Nas vésperas do Grupo Cénico do Clube dos
Galitos se deslocar a Lisboa, para representar, no Coliseu dos Recreios,
a revista-fantasia-regional, em dois actos e dezassete quadros, «Ao
Cantar do Galo», escrita, musicada e encenada por aveirenses, o Dr.
Alberto Souto sugeriu à direcção daquele Grupo a necessidade que havia
de se editar um folheto que, de forma muito reduzida, levasse ao
conhecimento dos espectadores, que não conhecessem a nossa cidade e a
nossa região, o que representavam as cenas e as personagens que iriam
ver, pois só assim poderiam compreender a revista, como, aliás, é
prática nos espectáculos de ópera e concertos musicais.
Tendo sido aceite a sugestão, e pedido ao
Dr. Alberto Souto o favor de elaborar o plano para esse folheto, após o
ensaio dessa noite – enquanto a ideia estava fresca – aquele insigne
aveirense convidou-me a acompanhá-lo à Biblioteca Municipal (de que era
director) e, nessa mesma noite, demos por pronto o rascunho do referido
folheto que, depois de impresso, foi vendido, à entrada para os
espectáculos, realizados em 26, 27 e 28 de Junho de 1937, ao preço de um
escudo cada exemplar.
Bons tempos!...
Nesse folheto diz-se, logo de entrada: «A
cena representa um aspecto do Largo Municipal da cidade de Aveiro, onde
os varredores municipais se dão os bons dias: CANTA O GALO É MADRUGADA!
«É o simbolismo da mocidade, de vida que desperta: varre-se a noite,
encara-se o dia com fé.
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«Vindo da aldeia, o côro de abertura, um
côro de Marias e Manéis, Varinas e Murtoseiras, gente das aldeias que
olha para o mar e que frequenta romarias, vai a caminho da festa da
Senhora das Dores, de Verdemilho».
E o côro que entrava pelo fundo e pelos
lados da plateia (o que em Lisboa fez sucesso pelo ineditismo, pois toda
a gente tinha os olhos ferrados no palco que estava vazio por se terem
retirado os varredores e a cortina continuar aberta) ia cantando:
Nossas canções entoando,
E alegres caminhando
Em devaneios de amores;
Vamos fazer penitência,
Pedindo santa clemência,
Nossa Senhora das Dores.
Antes que apareça o Sol,
Num deslumbrante arrebol,
Por sobre a terra a brilhar;
Para a bela romaria,
Todas juntas, à porfia,
Iremos cantar... dançar…
Eia, àvante, pois, partimos,
Com transbordante alegria,
Levando ofertas e mimos,
Nossa romagem seguimos,
Enquanto não rompe o dia.
Jornadeamos a pé,
Com fervor e muita fé,
Promessas vamos cumprir;
Com almas e corações,
Em brandas palpitações,
A cantar e a sorrir.
Pelo que nos dizem, o folheto, e os versos
atrás transcritos, podem, desde já, as gentes novas de Aveiro fazer uma
ideia do que era a romaria da Senhora das Dores de Verdemilho.
Na véspera desse dia, no cais central, havia
movimento de festa tal a alegria que o local apresentava, repletos de
barcos embandeirados e bateiras, de todos os tipos, com os barqueiros e
os seus familiares de fatos domingueiros; e, arrumados
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os barcos e acompanhados de violas, violões, gaitas de boca (harmónicas)
e acordeões, todos saltavam para o cais e, em grupos, preparavam-se,
para, a pé, se dirigirem a Verdemilho.
Havia, porém, muitos grupos que, antes de
seguirem o seu destino, faziam as suas exibições.
Nunca me esqueci – era eu rapazote – de uma
quadra que um poeta popular, numa véspera da festa da Senhora das Dores,
cantou junto à ponte do lado do Rossio (havia, então duas pontes, onde,
hoje, é a Ponte-Praça):
Viva o Senhor José Estêvão
Coelho de Magalhães,
Se ele agora fosse vivo,
Eu dava-lhe os parabéns.
E para Verdemilho encaminhavam-se um sem
número de «char-à-bancs» e outros carros de cavalos e de mulas,
devidamente enfeitados e com a guisalhada a fazer um barulho alegre; e,
ainda, centenas, se não milhares, de bicicletas; de todas as redondezas
vinha gente, a maior parte dela, para pagar as promessas feitas, durante
o ano, à Senhora das Dores, porque esta lhes acudiu nas suas
atrapalhações; e, para Verdemilho, seguiam, a pé, cantando e dançando,
não só os romeiros que desembarcavam no cais, como, também, muitos
outros, vindos doutras terras.
Os de Aveiro iam depois de cear, também, a
pé.
As promessas eram feitas em dinheiro, em
cera e, também, muitas em azeite, com o qual a imagem da Senhora das
Dores era alumiada durante todo o ano. E lá estava o meu amigo e colega
Joaquim Fernandes, da Fábrica de Cerâmica das Quintãs (a quinta da
Senhora das Dores pertencia a um dos membros da família Tavares Lebre
que era a proprietária daquela fábrica) a dirigir a recepção das ofertas
e a distribuir as estampas com a imagem da Senhora das Dores, a que os
ofertantes tinham direito, estampas que, homens e mulheres,
orgulhosamente, ostentavam nos seus chapéus (as mulheres da beira-ria
usavam, então, um chapelinho redondo, enfeitado com uma pena de cor).
E tinha muito que fazer, nesses dias, o
Joaquim Fernandes, porque, desde manhã até à noite, havia um constante
corrupio para a casa das ofertas onde os penitentes se queriam
desobrigar, o mais rapidamente possível, para lhes ficar tempo livre
para, por toda a quinta – e que grande que ela era! – e em grupos,
tocarem e dançarem, grupos cujos componentes não eram sempre os mesmos,
nem sempre da mesma terra.
E eu ainda não disse que, além da imagem da
Nossa Senhora das Dores, havia, na mesma capela, um grupo escultórico
representando o Calvário e do
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qual faziam parte, além da crucificação de Cristo, várias figuras de
judeus portadores dos apetrechos destinados a suplício: o da ceira dos
pregos, o da lança com a esponja de fel, o das escadas, etc., etc.,
grupo que era muito admirado por todos os visitantes e que servia de
motivo para graças entre pessoas amigas.
Um dia o jornal “O Democrata”, e aquando das
birras com o comissário Júdice Bicker, publicou a seguinte notícia:
«À última hora
«Fugiu, da Capela da Senhora das Dores de
Verdemilho, um judeu que teve de ser substituído pelo Cabo Bico».
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