Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Festa da Senhora das Febres

Findas que foram as marinhas por altura da festa da Senhora das Febres (8 de Setembro), os marnotos, depois de arrumadas as alfaias, entendiam que eram chegadas as suas férias e, não faltando às festas da Costa Nova e da Barra, iam até à festa da Senhora das Areias, em S. Jacinto que, como já dissemos, se realiza no primeiro Domingo de Outubro.

E terminavam as marinhas naquela altura porque, se durante a safra se tinha feito muito sal ou se, na ria, havia muito proveniente dos anos anteriores, aos marnotos não interessava continuar com o trabalho, e abandonavam-nas, tanto mais que o contrato com os moços findava naquela data; se, porém, a safra tinha sido de pouco rendimento, os marnotos tentavam aproveitar o tempo favorável para fazer mais algum; porém, os moços não estavam de acordo com o alargamento do prazo do seu ajuste e eram eles que iam, de noite, procurar pôr as marinhas no fundo, apesar dos marnotos irem dormir para os palheiros a fim de evitar tal procedimento.

Apesar desta vigilância, as marinhas iam aparecendo alagadas...

A festa da Senhora das Areias, como, aliás, todas as das nossas redondezas, durava três dias: de sábado até segunda-feira, sendo o primeiro daqueles dias o da véspera (ou noitada), e o último o das cavalhadas, que também era conhecido pelo do enterro dos ossos.

E estou a recordar-me que o comandante francês da base aérea naval de S. Jacinto, quando às segundas-feiras verificava a falta de pessoal trabalhador nas obras que sempre tinha em curso, perguntava ao mestre António Augusto pela razão daquelas faltas; e como o mestre lhe respondia que tinham ficado / 33 / em casa, porque havia festa na sua terra, o comandante desabafava: Toujours fête... toujours fête

As gentes da beira-mar preparavam as bateiras com os géneros necessários à sua alimentação, com a bateria de cozinha para preparar as refeições, as esteiras de bunho para se deitarem e as mantas para se cobrirem; e lá iam de abalada para S. Jacinto, aboletando-se nos palheiros dos mercanteis amigos, onde, à noite, dormiam de larada.

E não se esqueciam de reforçar a dose dos alimentos, pois sabiam pela prática, que neste meio tempo, podia levantar-se vendaval que não permitisse fazer, com segurança, a travessia da cale e, por conseguinte, impediria o regresso a Aveiro, durante o tempo que o vendaval durasse.

Na festa da Senhora das Areias também apareciam, com os seus barcos e bateiras, ranchos da Murtosa e do Bunheiro, os quais, normalmente, se faziam acompanhar de violas e acordeons, nos quais tocavam de manhã até à noite, não só nos bailaricos da sua gente, que, durante o dia, não parava de dançar, como, também, à noite, se prestavam a «abrilhantar» os bailes organizados pela rapaziada nova – e a idosa, também – à luz dos fantoches (candeeiros de petróleo), nos diversos palheiros por onde estavam aboletados, com a colaboração de ternos da música que haviam feito a festa.

Tirando a parte religiosa da festa – à qual toda a gente assistia com respeito e devoção – a festa da Senhora das Areias era uma contínua pândega com comes e bebes, danças e brincadeira: toda a gente se divertia à larga e à farta.

E nem o facto de terem de ficar, forçadamente, em S. Jacinto, mais uns dias, os aborrecia, pois tudo isso estava previsto e o descanso em que estavam era bem merecido.

E já agora, e a propósito das dificuldades de ligação não só entre Aveiro e S. Jacinto, como também com a Barra e Costa Nova, há que lembrar que, quando o grande aveirense José Estêvão pedia, por Lisboa, a construção de uma estrada que ligasse Aveiro à Costa, passando pela Gafanha e pela Barra, apesar da sua influência pessoal, ninguém o atendia, com a alegação de que se tratava de uma estrada de interesse pessoal para acesso ao seu palheiro da Costa.

Porém, um dia, conseguiu trazer um grupo de deputados dos mais refilões para, por si próprios, verificarem daquela necessidade.

Embarcados num saleiro, começou a viagem com um tempo regular; no entretanto, levantou-se um ventinho que, a pouco e pouco, aumentou e fez com que na ria, as marolas aumentassem e o barco se movimentasse, isto é, baloiçasse; e, quando os viajantes já mostravam medo, ele sossegou-os dizendo-lhes que, se tivessem ido de bateira seria muito pior. / 34 /

O tempo foi piorando e, quando já iam ao largo da cale, começaram a faiscar, ao longe, uns relâmpagos e a atmosfera a mostrar sinais de que a trovoada se aproximava; e, enquanto os convidados, cheios de medo, pediam que regressassem, José Estêvão esfregava as mãos de contente e afirmava que este tempo havia sido encomendado por si.

Ao longe, na cale, muito afastados da terra firme, com o barco a baloiçar e a trovoada a ribombar, os deputados rogavam que voltassem para Aveiro, negando-se José Estêvão a fazê-lo salvo se, ali mesmo, eles dessem a sua palavra de que estavam convencidos da necessidade de se construir a estrada e de que defenderiam, perante as instâncias superiores, essa construção que eles verificaram ser de necessidade absoluta.

E se o prometeram, bem o fizeram; e, quando os seus colegas os censuravam pela sua mudança de atitude, respondiam: vão lá vocês ver, mas em dia encomendado por ele... e, então, dar-lhe-ão tudo o que ele vos pedir ou exigir.

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