A Feira de Março de há sessenta anos era
diferente da de agora e tinha outra finalidade, pois nela se vendiam
muitos artigos que não se encontravam nos estabelecimentos usuais.
Se atendermos a que, então, o comércio dos
arredores, e o da própria cidade, era de muito menores dimensões que o
actual, ficaremos a compreender a razão pela qual as gentes de que
falamos no capítulo anterior, vinham em tão grande quantidade a Aveiro
durante os quinze dias que durava a Feira de Março, visto que vinham
abastecer-se dos artigos de que tinham necessidade e não encontravam à
venda nas suas terras.
Entrada da Feira de Março nos começos do
século XX, posteriormente à época evocada no texto. Desconhecemos a data
desta imagem, mas podemos verificar que a feira já era iluminada com luz
eléctrica. A primeira vez que os aveirenses viram a luz eléctrica foi
precisamente numa demonstração efectuada na Feira de Março de 1921. Só
em 25 de Setembro deste ano foi inaugurada oficialmente a luz eléctrica
na cidade. Anteriormente, os feirantes iluminavam-se a acetileno e a
petróleo. [HJCO]
O dia da abertura da Feira coincide com o que a Igreja Católica consagra
à Anunciação de Nossa Senhora, e era, nessa altura, Dia Santo de Guarda;
por isso, aquelas gentes, depois de ouvirem a missa e arrumarem os
gados, ficavam livres das suas obrigações daquele dia e vinham a Aveiro,
não só para passear e divertir-se como, também, para fazer as compras,
atendendo à proximidade da Páscoa.
Mas, não era só no dia da abertura que os
lavradores das nossas redondezas vinham à feira.
Durante todos os dias do período da feira,
principalmente se chovia, e, portanto, não podiam trabalhar nos campos,
aí vinham eles fazer as suas compras com maior sossego e à vontade,
pois, aos domingos, o movimento era quase igual ao do dia da abertura, e
não se podia ajustar e regatear à vontade o preço daquilo que se
pretendia adquirir.
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Também, durante aquele período se fazia a
feira dos barcos, no canal central, comprando e vendendo os que, para
tal efeito, se apresentavam (quer novos, quer usados) e, até,
encomendando aos mestres construtores novas unidades a entregar em
período, então, estabelecido.
E vinham comerciantes de toda a parte fazer
o seu negócio. E muitos dos proprietários dos estabelecimentos locais
também montavam a sua barraca na feira, pois que os visitantes tinham,
para si, como certo, que na Feira de Março, conseguiam comprar mais
barato do que nos estabelecimentos citadinos.
De Penafiel vinham os negociantes de
calçado, os de fatos feitos e capas alentejanas, e, também, os
correeiros com a mercadoria da sua especialidade: albardas para burros e
selas para cavalos, apresentando-as das mais modestas às mais vistosas e
bem trabalhadas, pois, para todas, havia clientela; calçado vinha,
também, de Viseu; e, do Porto, além dos bazares, não faltavam os
negociantes de fato feito e calçado.
Um par de botas, ou de sapatos, eram, para a
época, relativamente caros, sendo certo que os nossos aldeões só os
usavam nos dias de festa ou quando tinham de vir à cidade, ou mesmo à
vila, para tratar de assuntos em repartições públicas.
Nos outros dias andavam descalços, ou,
então, usavam chancas, tamancos ou socos de atanado, cordovão, vitela
ensebada ou, mesmo de calfe, encoirados em madeira de laranjeira (os
melhores), loureiro, ou eucalipto, calçado que a mocidade actual usou, o
verão passado, como grande moda…
Quero confessar que quando vi os primeiros
moços e moças com tal calçado, lembrou-me, pelo barulho que faziam ao
caminhar, dos esterqueiros que, noutro tempo, vinham a Aveiro, buscar o
estrume que retiravam das cloacas e destinavam a adubar as suas
terras... que davam boas hortaliças.
Sapatos ou botas era luxo de tal categoria
que, naquele tempo, se contava que um lavrador, tendo comprado um par de
sapatos na feira, os leva ao ombro; ao regressar a casa, na estrada, dá
uma topada, fica com o dedo grande ensanguentado e comenta: olha, se eu
trazia os meus sapatos novos calçados!...
E as cenas que se passavam nas ruas de fato
feito?!
Se o freguês se inclinava para certo artigo,
e o preço ajustado lhe agradava, certo e sabido era que, curto ou
comprido, acabava por o levar, tal a habilidade que os patrões e
caixeiros tinham na arte de impingir o seu artigo, e no palavreado que
empregavam e desenvolviam durante a venda.
Era coisa digna de ver-se e havia, até,
«mirones» que perdiam o seu tempo a assistir a tais cenas.
Se o casaco era largo, o patrão, que vinha
finalizar o negócio, apertava o tecido com a mão, pela parte de trás, de
maneira que o casaco, pela frente, parecia estar à feição do corpo; se,
curto nas mangas, puxava-se a do lado para
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a qual o freguês estava a olhar; e, quando este olhava para o lado
contrário, lá ia um puxão desse lado; se, comprido, era moda usar-se
assim; se curto, também era moda.
E, se no estabelecimento, não havia melhor
medida para o cliente, puxa daqui, e puxa dali, e aperta atrás ou à
frente, com muito palavreado à mistura, normalmente, caixeiros e patrões
das barracas de fato feito lá conseguiam impingir a peça de roupa que o
freguês levava convencido que ela lhe vestia bem.
Não eram só as barracas de calçado e fato
feito que faziam o seu grande negócio; faziam-no, também, os
barraqueiros doutros artigos.
Das barracas de quinquilharias, que chegavam
quase que até à ponte, havia-as de alguns negociantes que à Feira de
Março vieram até há muito pouco tempo, não faltando nenhum ano: o
Machado, com estabelecimento fixo na Figueira da Foz; o Nascimento, com
bazar no Porto (um familiar, pelo menos, ainda hoje vem à Feira).
E era certo, também, o Bazar dos três
Vinténs; neste, que ocupava uns poucos de lanços de barracas, e tinha a
sua sede no Porto, todos os artigos à venda custavam três vinténs (60
réis, ou seja, na moeda actual, seis centavos) o qual deixou de vir à
Feira logo que a vida começou a modificar-se e haver subida dos preços
de todos os artigos.
E vinha o oculista Sousa (nesse tempo não
havia, em Aveiro, estabelecimentos dessa especialidade) que vendia, além
de óculos, termómetros, lupas, etc.; e vinha, também, o Silva 5, de
Guimarães, com as cutelarias do seu fabrico, das mais afamadas – e ele
lá estava para garantir a sua qualidade.
Também se vendiam mobílias, tanto de ferro
como de madeira.
De ferro, a grande venda era a das camas,
desde as mais simples às mais ornamentadas, havendo algumas com a coroa
real, em dourado, sendo a cama pintada de branco.
E os colchões eram de riscado próprio cheios
com palha de trigo e folhelho de milho, os melhores.
Continuando um pouco mais com a Feira de
Março e das multidões que vinham a Aveiro, falemos também das procissões
que traziam à cidade grandes quantidades de gente, gente não só das
aldeias do litoral, como, também, dos arredores da cidade e, até, das
vilas mais próximas da sede do distrito.
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A propósito das imagens de Cristo, devo
dizer-lhes que o Santos, de Ílhavo, não tinha o exclusivo deste negócio,
mas que era, sim, o mais conceituado e o que as apresentava com maior
perfeição artística, havendo quem as vendesse, também, em barracas da
Feira e em lugares no chão. E estou a lembrar-me de que, certo ano, um
ambulante pediu ao falecido Manes Nogueira, Pai, para montar à sua porta
um lugar destinado à venda dessas imagens; autorizado que foi para tal,
estendeu um cobertor no chão, colocou-lhe um lençol por cima e fez a sua
exposição.
A certa altura, começou a cair uma borrasca
leve, pelo que o homenzinho, entendendo que não valia a pena recolher a
mercadoria, cobriu-a com outro lençol e encostou-se à parede da casa do
«ti» Manes. Quando a borrasca passou, saiu do seu abrigo e, olhando para
o lençol, verificou que este estava tingido – e ficou contristado.
Destapou as imagens e, verificando o
prejuízo causado pela morrinha que esborratou as tintas, talvez frescas,
com que as imagens estavam pintadas, ficou acabrunhado a olhá-las.
O «ti» Manes, ao sair de casa, viu o homem
tão abstracto, que se lhe dirigiu, perguntando: – Você está a olhar para
os Cristos?
O homem, saindo da sua abstracção,
respondeu: – Cristos?! É que isto não são Cristos; isto foi o diabo que
me apareceu...
Das barracas das diversões na Feira de Março
eram importantes a escola de tiro do Salvador, que tinha, a atender a
clientela, as suas filhas, muito bonitas e honestas; esta barraca não se
confundia com muitas congéneres, onde havia outra espécie de pessoal,
jeitoso é certo, mas já muito batido, sempre a convidar a rapaziada para
dar um tirinho, mas perigoso, para esta, se caía na asneira de meter-se
em aventuras com tal gente, que, para esse efeito, se enfeitava. E
havia, também a do «Zé das Mentiras», que era um exímio executante de
cornetim, tocando, não só à porta da barraca para entusiasmar a
assistência a entrar, como, também, durante o espectáculo, onde, além de
fazer de palhaço, executava, no seu cornetim, várias músicas clássicas,
não deixando, nunca, de tocar a ária do «Carnaval de Veneza» (pela qual
tinha uma certa paixão), com todas as variações impostas àquele
instrumento; e fazia-o com amor, sabendo, corno sabia, que a sua
clientela gostava de o ouvir naquele trecho musical, que ele executava a
primor.
O seu reclame era sempre o mesmo: dizia do
que se veria no espectáculo, dedicado, especialmente, às crianças,
terminando: «É entrar! É entrar! É só um vintém (20 réis ou 2 centavos)
por cabeça; e quem não tiver cabeça não paga nada.» E repenicava no seu
cornetim, de tal forma, que as notas daquele instrumento se ouviam em
todo o Rossio.
E havia muitas mais barracas de
divertimentos, não faltando, também, os
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circos e os fotógrafos à la minuta, que os visitantes
aproveitavam, não só para tirar a sua fotografia ao natural como, ainda,
colocando-se por detrás de painéis pintados e preparados para o efeito,
apareciam a cavalo, a navegar no mar alto, ou noutras posições mais
extravagantes.
Quem gostava muito de fotografias deste
género eram os namorados das aldeias…
Sobre as procissões, vejamos o que escreveu
o ilustre aveirense e muito respeitado e amado Arcebispo-Bispo de
Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, no seu livro Lições da
Natureza e dos Homens:
«Quem viu uma procissão em Aveiro não viu
decência maior em mais parte nenhuma. Aqueles homens da beira-mar
andavam ontem na sua faina, nas companhas de S. Jacinto ou da
Costa-Nova-do-Prado, dentro dos grandes barcos de proa esguia, a remar,
a deitar as redes, ou à pancada à água, a dirigir as manobras do saco;
de ceroulas arregaçadas. de peito ao léu, cheios de escamas, gritando, a
todo o pulmão. E hoje, ali vão eles, irrepreensivelmente bem postos, de
fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de luvas brancas, de
opa de seda com cordão e orlas d'ouro!»
E, saltando um pedaço em que se fala dos
anjinhos:
«Os andores, a maior parte das vezes, são verdadeiros encantos
de ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no
seu lugar próprio!
Os pendões bordados e as cruzes de prata, a
sequência grave das irmandades, o brilho das vestes litúrgicas, a
custódia debaixo do pálio, a música nova ou a música velha a bulir-nos
na alma, o nosso esplêndido povo pelas janelas e pelas ruas, tudo se
apresenta tão bem, tudo corre tão bem, que digam-me se eu não tenho
razão de repetir o que escrevi ao princípio: quem viu uma procissão em
Aveiro, não viu decência maior em mais parte nenhuma.»
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