Findas que foram as marinhas por altura da
festa da Senhora das Febres (8 de Setembro), os marnotos, depois de
arrumadas as alfaias, entendiam que eram chegadas as suas férias e, não
faltando às festas da Costa Nova e da Barra, iam até à festa da Senhora
das Areias, em S. Jacinto que, como já dissemos, se realiza no primeiro
Domingo de Outubro.
E terminavam as marinhas naquela altura
porque, se durante a safra se tinha feito muito sal ou se, na ria, havia
muito proveniente dos anos anteriores, aos marnotos não interessava
continuar com o trabalho, e abandonavam-nas, tanto mais que o contrato
com os moços findava naquela data; se, porém, a safra tinha sido de
pouco rendimento, os marnotos tentavam aproveitar o tempo favorável para
fazer mais algum; porém, os moços não estavam de acordo com o
alargamento do prazo do seu ajuste e eram eles que iam, de noite,
procurar pôr as marinhas no fundo, apesar dos marnotos irem dormir para
os palheiros a fim de evitar tal procedimento.
Apesar desta vigilância, as marinhas iam
aparecendo alagadas...
A festa da Senhora das Areias, como, aliás,
todas as das nossas redondezas, durava três dias: de sábado até
segunda-feira, sendo o primeiro daqueles dias o da véspera (ou noitada),
e o último o das cavalhadas, que também era conhecido pelo do enterro
dos ossos.
E estou a recordar-me que o comandante
francês da base aérea naval de S. Jacinto, quando às segundas-feiras
verificava a falta de pessoal trabalhador nas obras que sempre tinha em
curso, perguntava ao mestre António Augusto pela razão daquelas faltas;
e como o mestre lhe respondia que tinham ficado
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em casa, porque havia festa na sua terra, o comandante desabafava:
Toujours fête... toujours fête…
As gentes da beira-mar preparavam as
bateiras com os géneros necessários à sua alimentação, com a bateria de
cozinha para preparar as refeições, as esteiras de bunho para se
deitarem e as mantas para se cobrirem; e lá iam de abalada para S.
Jacinto, aboletando-se nos palheiros dos mercanteis amigos, onde, à
noite, dormiam de larada.
E não se esqueciam de reforçar a dose dos
alimentos, pois sabiam pela prática, que neste meio tempo, podia
levantar-se vendaval que não permitisse fazer, com segurança, a
travessia da cale e, por conseguinte, impediria o regresso a Aveiro,
durante o tempo que o vendaval durasse.
Na festa da Senhora das Areias também
apareciam, com os seus barcos e bateiras, ranchos da Murtosa e do
Bunheiro, os quais, normalmente, se faziam acompanhar de violas e
acordeons, nos quais tocavam de manhã até à noite, não só nos bailaricos
da sua gente, que, durante o dia, não parava de dançar, como, também, à
noite, se prestavam a «abrilhantar» os bailes organizados pela rapaziada
nova – e a idosa, também – à luz dos fantoches (candeeiros de petróleo),
nos diversos palheiros por onde estavam aboletados, com a colaboração de
ternos da música que haviam feito a festa.
Tirando a parte religiosa da festa – à qual
toda a gente assistia com respeito e devoção – a festa da Senhora das
Areias era uma contínua pândega com comes e bebes, danças e brincadeira:
toda a gente se divertia à larga e à farta.
E nem o facto de terem de ficar,
forçadamente, em S. Jacinto, mais uns dias, os aborrecia, pois tudo isso
estava previsto e o descanso em que estavam era bem merecido.
E já agora, e a propósito das dificuldades
de ligação não só entre Aveiro e S. Jacinto, como também com a Barra e
Costa Nova, há que lembrar que, quando o grande aveirense José Estêvão
pedia, por Lisboa, a construção de uma estrada que ligasse Aveiro à
Costa, passando pela Gafanha e pela Barra, apesar da sua influência
pessoal, ninguém o atendia, com a alegação de que se tratava de uma
estrada de interesse pessoal para acesso ao seu palheiro da Costa.
Porém, um dia, conseguiu trazer um grupo de
deputados dos mais refilões para, por si próprios, verificarem daquela
necessidade.
Embarcados num saleiro, começou a viagem com
um tempo regular; no entretanto, levantou-se um ventinho que, a pouco e
pouco, aumentou e fez com que na ria, as marolas aumentassem e o barco
se movimentasse, isto é, baloiçasse; e, quando os viajantes já mostravam
medo, ele sossegou-os dizendo-lhes que, se tivessem ido de bateira seria
muito pior.
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O tempo foi piorando e, quando já iam ao
largo da cale, começaram a faiscar, ao longe, uns relâmpagos e a
atmosfera a mostrar sinais de que a trovoada se aproximava; e, enquanto
os convidados, cheios de medo, pediam que regressassem, José Estêvão
esfregava as mãos de contente e afirmava que este tempo havia sido
encomendado por si.
Ao longe, na cale, muito afastados da terra
firme, com o barco a baloiçar e a trovoada a ribombar, os deputados
rogavam que voltassem para Aveiro, negando-se José Estêvão a fazê-lo
salvo se, ali mesmo, eles dessem a sua palavra de que estavam
convencidos da necessidade de se construir a estrada e de que
defenderiam, perante as instâncias superiores, essa construção que eles
verificaram ser de necessidade absoluta.
E se o prometeram, bem o fizeram; e, quando
os seus colegas os censuravam pela sua mudança de atitude, respondiam:
vão lá vocês ver, mas em dia encomendado por ele... e, então, dar-lhe-ão
tudo o que ele vos pedir ou exigir.
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