e os seus legítimos direitos, para que ela se engrandeça e prospere.

O mutualismo bem compreendido repele o egoísmo pessoal, que pretende obter o maior lucro com o mínimo esforço ou sacrifício.

O auxílio bem merecido, justo e legal adentro das forças do cofre respectivo, está certo, e nem para outra coisa foram instituídas estas Casas. Mas tudo o que representa abuso, exploração ou negócio, deve ser implacavelmente expurgado, sem transigência nem contemplações.

A certa altura, e acerca das receitas da Associação, refere-se à renda da dependência ocupada, desde 1922, pela Associação dos Empregados do Comércio, dizendo: – «A renda inicial foi de 120$00 por ano (um ovo por um real!). E continua: «– Em 1932 pagavam 240$00!»

Depois de relatar as negociações entre o senhorio e o inquilino que se arrastavam – desde Janeiro – por vários meses, e apesar da Direcção ter ficado autorizada, na Assembleia Geral de 8 de Maio a recorrer aos tribunais, por circunstâncias estranhas à vontade da Direcção, não pôde cumprir-se aquele mandato, pelo que as rendas de 1933 estão depositadas na Caixa Geral e figuram, portanto, nas importâncias que aquela Direcção legou à sua sucessora, a quem só deixou dívidas activas no valor de 1.433$30.

Do referido Relatório constam vários mapas: Relação dos Sócios que, no ano de 1933, se aproveitaram dos socorros farmacêuticos e respectivas importâncias, no qual figuram valores de $40 (a menor) a 405$94 (a maior); mapa demonstrativo de toda a assistência farmacêutica com o número de sócios a quem ela foi prestada e o número de receitas pagas, pelo qual se verifica que, em 1932, se gastavam 10.505$00 e, em 1933, 4.340$53; relação das viúvas que receberam não só a importância existente no referido cofre (que, pelo novo Estatuto, foi extinto) como, também, o subsídio entregue pela Misericórdia (importâncias que vão desde 1$35 até 34$40); os dos movimentos do Fundo Disponível do Cofre de Pensões (viúvas), do Cofre de Inabilidade (que, também, foi extinto) e o do Activo da Associação que totaliza 48.613$13; este, é acompanhado de uma NOTA que diz: – «Este fundo, para uma Associação com 70 anos de existência é mais que modesto: é mesquinho.»

Consta, também, desse Relatório, a nota dos funcionários da Associação e / 74 / seus vencimentos que são, anualmente, os seguintes: clínico, Doutor Armando da Cunha Azevedo, 1 200$00; cartorário, Inocêncio Soares, 540$00; e cobrador, Firmino Fernandes, 180$00.

Do capítulo final, todo muito interessante pelo seu conteúdo, respigamos os seguintes passos: – «Por outras palavras: a continuar a prevalecer o sórdido egoísmo pessoal e a criminosa indiferença dos últimos anos, a sua nobre missão virá a finalizar por completo num futuro mais ou menos próximo. Não é de admitir que a Associação tenha sido património de duas dúzias de sócios que nestes últimos dez anos lhe têm sugado fabulosas quantias! O cadastro do receituário dos últimos anos, a partir de 1925, é uma coisa que faz calafrios! São estes factos que forçam as gerências, que o sabem ser, a lançar mão de recursos extremos e medidas julgadas violentas. É da sabedoria das nações: Para grandes males, grandes remédios.»

E no final: – «Concluindo, só nos resta pedir indulgência para as nossas faltas e perdão para os nossos actos que porventura possam ter parecido mais molestos, porque não houve neles intenções preconcebidas! Não há crime onde não existe a intenção.»

Quantos comentários todas estas palavras me sugerem…

Não é, porém, nestas achegas, o lugar próprio para os fazer…

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