Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Procissão do Corpo de Deus

Na nossa última «achega», transcrevemos, em abono do que vínhamos dizendo sobre as procissões em Aveiro, algumas expressivas e impressivas passagens que, sobre o tema, saíram da pena esclarecida e brilhante do saudoso D. João Evangelista de Lima Vidal, o inesquecível propulsionador da restauração da Diocese aveirense. E o trecho que trouxemos a estas colunas continua, descrevendo uma procissão que ele vira em Itália, cuja pouca, ou nenhuma decência contrastava com as procissões daqui.

E vem a propósito dizer, agora, que a procissão do Corpo de Deus Real era, na realidade, imponente. Nela se incorporava a enorme imagem de S. Cristóvão, / 46 / que dava a impressão que caminhava por seu pé, visto que era transportada por um homem introduzido no seu interior.

Nos últimos anos em que a procissão se realizou – o último foi em 1910 – o condutor de S. Cristóvão foi sempre o mesmo: o João do Padre, também conhecido por João Mudo, que tomava muito a sério a sua missão, estando, intimamente, convencido de que era insubstituível naquela função; e, se alguém, para o arreliar, lhe dizia que não seria ele a levar o Santo, ou que este não tinha ido direito na última procissão, o João Mudo, normalmente pacato, enfurecia-se e disparatava, sendo difícil sossegá-lo e, até, segurá-lo, visto que se tratava de um homem muito possante.

Durante o dia, as pessoas que vinham de fora – e as da cidade também –, levavam à igreja de S. Domingos (onde a imagem estava exposta) broas, com canela e erva doce, (feitas, especialmente, para o efeito) a fim de serem benzidas na imagem do Santo, pois era tradição que, depois de benzidas, essas broas, das quais o sacristão tirava pedaços para, depois, serem dados aos pobres, essas broas, dizia, tinham o condão de abrir o apetite a quem tivesse fastio.

Os que desejavam trazer a sua broa inteira, pagavam uma importância que, como esmola, era, depois, distribuída pelos pobres.

Também nesta procissão se conduzia a imagem de S. Jorge, colocada, e devidamente atarraxada, na sela de um cavalo branco, e rodeada pelos seus pajens (soldados de Cavalaria, de vistosos fardamentos, capacetes emplumados); com fardamentos iguais, iam soldados que compunham o esquadrão, também presente no préstito.

Igualmente nele se incorporavam soldados de Infantaria, fardados de grande gala, barretinas vermelhas enfeitadas com uma maçaneta; e a Vereação da Câmara Municipal, com as suas faixas azuis e brancas; e as outras autoridades civis, de fraque ou sobrecasaca, as militares, de uniformes de grande gala; e o Governador Civil, logo a seguir ao pálio, conduzindo a umbela.

Todo este aparato dava à procissão uma imponência tal, que justificava a fama que tinha e que fazia com que tanta gente viesse a Aveiro naquele dia.

Ao recolher à antiga Sé, donde saíra, a procissão era saudada por descargas de pólvora seca, dadas por uma companhia de Infantaria que, para esse efeito, estava postada no TERREIRO, local que, hoje, é a Praça do Marquês de Pombal.

A procissão das Cinzas, de que muita gente ainda se lembra (só desde há poucos anos deixou de sair), era, do mesmo modo, imponente, com os seus treze andores «verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio».

Também vinha muita gente de fora para a ver passar; e viam-se os pais ou / 47 / os padrinhos de crianças tardias no falar que passavam, com estas, por debaixo do andor de Santa Clara, e, a seguir, pelo de S. Luís, dizendo: «São Luís, rei de França, dai fala a esta criança».

Outras procissões, como a de Santa Joana e as dos Passos (esta de cada uma das freguesias da cidade), chamavam a Aveiro, e chamam ainda, o pessoal dos nossos arredores.

A rivalidade que havia entre os mordomos das duas freguesias, no que respeita às procissões do Senhor dos Passos, será história para contar alguma vez, se, para tal tiver vida e saúde e a memória não me abandonar.

Já que me meti nestas coisas, tenho de me safar delas…

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