Uma outra festa que mobilizava, também, um
vasto sector da população da cidade – principalmente a gente da
beira-mar – era a da Senhora das Areias, que se realiza no primeiro
Domingo de Outubro e que tem a sua capela em S. Jacinto.
Antes de haver as lanchas da carreira e de
existir a estrada que liga S. Jacinto ao resto do país, as comunicações
com aquela povoação faziam-se com bateiras mercantéis que transportavam,
para Aveiro, o pescado que, então, era
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abundante no seu mar e onde trabalhavam várias companhas da arte da
xávega: a Burra, a Ressuscitada, a Rata, a do Manes e a do Rocha.
O transporte do peixe, desde o mar até à
Ria, fazia-se em vagonetas, que trabalhavam por uma rede de carris
pertencentes às companhas, e eram puxadas pelos bois, que serviam
também para puxar as redes do mar para a terra.
Acontecia muitas vezes – de inverno,
principalmente – que devido ao estado do tempo (ventos, trovoadas, etc.)
a Ria se encapelava e a sua travessia se tornava perigosa, ou, mesmo até
impossível de se fazer, por dificuldade de manobra das bateiras. A cale
que tinha, quase que o dobro da sua largura actual, e muito funda,
infundia muito «respeitinho» aos mais ousados e atrevidos; lá, não havia
vara que apeasse, isto é, que chegasse ao fundo da água e se apoiasse no
leito da Ria, se da vara houvesse que fazer uso na manobra do barco ou
da bateira.
E se, de repente, caía sobre a Ria uma
nevoeirada, era um caso sério para se acertar com o caminho e fazê-lo
sem perigo.
Ao escrever isto, estou a lembrar-me de um
caso que aconteceu, já lá vão muitos, muitos anos, aquando de uma das
muitas excursões organizadas pela Fénix Portuense dos Empregados do
Comércio do Porto e destinadas não só a servir de passeio recreativo dos
seus associados, como, também, e principalmente, para os mesmos
confraternizarem com os seus colegas de Aveiro.
O programa de cada uma destas excursões era
estabelecido pela Associação de Aveiro e comunicado à Fénix; assim,
aquela rapaziada sabia, de antemão, como passaria o dia com os seus
colegas aveirenses.
Ora, nesse ano, programou-se que o almoço
seria na Costa Nova, no palheiro de um mercantel amigo que a tal se
prestou, e para onde nos dirigiríamos de carros de cavalos; após o
almoço, e nos mesmos carros, viríamos para o Forte da Barra, a fim de
irmos a S. Jacinto passar o resto da tarde; o regresso a Aveiro
far-se-ia directamente de bateira (não havia outro meio de transporte),
à tardinha, para que os portuenses apreciassem o panorama da nossa ria;
e a retirada para o Porto efectuar-se-ia no comboio que, de Aveiro,
saía, por volta das vinte e uma horas: seria um dia em cheio.
O programa foi cumprido com regularidade e o
dia apresentou-se com um lindo sol, o que deu lugar a que a rapaziada do
Porto manifestasse a sua alegria e satisfação e dizendo-se encantada
pelo panorama que lhe foi dado ver.
Em S. Jacinto, porém, a meio da tarde – já
tínhamos combinado e ajustado a bateira que nos devia trazer a Aveiro –
fez-se uma cerração completa sobre a ria, devido a um nevoeiro que caiu
de repente.
O homem que nos devia transportar
procurou-nos e avisou-nos de que se o tempo não levantasse não faria
esse transporte por impossibilidade de se orientar.
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A dar-se essa hipótese, isso causaria um
enorme transtorno a todos nós, não só porque as nossas famílias ficavam
preocupadas com a falta de notícias – não havia, em S. Jacinto,
telefones ou outros meios de comunicação como, e principalmente, porque
uma parte dos excursionistas eram primeiros caixeiros, e, como tal,
tinham as chaves dos estabelecimentos, e, portanto, a obrigação de os
abrirem à hora determinada para o efeito, sendo certo que os patrões não
perdoariam que tal não acontecesse. Eram outros tempos…
Calcule-se, pois, a nossa aflição; e, porque
a manifestámos a uns amigos, estes informaram-nos que só um homem se
atreveria, com tal cerração, a trazer-nos a Aveiro: o Labareda.
Aconselharam-nos a que o procurássemos e lhe
expuséssemos a nossa situação – no que esses amigos nos ajudaram – e
pedimos-lhe que nos «desenrascasse», ao que ele acedeu a troco de 30 mil
réis, declarando, porém, que o faria, somente, para salvar uma situação
tão má, como era aquela em que estavam os rapazes do Porto.
Embarcados daí a pouco, e com os
excursionistas cheios de medo, o Labareda aponta a proa da bateira a
SAMA (a ilha do Rebocho), rumo que verifica sempre que a Lua conseguia
romper a nevoeirada, informando-nos de que íamos no bom caminho,
dando-nos, assim, confiança.
A determinada altura ouvimos o trabalhar de
uma lancha para o lado da barra, comentando o Labareda que devia ser
alguém que estava atrapalhado para se orientar e, depois de escutar
melhor o trabalho do motor da lancha, concluiu que seria a do Joaquim
Gamelas a quem ele vira, de tarde, em S. Jacinto.
Daí por um bocado ouve-se, no silêncio que
nos rodeava, um berro chamando o Labareda, e a que este respondeu,
reconhecendo a voz do Joaquim Gamelas.
Berros de um e outro lado; e aquele,
acompanhado do filho Manuel, conseguiram aproximar-se da bateira, que
seguiram.
Contaram-nos que, por três vezes, se
dirigiram para a barra e que o notaram por ouvirem a ronca e o bater das
ondas no paredão, e, bem assim, que quando sentiram o bater dos remos se
convenceram que só o Labareda seria capaz de atravessar a ria com tal
tempo, e, por isso, gritaram por ele, tanto mais que estavam
desorientados.
Passado que foi SAMA e porque o nevoeiro se
levantou um pouco e o perigo desapareceu, acertámos com o Labareda
deixar-nos nos estaleiros do Mónica, visto que estávamos molhados e
enregelados, devido à cacimba, sendo para nós mais prático virmos para
Aveiro a pé; e, para ele, muito mais perto para regressar a casa.
Em vez dos trinta mil réis, que era o nosso
ajuste, entregámos cinquenta
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para agradecer a confiança que ele nos proporcionou durante a travessia.
Saídos dos estaleiros passámos pelo
estabelecimento do Alberto Martins, onde bebemos umas pingoletas para
nos aquecer e desentorpecer, e, já contentes da vida, viemos a pé para
Aveiro, brincando por todo o caminho, chegando a tempo da rapaziada do
Porto embarcar para a sua terra no comboio que estava combinado seguir,
contentes com o dia que passaram connosco e esquecidos já do contratempo
causado pelo nevoeiro.
Contei este episódio para dar a conhecer, à
gente nova que me ler, as dificuldades que surgiam às pessoas que tinham
necessidade de se deslocar de S. Jacinto para Aveiro, ou vice-versa.
Mas... e a festa da Senhora das Areias? Dela
falaremos no capítulo seguinte.
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