Não era somente a romaria da Senhora das
Dores, de Verdemilho, que trazia a Aveiro as gentes das aldeias que
olham para o mar, as quais davam, nos dias em que os seus barcos
(principalmente os moliceiros, devidamente embandeirados) pejavam o cais
central, um espectáculo de luz e cor, e de vida diferente da normal na
cidade.
Também o dia da abertura da Feira de Março,
de então, e o da Procissão do Corpo de Deus Real, e o da Procissão das
Cinzas traziam a Aveiro não só as gentes das aldeias que olham para o
mar, como, também, as dos concelhos do interior circunvizinho da cidade.
Se é certo que as primeiras animavam a
cidade com os seus barcos e os coloridos dos seus trajos, não é menos
verdade que as segundas enchiam de alegria as ruas da cidade com os «char-à-bancs»
enfeitados com flores de papel garrido, e com a guizalhada produzida
pelo trotar dos cavalos e mulas que os puxavam, que enfeitados vinham,
também, com colares de guizos de vários tamanhos para, desta forma, se
obterem sons de várias tonalidades.
A propósito dos barcos moliceiros e da sua
integração nos quadros festivos em que os seus proprietários tomavam
parte, não resisto à tentação de transcrever
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uns pedacitos de um artigo da autoria do talentoso aveirense
Dr. Alberto
Souto, publicado no jornal “O Democrata” de 31 de Agosto de 1940 sob o
título ELOGIO DO MOLICEIRO, artigo que é um mimo de prosa e um profundo
estudo sobre a origem dos barcos.
Aqui vai um dos pedacitos:
«Nesses dias, de festa, os barcos moliceiros
apresentam-se janotas quando entram à tardinha ou ao lusco-fusco da
manhã pelo Canal das Pirâmides e vêm encostar, todos anchos, às
linguetas do cais no canal do Rocio ou na doca do Côjo.
Parece que sorriem de orgulho e parece que
nos falam e saúdam – os barcos moliceiros.
Em verdade, nos dias de festa pelo S. Tomé
de Mira e pelo S. Paio da Torreira, pela Senhora da Saúde da Costa Nova
e no dia da Barra, da Senhora das Areias de S. Jacinto e pela Feira dos
Barcos, em Março, no canal da cidade, os moliceiros surgem floridos,
asseados, limpos, vêm de romaria, saindo de todos os cantos da laguna,
enxameando os rios e os esteiros, e juntam-se aos pares, às dúzias, aos
centos, fazem arraial na água, continuando o arraial na terra.
Sobre eles a malta ri, canta, namora,
negoceia; dança sobre a proa num à-vontade e numa despreocupação que dá
saúde ver.
Famílias inteiras dormem dentro com a vela
armada em toldo, e durante três dias, às vezes, ali cozinham e ali
comem, como se toda a sua casa e fortuna ali estivessem, dando às
margens e à Ria, aos estuários e aos cais, um tom de festa e movimento
flutuante, uma cor tão pitoresca, original e interessante como
dificilmente poderá achar-se noutra região marítima e lagunar do mundo
todo».
Do mesmo artigo lá vai mais um pedacito:
«De centenas de barcos que aportavam nas
malhadas de Esgueira e Santos Mártires, de S. Tiago e S. Pedro, do Eiró
e de Ílhavo, já pouco resta.
Cresce a bajunça na lama dos esteiros e as
praias nesse lado perderam a graça das velas que iam cambando nas curvas
quando voltavam com a sua maré de moliço ao cair das tardes estivais.
Extinguiu-se a algazarra das malhadas,
dispersou-se o magote dos varredores endiabrados, deixaram de passar
pelas ruas longas das aldeias, pingalhando e chiando, as procissões
intérminas dos carros que acarretavam o moliço.
Porém, nas margens da Gafanha, desde a
Vista-Alegre ao Oudinot, da Cambeia à Senhora da Maluca, da Vagueira ao
Areão, lá para as bandas do norte, nas penetrações fluviais que vão até
ao paul do Carregal, o moliceiro mantém-se ainda firme e dominante sobre
as águas do estuário, levando às terras de areia e argila e o húmus que
lhes faltam.
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Ao domingo, lavado e prazenteiro, chega-se
às vilas e à cidade e aparece-nos como um romeiro vindo à festa de um
santo ou ao culto de Pã, de ramalhete de flores no bico da proa, e no
cocuruto do mastro sua bandeirola na vela nova, carregado de frutos e
novidade da lavoira.
Traz seus luxos e suas comodidades, esteiras
de bunho, no fundo, tapando cavernas, e, sentadas, à ré, nédias cachopas
de saias fartas presas na cinta por faixa vermelha, grilhão maciço ao
pescoço, arrecadas nas orelhas, cantam ao desafio, quando a rapaziada na
sua harmónica ressuscita a Ribaldeira».
Mas deixemos, com muita pena, a transcrição
da deliciosa prosa do aveirense ilustre que foi o Dr. Alberto Souto; e,
no próximo artigo, falaremos, então, da Feira de Março doutros tempos e
das Procissões do Corpo de Deus Real e das Cinzas.
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