[O folheto do «Cantar do Galo» levou-nos a
falar da Romaria da Senhora das Dores. Vejamos agora um pouco mais
acerca desta romaria.]
Além da devoção e do cumprimento das
promessas, aos romeiros, mesmo os que promessa não tinham que cumprir,
incitava-os e entusiasmava-os a noitada, isto é, a véspera do dia da
festa religiosa, pois, na noitada, havia sessões de fogo de artifício e
de fogo preso dos da melhor qualidade que havia, pois os pirotécnicos
caprichavam exibir o que melhor produziam as suas oficinas, visto que os
proprietários da Quinta da Senhora das Dores não olhavam ao custo desse
fogo, tanto mais que muito dinheiro caía nas caixas das esmolas.
Não falando dos foguetes de lágrimas
fornecidos pelos melhores artistas de Viana do Castelo, eram peças
obrigatórias de fogo preso, o combate naval entre um navio de guerra e
um forte, as rodas que, girando, iam mudando de cores, e as fontes
luminosas, terminando a sessão pelo incêndio dos buxos, que ladeavam a
rua principal, dando-nos a sensação de que os arbustos estavam realmente
a arder.
O entusiasmo que, naqueles milhares de
pessoas, despertava o combate naval, era enorme e indescritível.
O navio avançava direito ao forte; e, quando
este ficava à distância do alcance dos seus canhões, o navio começava a
bombardeá-lo; por sua vez o forte respondia com o tiroteio dos seus
canhões, tentando atingir o navio que, depois de ter esgotado a primeira
dose de munições, recuava, voltando a avançar para uma segunda tentativa
de atingir o forte; e, neste vai-vem, o entusiasmo do público
mantinha-se até o combate terminar, normalmente, por falta de munições
e, algumas vezes, porque as balas, de um lado ou de outro, conseguiam
queimar uma, ou até, as duas peças: o navio e o forte.
E quando as balas do navio caíam no forte ou
as deste atingiam o navio, o entusiasmo do público redobrava porque
havia partidários dum e doutro lado
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e ouviam-se gritos de incitamento e de desânimo como se, quer no navio,
quer no forte, estivessem pessoas a combater e ouvissem esses gritos.
No final do combate era um delírio, e toda a
gente discutia os pormenores das várias fases desse bombardeamento.
No arraial e na rua que dá acesso à quinta,
vendia-se de tudo e havia dezenas, se não centenas, de mesas onde eram
fornecidas comidas cozinhadas ao lado e à vista do freguês, havendo,
principalmente, os fritos: o bacalhau e as sardinhas; e também se
vendia muito café, quer do feito em «chocolateiras», e nas quais se
punha uma brasa dentro, para assentar, quer do feito em máquinas que
forneciam «café de apito» (a máquina apitava quando o café estava
pronto) e o «café expresso» que, segundo reclamavam os seus vendedores,
era o melhor que havia; e, nessas mesas, também se vendiam todas as
qualidades de doces que é uso nas romarias: roscas, suspiros, sequilhos,
e doce branco.
Não faltavam, também, as melancias,
transportadas de longe em carros de bois e carroças de vacas, e que a
rapaziada, mais por brincadeira do que pelo sentido de causar prejuízo,
procurava rapinar uma ou outra; e podiam-no fazer, porque os carros
estacionavam em local pouco iluminado.
É certo, porém, que os lavradores já
contavam com este contratempo, e aplicavam, nas que conseguiam vender,
uma sobretaxa para compensar as que seriam «palmadas».
E é bom saber-se que uma melancia custava,
nessa altura, um vintém, ou trinta réis, ou um pataco, conforme o
tamanho.
Os romeiros, que ficavam para o outro dia,
deitavam-se, de larada, nas esteiras e cobertores de que tinham vindo
munidos, por toda a quinta, e em grupos de familiares.
E vou terminar contando o que, numa noitada
da Senhora das Dores aconteceu a um grupo de amigos, alguns ainda vivos.
Fomos a casa desafiar um que sempre nos
acompanhava nas lutas que a Associação dos Caixeiros e a FÉNIX tiveram
de manter para conseguir algumas das regalias que se obtiveram, apesar
de ser mais velho do que os restantes camaradas.
A esposa, tendo olhado para o tempo,
entendeu que este não estava seguro, e recomendou-lhe que levasse um
guarda-chuva e entregou-lhe um a que tinha mandado pôr pano novo, pois a
armação, de mola, era de muito boa qualidade; recomendou-lhe, porém, que
o não perdesse, nem o estragasse, porque ele estava como novo.
Divertimo-nos pelo caminho e, já no arraial,
alguém se lembrou de bifar uma melancia, pois, se o não fizéssemos, a
romaria não era completa.
Combinámos que esse amigo, que tinha um
poder de comunicação extraordinário, ficasse a conversar com a
lavradeira, que estava na carroça, a fim de
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a distrair. Acompanhavam-no dois dos do grupo, enquanto os outros iam
fazer a manobra do rapinanço, que consistia em fazer passar as melancias
de mão em mão a título de ver se estavam maduras, apertando-as para ver
se «rangiam».
Nesta operação andavam várias, até que uma
chegava às mãos dum dos rapazes que se afastava com ela sem a pagar.
Como uma melancia não chegava para todos,
sempre se comprava alguma.
Ora, o nosso amigo, enquanto conversava com
a lavradeira, pousou o guarda-chuva nas sebes da carroça, e dele nunca
mais se lembrou; assim, quando nos chamavam para irmos embora, deu as
boas-noites e retirou-se sem o levar.
Quando, já afastados da carroça, um dos do
grupo notou a falta, ainda fomos junto dela, mas já não encontrámos o
guarda-chuva no sítio em que ele havia ficado; e, quando os foguetes de
lágrimas iluminavam o local onde estavam os romeiros em maior número,
todos nós procurávamos descortinar alguém que andasse de guarda-chuva
para, então, averiguar se era o do nosso companheiro.
Regressámos a Aveiro já tarde, muito
aborrecidos com o que tinha acontecido, principalmente pelo
aborrecimento [que iria causar à] esposa do nosso amigo, que muito amiga
era de todos nós.
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