Na nossa última «achega», transcrevemos, em
abono do que vínhamos dizendo sobre as procissões em Aveiro, algumas
expressivas e impressivas passagens que, sobre o tema, saíram da pena
esclarecida e brilhante do saudoso D. João Evangelista de Lima Vidal, o
inesquecível propulsionador da restauração da Diocese aveirense. E o
trecho que trouxemos a estas colunas continua, descrevendo uma procissão
que ele vira em Itália, cuja pouca, ou nenhuma decência contrastava com
as procissões daqui.
E vem a propósito dizer, agora, que a
procissão do Corpo de Deus Real era, na realidade, imponente. Nela se
incorporava a enorme imagem de S. Cristóvão,
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que dava a impressão que caminhava por seu pé, visto que era
transportada por um homem introduzido no seu interior.
Nos últimos anos em que a procissão se
realizou – o último foi em 1910 – o condutor de S. Cristóvão foi sempre
o mesmo: o João do Padre, também conhecido por João Mudo, que tomava
muito a sério a sua missão, estando, intimamente, convencido de que era
insubstituível naquela função; e, se alguém, para o arreliar, lhe dizia
que não seria ele a levar o Santo, ou que este não tinha ido direito na
última procissão, o João Mudo, normalmente pacato, enfurecia-se e
disparatava, sendo difícil sossegá-lo e, até, segurá-lo, visto que se
tratava de um homem muito possante.
Durante o dia, as pessoas que vinham de fora
– e as da cidade também –, levavam à igreja de S. Domingos (onde a
imagem estava exposta) broas, com canela e erva doce, (feitas,
especialmente, para o efeito) a fim de serem benzidas na imagem do
Santo, pois era tradição que, depois de benzidas, essas broas, das quais
o sacristão tirava pedaços para, depois, serem dados aos pobres, essas
broas, dizia, tinham o condão de abrir o apetite a quem tivesse fastio.
Os que desejavam trazer a sua broa inteira,
pagavam uma importância que, como esmola, era, depois, distribuída pelos
pobres.
Também nesta procissão se conduzia a imagem
de S. Jorge, colocada, e devidamente atarraxada, na sela de um cavalo
branco, e rodeada pelos seus pajens (soldados de Cavalaria, de vistosos
fardamentos, capacetes emplumados); com fardamentos iguais, iam soldados
que compunham o esquadrão, também presente no préstito.
Igualmente nele se incorporavam soldados de
Infantaria, fardados de grande gala, barretinas vermelhas enfeitadas com
uma maçaneta; e a Vereação da Câmara Municipal, com as suas faixas azuis
e brancas; e as outras autoridades civis, de fraque ou sobrecasaca, as
militares, de uniformes de grande gala; e o Governador Civil, logo a
seguir ao pálio, conduzindo a umbela.
Todo este aparato dava à procissão uma
imponência tal, que justificava a fama que tinha e que fazia com que
tanta gente viesse a Aveiro naquele dia.
Ao recolher à antiga Sé, donde saíra, a
procissão era saudada por descargas de pólvora seca, dadas por uma
companhia de Infantaria que, para esse efeito, estava postada no
TERREIRO, local que, hoje, é a Praça do Marquês de Pombal.
A procissão das Cinzas, de que muita gente
ainda se lembra (só desde há poucos anos deixou de sair), era, do mesmo
modo, imponente, com os seus treze andores «verdadeiros encantos de
ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu
lugar próprio».
Também vinha muita gente de fora para a ver
passar; e viam-se os pais ou
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os padrinhos de crianças tardias no falar que passavam, com estas, por
debaixo do andor de Santa Clara, e, a seguir, pelo de S. Luís, dizendo:
«São Luís, rei de França, dai fala a esta criança».
Outras procissões, como a de Santa Joana e
as dos Passos (esta de cada uma das freguesias da cidade), chamavam a
Aveiro, e chamam ainda, o pessoal dos nossos arredores.
A rivalidade que havia entre os mordomos das
duas freguesias, no que respeita às procissões do Senhor dos Passos,
será história para contar alguma vez, se, para tal tiver vida e saúde e
a memória não me abandonar.
Já que me meti nestas coisas, tenho de me
safar delas…
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