Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Festa das Areias

Uma outra festa que mobilizava, também, um vasto sector da população da cidade – principalmente a gente da beira-mar – era a da Senhora das Areias, que se realiza no primeiro Domingo de Outubro e que tem a sua capela em S. Jacinto.

Antes de haver as lanchas da carreira e de existir a estrada que liga S. Jacinto ao resto do país, as comunicações com aquela povoação faziam-se com bateiras mercantéis que transportavam, para Aveiro, o pescado que, então, era / 30 / abundante no seu mar e onde trabalhavam várias companhas da arte da xávega: a Burra, a Ressuscitada, a Rata, a do Manes e a do Rocha.

O transporte do peixe, desde o mar até à Ria, fazia-se em vagonetas, que trabalhavam por uma rede de carris pertencentes às companhas, e eram puxadas pelos bois, que serviam também para puxar as redes do mar para a terra.

Acontecia muitas vezes – de inverno, principalmente – que devido ao estado do tempo (ventos, trovoadas, etc.) a Ria se encapelava e a sua travessia se tornava perigosa, ou, mesmo até impossível de se fazer, por dificuldade de manobra das bateiras. A cale que tinha, quase que o dobro da sua largura actual, e muito funda, infundia muito «respeitinho» aos mais ousados e atrevidos; lá, não havia vara que apeasse, isto é, que chegasse ao fundo da água e se apoiasse no leito da Ria, se da vara houvesse que fazer uso na manobra do barco ou da bateira.

E se, de repente, caía sobre a Ria uma nevoeirada, era um caso sério para se acertar com o caminho e fazê-lo sem perigo.

Ao escrever isto, estou a lembrar-me de um caso que aconteceu, já lá vão muitos, muitos anos, aquando de uma das muitas excursões organizadas pela Fénix Portuense dos Empregados do Comércio do Porto e destinadas não só a servir de passeio recreativo dos seus associados, como, também, e principalmente, para os mesmos confraternizarem com os seus colegas de Aveiro.

O programa de cada uma destas excursões era estabelecido pela Associação de Aveiro e comunicado à Fénix; assim, aquela rapaziada sabia, de antemão, como passaria o dia com os seus colegas aveirenses.

Ora, nesse ano, programou-se que o almoço seria na Costa Nova, no palheiro de um mercantel amigo que a tal se prestou, e para onde nos dirigiríamos de carros de cavalos; após o almoço, e nos mesmos carros, viríamos para o Forte da Barra, a fim de irmos a S. Jacinto passar o resto da tarde; o regresso a Aveiro far-se-ia directamente de bateira (não havia outro meio de transporte), à tardinha, para que os portuenses apreciassem o panorama da nossa ria; e a retirada para o Porto efectuar-se-ia no comboio que, de Aveiro, saía, por volta das vinte e uma horas: seria um dia em cheio.

O programa foi cumprido com regularidade e o dia apresentou-se com um lindo sol, o que deu lugar a que a rapaziada do Porto manifestasse a sua alegria e satisfação e dizendo-se encantada pelo panorama que lhe foi dado ver.

Em S. Jacinto, porém, a meio da tarde – já tínhamos combinado e ajustado a bateira que nos devia trazer a Aveiro – fez-se uma cerração completa sobre a ria, devido a um nevoeiro que caiu de repente.

O homem que nos devia transportar procurou-nos e avisou-nos de que se o tempo não levantasse não faria esse transporte por impossibilidade de se orientar. / 31 /

A dar-se essa hipótese, isso causaria um enorme transtorno a todos nós, não só porque as nossas famílias ficavam preocupadas com a falta de notícias – não havia, em S. Jacinto, telefones ou outros meios de comunicação como, e principalmente, porque uma parte dos excursionistas eram primeiros caixeiros, e, como tal, tinham as chaves dos estabelecimentos, e, portanto, a obrigação de os abrirem à hora determinada para o efeito, sendo certo que os patrões não perdoariam que tal não acontecesse. Eram outros tempos…

Calcule-se, pois, a nossa aflição; e, porque a manifestámos a uns amigos, estes informaram-nos que só um homem se atreveria, com tal cerração, a trazer-nos a Aveiro: o Labareda.

Aconselharam-nos a que o procurássemos e lhe expuséssemos a nossa situação – no que esses amigos nos ajudaram – e pedimos-lhe que nos «desenrascasse», ao que ele acedeu a troco de 30 mil réis, declarando, porém, que o faria, somente, para salvar uma situação tão má, como era aquela em que estavam os rapazes do Porto.

Embarcados daí a pouco, e com os excursionistas cheios de medo, o Labareda aponta a proa da bateira a SAMA (a ilha do Rebocho), rumo que verifica sempre que a Lua conseguia romper a nevoeirada, informando-nos de que íamos no bom caminho, dando-nos, assim, confiança.

A determinada altura ouvimos o trabalhar de uma lancha para o lado da barra, comentando o Labareda que devia ser alguém que estava atrapalhado para se orientar e, depois de escutar melhor o trabalho do motor da lancha, concluiu que seria a do Joaquim Gamelas a quem ele vira, de tarde, em S. Jacinto.

Daí por um bocado ouve-se, no silêncio que nos rodeava, um berro chamando o Labareda, e a que este respondeu, reconhecendo a voz do Joaquim Gamelas.

Berros de um e outro lado; e aquele, acompanhado do filho Manuel, conseguiram aproximar-se da bateira, que seguiram.

Contaram-nos que, por três vezes, se dirigiram para a barra e que o notaram por ouvirem a ronca e o bater das ondas no paredão, e, bem assim, que quando sentiram o bater dos remos se convenceram que só o Labareda seria capaz de atravessar a ria com tal tempo, e, por isso, gritaram por ele, tanto mais que estavam desorientados.

Passado que foi SAMA e porque o nevoeiro se levantou um pouco e o perigo desapareceu, acertámos com o Labareda deixar-nos nos estaleiros do Mónica, visto que estávamos molhados e enregelados, devido à cacimba, sendo para nós mais prático virmos para Aveiro a pé; e, para ele, muito mais perto para regressar a casa.

Em vez dos trinta mil réis, que era o nosso ajuste, entregámos cinquenta / 32 / para agradecer a confiança que ele nos proporcionou durante a travessia.

Saídos dos estaleiros passámos pelo estabelecimento do Alberto Martins, onde bebemos umas pingoletas para nos aquecer e desentorpecer, e, já contentes da vida, viemos a pé para Aveiro, brincando por todo o caminho, chegando a tempo da rapaziada do Porto embarcar para a sua terra no comboio que estava combinado seguir, contentes com o dia que passaram connosco e esquecidos já do contratempo causado pelo nevoeiro.

Contei este episódio para dar a conhecer, à gente nova que me ler, as dificuldades que surgiam às pessoas que tinham necessidade de se deslocar de S. Jacinto para Aveiro, ou vice-versa.

Mas... e a festa da Senhora das Areias? Dela falaremos no capítulo seguinte.

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