Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Barcos Moliceiros

Não era somente a romaria da Senhora das Dores, de Verdemilho, que trazia a Aveiro as gentes das aldeias que olham para o mar, as quais davam, nos dias em que os seus barcos (principalmente os moliceiros, devidamente embandeirados) pejavam o cais central, um espectáculo de luz e cor, e de vida diferente da normal na cidade.

Também o dia da abertura da Feira de Março, de então, e o da Procissão do Corpo de Deus Real, e o da Procissão das Cinzas traziam a Aveiro não só as gentes das aldeias que olham para o mar, como, também, as dos concelhos do interior circunvizinho da cidade.

Se é certo que as primeiras animavam a cidade com os seus barcos e os coloridos dos seus trajos, não é menos verdade que as segundas enchiam de alegria as ruas da cidade com os «char-à-bancs» enfeitados com flores de papel garrido, e com a guizalhada produzida pelo trotar dos cavalos e mulas que os puxavam, que enfeitados vinham, também, com colares de guizos de vários tamanhos para, desta forma, se obterem sons de várias tonalidades.

A propósito dos barcos moliceiros e da sua integração nos quadros festivos em que os seus proprietários tomavam parte, não resisto à tentação de transcrever / 40 / uns pedacitos de um artigo da autoria do talentoso aveirense Dr. Alberto Souto, publicado no jornal “O Democrata” de 31 de Agosto de 1940 sob o título ELOGIO DO MOLICEIRO, artigo que é um mimo de prosa e um profundo estudo sobre a origem dos barcos.

Aqui vai um dos pedacitos:

«Nesses dias, de festa, os barcos moliceiros apresentam-se janotas quando entram à tardinha ou ao lusco-fusco da manhã pelo Canal das Pirâmides e vêm encostar, todos anchos, às linguetas do cais no canal do Rocio ou na doca do Côjo.

Parece que sorriem de orgulho e parece que nos falam e saúdam – os barcos moliceiros.

Em verdade, nos dias de festa pelo S. Tomé de Mira e pelo S. Paio da Torreira, pela Senhora da Saúde da Costa Nova e no dia da Barra, da Senhora das Areias de S. Jacinto e pela Feira dos Barcos, em Março, no canal da cidade, os moliceiros surgem floridos, asseados, limpos, vêm de romaria, saindo de todos os cantos da laguna, enxameando os rios e os esteiros, e juntam-se aos pares, às dúzias, aos centos, fazem arraial na água, continuando o arraial na terra.

Sobre eles a malta ri, canta, namora, negoceia; dança sobre a proa num à-vontade e numa despreocupação que dá saúde ver.

Famílias inteiras dormem dentro com a vela armada em toldo, e durante três dias, às vezes, ali cozinham e ali comem, como se toda a sua casa e fortuna ali estivessem, dando às margens e à Ria, aos estuários e aos cais, um tom de festa e movimento flutuante, uma cor tão pitoresca, original e interessante como dificilmente poderá achar-se noutra região marítima e lagunar do mundo todo».

Do mesmo artigo lá vai mais um pedacito:

«De centenas de barcos que aportavam nas malhadas de Esgueira e Santos Mártires, de S. Tiago e S. Pedro, do Eiró e de Ílhavo, já pouco resta.

Cresce a bajunça na lama dos esteiros e as praias nesse lado perderam a graça das velas que iam cambando nas curvas quando voltavam com a sua maré de moliço ao cair das tardes estivais.

Extinguiu-se a algazarra das malhadas, dispersou-se o magote dos varredores endiabrados, deixaram de passar pelas ruas longas das aldeias, pingalhando e chiando, as procissões intérminas dos carros que acarretavam o moliço.

Porém, nas margens da Gafanha, desde a Vista-Alegre ao Oudinot, da Cambeia à Senhora da Maluca, da Vagueira ao Areão, lá para as bandas do norte, nas penetrações fluviais que vão até ao paul do Carregal, o moliceiro mantém-se ainda firme e dominante sobre as águas do estuário, levando às terras de areia e argila e o húmus que lhes faltam. / 41 /

Ao domingo, lavado e prazenteiro, chega-se às vilas e à cidade e aparece-nos como um romeiro vindo à festa de um santo ou ao culto de Pã, de ramalhete de flores no bico da proa, e no cocuruto do mastro sua bandeirola na vela nova, carregado de frutos e novidade da lavoira.

Traz seus luxos e suas comodidades, esteiras de bunho, no fundo, tapando cavernas, e, sentadas, à ré, nédias cachopas de saias fartas presas na cinta por faixa vermelha, grilhão maciço ao pescoço, arrecadas nas orelhas, cantam ao desafio, quando a rapaziada na sua harmónica ressuscita a Ribaldeira».

Mas deixemos, com muita pena, a transcrição da deliciosa prosa do aveirense ilustre que foi o Dr. Alberto Souto; e, no próximo artigo, falaremos, então, da Feira de Março doutros tempos e das Procissões do Corpo de Deus Real e das Cinzas.

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