Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Feira de Março de há 60 anos (1)

A Feira de Março de há sessenta anos era diferente da de agora e tinha outra finalidade, pois nela se vendiam muitos artigos que não se encontravam nos estabelecimentos usuais.

Se atendermos a que, então, o comércio dos arredores, e o da própria cidade, era de muito menores dimensões que o actual, ficaremos a compreender a razão pela qual as gentes de que falamos no capítulo anterior, vinham em tão grande quantidade a Aveiro durante os quinze dias que durava a Feira de Março, visto que vinham abastecer-se dos artigos de que tinham necessidade e não encontravam à venda nas suas terras.

Entrada da Feira de Março nos começos do século XX, posteriormente à época evocada no texto. Desconhecemos a data desta imagem, mas podemos verificar que a feira já era iluminada com luz eléctrica. A primeira vez que os aveirenses viram a luz eléctrica foi precisamente numa demonstração efectuada na Feira de Março de 1921. Só em 25 de Setembro deste ano foi inaugurada oficialmente a luz eléctrica na cidade. Anteriormente, os feirantes iluminavam-se a acetileno e a petróleo. [HJCO]


O dia da abertura da Feira coincide com o que a Igreja Católica consagra à Anunciação de Nossa Senhora, e era, nessa altura, Dia Santo de Guarda; por isso, aquelas gentes, depois de ouvirem a missa e arrumarem os gados, ficavam livres das suas obrigações daquele dia e vinham a Aveiro, não só para passear e divertir-se como, também, para fazer as compras, atendendo à proximidade da Páscoa.

Mas, não era só no dia da abertura que os lavradores das nossas redondezas vinham à feira.

Durante todos os dias do período da feira, principalmente se chovia, e, portanto, não podiam trabalhar nos campos, aí vinham eles fazer as suas compras com maior sossego e à vontade, pois, aos domingos, o movimento era quase igual ao do dia da abertura, e não se podia ajustar e regatear à vontade o preço daquilo que se pretendia adquirir. / 42 /

Também, durante aquele período se fazia a feira dos barcos, no canal central, comprando e vendendo os que, para tal efeito, se apresentavam (quer novos, quer usados) e, até, encomendando aos mestres construtores novas unidades a entregar em período, então, estabelecido.

E vinham comerciantes de toda a parte fazer o seu negócio. E muitos dos proprietários dos estabelecimentos locais também montavam a sua barraca na feira, pois que os visitantes tinham, para si, como certo, que na Feira de Março, conseguiam comprar mais barato do que nos estabelecimentos citadinos.

De Penafiel vinham os negociantes de calçado, os de fatos feitos e capas alentejanas, e, também, os correeiros com a mercadoria da sua especialidade: albardas para burros e selas para cavalos, apresentando-as das mais modestas às mais vistosas e bem trabalhadas, pois, para todas, havia clientela; calçado vinha, também, de Viseu; e, do Porto, além dos bazares, não faltavam os negociantes de fato feito e calçado.

Um par de botas, ou de sapatos, eram, para a época, relativamente caros, sendo certo que os nossos aldeões só os usavam nos dias de festa ou quando tinham de vir à cidade, ou mesmo à vila, para tratar de assuntos em repartições públicas.

Nos outros dias andavam descalços, ou, então, usavam chancas, tamancos ou socos de atanado, cordovão, vitela ensebada ou, mesmo de calfe, encoirados em madeira de laranjeira (os melhores), loureiro, ou eucalipto, calçado que a mocidade actual usou, o verão passado, como grande moda…

Quero confessar que quando vi os primeiros moços e moças com tal calçado, lembrou-me, pelo barulho que faziam ao caminhar, dos esterqueiros que, noutro tempo, vinham a Aveiro, buscar o estrume que retiravam das cloacas e destinavam a adubar as suas terras... que davam boas hortaliças.

Sapatos ou botas era luxo de tal categoria que, naquele tempo, se contava que um lavrador, tendo comprado um par de sapatos na feira, os leva ao ombro; ao regressar a casa, na estrada, dá uma topada, fica com o dedo grande ensanguentado e comenta: olha, se eu trazia os meus sapatos novos calçados!...

E as cenas que se passavam nas ruas de fato feito?!

Se o freguês se inclinava para certo artigo, e o preço ajustado lhe agradava, certo e sabido era que, curto ou comprido, acabava por o levar, tal a habilidade que os patrões e caixeiros tinham na arte de impingir o seu artigo, e no palavreado que empregavam e desenvolviam durante a venda.

Era coisa digna de ver-se e havia, até, «mirones» que perdiam o seu tempo a assistir a tais cenas.

Se o casaco era largo, o patrão, que vinha finalizar o negócio, apertava o tecido com a mão, pela parte de trás, de maneira que o casaco, pela frente, parecia estar à feição do corpo; se, curto nas mangas, puxava-se a do lado para / 43 / a qual o freguês estava a olhar; e, quando este olhava para o lado contrário, lá ia um puxão desse lado; se, comprido, era moda usar-se assim; se curto, também era moda.

E, se no estabelecimento, não havia melhor medida para o cliente, puxa daqui, e puxa dali, e aperta atrás ou à frente, com muito palavreado à mistura, normalmente, caixeiros e patrões das barracas de fato feito lá conseguiam impingir a peça de roupa que o freguês levava convencido que ela lhe vestia bem.

Não eram só as barracas de calçado e fato feito que faziam o seu grande negócio; faziam-no, também, os barraqueiros doutros artigos.

Das barracas de quinquilharias, que chegavam quase que até à ponte, havia-as de alguns negociantes que à Feira de Março vieram até há muito pouco tempo, não faltando nenhum ano: o Machado, com estabelecimento fixo na Figueira da Foz; o Nascimento, com bazar no Porto (um familiar, pelo menos, ainda hoje vem à Feira).

E era certo, também, o Bazar dos três Vinténs; neste, que ocupava uns poucos de lanços de barracas, e tinha a sua sede no Porto, todos os artigos à venda custavam três vinténs (60 réis, ou seja, na moeda actual, seis centavos) o qual deixou de vir à Feira logo que a vida começou a modificar-se e haver subida dos preços de todos os artigos.

E vinha o oculista Sousa (nesse tempo não havia, em Aveiro, estabelecimentos dessa especialidade) que vendia, além de óculos, termómetros, lupas, etc.; e vinha, também, o Silva 5, de Guimarães, com as cutelarias do seu fabrico, das mais afamadas – e ele lá estava para garantir a sua qualidade.

Também se vendiam mobílias, tanto de ferro como de madeira.

De ferro, a grande venda era a das camas, desde as mais simples às mais ornamentadas, havendo algumas com a coroa real, em dourado, sendo a cama pintada de branco.

E os colchões eram de riscado próprio cheios com palha de trigo e folhelho de milho, os melhores.

Continuando um pouco mais com a Feira de Março e das multidões que vinham a Aveiro, falemos também das procissões que traziam à cidade grandes quantidades de gente, gente não só das aldeias do litoral, como, também, dos arredores da cidade e, até, das vilas mais próximas da sede do distrito. / 44 /

A propósito das imagens de Cristo, devo dizer-lhes que o Santos, de Ílhavo, não tinha o exclusivo deste negócio, mas que era, sim, o mais conceituado e o que as apresentava com maior perfeição artística, havendo quem as vendesse, também, em barracas da Feira e em lugares no chão. E estou a lembrar-me de que, certo ano, um ambulante pediu ao falecido Manes Nogueira, Pai, para montar à sua porta um lugar destinado à venda dessas imagens; autorizado que foi para tal, estendeu um cobertor no chão, colocou-lhe um lençol por cima e fez a sua exposição.

A certa altura, começou a cair uma borrasca leve, pelo que o homenzinho, entendendo que não valia a pena recolher a mercadoria, cobriu-a com outro lençol e encostou-se à parede da casa do «ti» Manes. Quando a borrasca passou, saiu do seu abrigo e, olhando para o lençol, verificou que este estava tingido – e ficou contristado.

Destapou as imagens e, verificando o prejuízo causado pela morrinha que esborratou as tintas, talvez frescas, com que as imagens estavam pintadas, ficou acabrunhado a olhá-las.

O «ti» Manes, ao sair de casa, viu o homem tão abstracto, que se lhe dirigiu, perguntando: – Você está a olhar para os Cristos?

O homem, saindo da sua abstracção, respondeu: – Cristos?! É que isto não são Cristos; isto foi o diabo que me apareceu...

Das barracas das diversões na Feira de Março eram importantes a escola de tiro do Salvador, que tinha, a atender a clientela, as suas filhas, muito bonitas e honestas; esta barraca não se confundia com muitas congéneres, onde havia outra espécie de pessoal, jeitoso é certo, mas já muito batido, sempre a convidar a rapaziada para dar um tirinho, mas perigoso, para esta, se caía na asneira de meter-se em aventuras com tal gente, que, para esse efeito, se enfeitava. E havia, também a do «Zé das Mentiras», que era um exímio executante de cornetim, tocando, não só à porta da barraca para entusiasmar a assistência a entrar, como, também, durante o espectáculo, onde, além de fazer de palhaço, executava, no seu cornetim, várias músicas clássicas, não deixando, nunca, de tocar a ária do «Carnaval de Veneza» (pela qual tinha uma certa paixão), com todas as variações impostas àquele instrumento; e fazia-o com amor, sabendo, corno sabia, que a sua clientela gostava de o ouvir naquele trecho musical, que ele executava a primor.

O seu reclame era sempre o mesmo: dizia do que se veria no espectáculo, dedicado, especialmente, às crianças, terminando: «É entrar! É entrar! É só um vintém (20 réis ou 2 centavos) por cabeça; e quem não tiver cabeça não paga nada.» E repenicava no seu cornetim, de tal forma, que as notas daquele instrumento se ouviam em todo o Rossio.

E havia muitas mais barracas de divertimentos, não faltando, também, os / 45 / circos e os fotógrafos à la minuta, que os visitantes aproveitavam, não só para tirar a sua fotografia ao natural como, ainda, colocando-se por detrás de painéis pintados e preparados para o efeito, apareciam a cavalo, a navegar no mar alto, ou noutras posições mais extravagantes.

Quem gostava muito de fotografias deste género eram os namorados das aldeias…

Sobre as procissões, vejamos o que escreveu o ilustre aveirense e muito respeitado e amado Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, no seu livro Lições da Natureza e dos Homens:

«Quem viu uma procissão em Aveiro não viu decência maior em mais parte nenhuma. Aqueles homens da beira-mar andavam ontem na sua faina, nas companhas de S. Jacinto ou da Costa-Nova-do-Prado, dentro dos grandes barcos de proa esguia, a remar, a deitar as redes, ou à pancada à água, a dirigir as manobras do saco; de ceroulas arregaçadas. de peito ao léu, cheios de escamas, gritando, a todo o pulmão. E hoje, ali vão eles, irrepreensivelmente bem postos, de fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de luvas brancas, de opa de seda com cordão e orlas d'ouro!»

E, saltando um pedaço em que se fala dos anjinhos:

«Os andores, a maior parte das vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!

Os pendões bordados e as cruzes de prata, a sequência grave das irmandades, o brilho das vestes litúrgicas, a custódia debaixo do pálio, a música nova ou a música velha a bulir-nos na alma, o nosso esplêndido povo pelas janelas e pelas ruas, tudo se apresenta tão bem, tudo corre tão bem, que digam-me se eu não tenho razão de repetir o que escrevi ao princípio: quem viu uma procissão em Aveiro, não viu decência maior em mais parte nenhuma.»

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(1) Para os leitores actuais, agora que estamos na segunda década do séc. XXI, lembramos que a Feira de Março se realizava, na primeira metade do século XX, quase no coração da cidade, no largo do Rossio. E aqui se manteve, se a memória não nos atraiçoa, até 1979.

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