Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Folheto do «Cantar do Galo»

Nas vésperas do Grupo Cénico do Clube dos Galitos se deslocar a Lisboa, para representar, no Coliseu dos Recreios, a revista-fantasia-regional, em dois actos e dezassete quadros, «Ao Cantar do Galo», escrita, musicada e encenada por aveirenses, o Dr. Alberto Souto sugeriu à direcção daquele Grupo a necessidade que havia de se editar um folheto que, de forma muito reduzida, levasse ao conhecimento dos espectadores, que não conhecessem a nossa cidade e a nossa região, o que representavam as cenas e as personagens que iriam ver, pois só assim poderiam compreender a revista, como, aliás, é prática nos espectáculos de ópera e concertos musicais.

Tendo sido aceite a sugestão, e pedido ao Dr. Alberto Souto o favor de elaborar o plano para esse folheto, após o ensaio dessa noite – enquanto a ideia estava fresca – aquele insigne aveirense convidou-me a acompanhá-lo à Biblioteca Municipal (de que era director) e, nessa mesma noite, demos por pronto o rascunho do referido folheto que, depois de impresso, foi vendido, à entrada para os espectáculos, realizados em 26, 27 e 28 de Junho de 1937, ao preço de um escudo cada exemplar.

Bons tempos!...

Nesse folheto diz-se, logo de entrada: «A cena representa um aspecto do Largo Municipal da cidade de Aveiro, onde os varredores municipais se dão os bons dias: CANTA O GALO É MADRUGADA!

«É o simbolismo da mocidade, de vida que desperta: varre-se a noite, encara-se o dia com fé.
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«Vindo da aldeia, o côro de abertura, um côro de Marias e Manéis, Varinas e Murtoseiras, gente das aldeias que olha para o mar e que frequenta romarias, vai a caminho da festa da Senhora das Dores, de Verdemilho».

E o côro que entrava pelo fundo e pelos lados da plateia (o que em Lisboa fez sucesso pelo ineditismo, pois toda a gente tinha os olhos ferrados no palco que estava vazio por se terem retirado os varredores e a cortina continuar aberta) ia cantando:

Nossas canções entoando,
E alegres caminhando
Em devaneios de amores;
Vamos fazer penitência,
Pedindo santa clemência,
Nossa Senhora das Dores.

Antes que apareça o Sol,
Num deslumbrante arrebol,
Por sobre a terra a brilhar;
Para a bela romaria,
Todas juntas, à porfia,
Iremos cantar... dançar…

Eia, àvante, pois, partimos,
Com transbordante alegria,
Levando ofertas e mimos,
Nossa romagem seguimos,
Enquanto não rompe o dia.

Jornadeamos a pé,
Com fervor e muita fé,
Promessas vamos cumprir;
Com almas e corações,
Em brandas palpitações,
A cantar e a sorrir.

Pelo que nos dizem, o folheto, e os versos atrás transcritos, podem, desde já, as gentes novas de Aveiro fazer uma ideia do que era a romaria da Senhora das Dores de Verdemilho.

Na véspera desse dia, no cais central, havia movimento de festa tal a alegria que o local apresentava, repletos de barcos embandeirados e bateiras, de todos os tipos, com os barqueiros e os seus familiares de fatos domingueiros; e, arrumados / 36 / os barcos e acompanhados de violas, violões, gaitas de boca (harmónicas) e acordeões, todos saltavam para o cais e, em grupos, preparavam-se, para, a pé, se dirigirem a Verdemilho.

Havia, porém, muitos grupos que, antes de seguirem o seu destino, faziam as suas exibições.

Nunca me esqueci – era eu rapazote – de uma quadra que um poeta popular, numa véspera da festa da Senhora das Dores, cantou junto à ponte do lado do Rossio (havia, então duas pontes, onde, hoje, é a Ponte-Praça):

Viva o Senhor José Estêvão
Coelho de Magalhães,
Se ele agora fosse vivo,
Eu dava-lhe os parabéns.

E para Verdemilho encaminhavam-se um sem número de «char-à-bancs» e outros carros de cavalos e de mulas, devidamente enfeitados e com a guisalhada a fazer um barulho alegre; e, ainda, centenas, se não milhares, de bicicletas; de todas as redondezas vinha gente, a maior parte dela, para pagar as promessas feitas, durante o ano, à Senhora das Dores, porque esta lhes acudiu nas suas atrapalhações; e, para Verdemilho, seguiam, a pé, cantando e dançando, não só os romeiros que desembarcavam no cais, como, também, muitos outros, vindos doutras terras.

Os de Aveiro iam depois de cear, também, a pé.

As promessas eram feitas em dinheiro, em cera e, também, muitas em azeite, com o qual a imagem da Senhora das Dores era alumiada durante todo o ano. E lá estava o meu amigo e colega Joaquim Fernandes, da Fábrica de Cerâmica das Quintãs (a quinta da Senhora das Dores pertencia a um dos membros da família Tavares Lebre que era a proprietária daquela fábrica) a dirigir a recepção das ofertas e a distribuir as estampas com a imagem da Senhora das Dores, a que os ofertantes tinham direito, estampas que, homens e mulheres, orgulhosamente, ostentavam nos seus chapéus (as mulheres da beira-ria usavam, então, um chapelinho redondo, enfeitado com uma pena de cor).

E tinha muito que fazer, nesses dias, o Joaquim Fernandes, porque, desde manhã até à noite, havia um constante corrupio para a casa das ofertas onde os penitentes se queriam desobrigar, o mais rapidamente possível, para lhes ficar tempo livre para, por toda a quinta – e que grande que ela era! – e em grupos, tocarem e dançarem, grupos cujos componentes não eram sempre os mesmos, nem sempre da mesma terra.

E eu ainda não disse que, além da imagem da Nossa Senhora das Dores, havia, na mesma capela, um grupo escultórico representando o Calvário e do / 37 / qual faziam parte, além da crucificação de Cristo, várias figuras de judeus portadores dos apetrechos destinados a suplício: o da ceira dos pregos, o da lança com a esponja de fel, o das escadas, etc., etc., grupo que era muito admirado por todos os visitantes e que servia de motivo para graças entre pessoas amigas.

Um dia o jornal “O Democrata”, e aquando das birras com o comissário Júdice Bicker, publicou a seguinte notícia:

«À última hora

«Fugiu, da Capela da Senhora das Dores de Verdemilho, um judeu que teve de ser substituído pelo Cabo Bico».

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