A
importância do Mutualismo, para as classes operária, camponesa e outras
mais, merece ser divulgada nos seus mais variados contornos. Por nossa
banda reconhecemos, honestamente, que não seremos capazes de
interpretar, em termos aliciantes, o que historicamente destacou o
associativismo mutualista. Todavia, aqui estamos, a utilizar a
mediocridade dos nossos conhecimentos, assumidamente insuficientes,
para estimular os que não tiveram a sorte de aprender mais alguma coisa
com os abnegados paladinos do associativismo, da solidariedade e da
riqueza da palavra entreajuda. Curiosos, apenas, inopinadamente nos
confessamos; e, por isso mesmo, nos sentimos penalizados se estas
referências não conseguirem, ao menos, beneficiar da generosidade dos
eventuais leitores. Pelo contrário, se a temática desenvolvida encontrar
receptividade, será para nós muito gratificante, e consolador o
interesse pela proposição escolhida.
Nesta data festiva do reaparecimento, em nova série, da nossa quase
indispensável «Revista Alentejana», neste número promissor,
atrevemo-nos, portanto, a ocupar algum espaço, conscientes das
limitações que os compromissos firmados com outros colaboradores nos
impõem. Reiteramos, por outro lado, com estas despretensiosas linhas,
tão-só o propósito de accionar a «campainha» que desejamos constante e
estridente até ao despertar da acção pedagógica para um apaixonante
movimento, / 10 / cuja expressão mais alta caiu em lamentável letargia.
Certamente que outros cabelos brancos hão-de superar as falhas desta tentativa de divulgação, com
redobrada energia.
«Ajuda-me, que eu te ajudarei» foi um grito aliciador;
dir-se-ia quase mágico, se a palavra dita não
desvalorizasse o esforço e a realidade na conquista de fundamentais
objectivos. Mas seria injusto esquecer que a força do incitamento foi
também perfilhada por outra
corrente associativista de extraordinária acuidade em
Portugal e internacionalmente: o Cooperativismo. Na Inglaterra, em 1844,
um grupo de operários fundou em
Rochdale a Cooperativa dos Pioneiros, com o impulso
do associativista Charles Gide, e em 1885-86 foi
fundada a célebre escola de Nine, cujo programa logrou
unificar outras formulações que por toda a parte
fervilhavam.
Origens profundas
É, porém, do Mutualismo e dos seus aspectos
doutrinários que. neste momento, nos devemos ocupar. Embora com algumas
linhas paralelas, o Mutualismo procede de origens profundas, cujas raízes abeberaram na
necessidade da defesa de direitos face ao trabalho produzido e na consciência das mais-valias transmitidas aos
exploradores. E não apenas isso: também o direito à
associação, ao convívio e à felicidade no emprego.
Quando procurava agrupar-se para alcançar a vitória na
luta pelos alimentos e sobrevivência, o sapiens pôde,
neste primitivo aspecto, revelar o que em evolução constante o Homem
ambicionou e até mesmo exigiu,
no lento e gradual caminhar das civilizações. E, sempre muito
resumidamente, por razões já enunciadas, / 11 /
começaremos pela assistência concedida pelas Misericórdias, situando-as
na sua «natureza» medieval e, evidentemente, no seu tempo, causas e
efeitos. Não será preciso dizer que, actualmente, defendemos outra
escala de valores sociológicos.
A ideia da assistência por caridade tem, de facto, origens ancestrais
mas, quando D. Leonor estabeleceu, em 1498, o «Compromisso de
Misericórdia» e criou, em Lisboa, a 1ª Instituição, assessorada pelo
clérigo espanhol Fr. Miguel Contreras, já existiam as Confrarias a
distribuir a assistência precária pelas populações; as Ordens, as
Irmandades e, com um estatuto muito restrito, os Socorros Mútuos.
Em Beja, funcionou primeiramente, no séc. XIV, a «Confraria de Socorros
Mútuos», que alguns mutualistas estimam ter sido a génese do Mutualismo incipiente. Dessa época em diante (com espaços de séculos), o
Mutualismo «viveu» empiricamente mas, em 1820, por desígnio da Revolução
Liberal, desabrocharam os primeiros estatutos, concatenados não só por
eruditos afeiçoados às classes produtivas, mas também com a colaboração
de operários esclarecidos e vinculados às ideias liberais. Domingos Cruz
(«A Mutualidade em Portugal») refere que «o Mutualismo, subordinado,
ainda, a noções incipientes, começou a ganhar alento». O mesmo autor
refere, apaixonadamente, a acção das antigas corporações de «Artes e
Ofícios», extintas em 7 de
Maio de 1834 «por incompatíveis com a Carta Constitucional».
Com particular distinção para os revolucionários de 1820, que
preconizavam pôr em prática as suas aspirações idealistas, alicerçadas
no progresso social e na solidariedade humana, no sistema reivindicativo
consciente e na entreajuda organizada à margem de / 12 /
preconceitos ancestrais, os governos da Monarquia
Constitucional foram suficientemente benévolos para
assegurar a permanência do espírito de «bem
-fazer» e da caridade instituída.
Um escol de liberais de «ideias avançadas»
– como
frequentemente se classificavam, nessa época, os mais
intervenientes na vida política e social – esforçava-se,
até ao sacrifício, para alcançar objectivos
emancipadores. Porém, a mobilização para a Guerra
Civil conseguiu retardar desígnios que só, muito
lentamente, atingiram a consolidação satisfatória do
Mutualismo e do associativismo.
O propagandista Eusébio Santos afirmou, em consequência de um estudo efectuado no início do século
XX, que «o incremento do Socorro Mútuo vem do
meado do século passado». Foi desta maneira, acentua a
análise, que surgiram «no nosso País, alguns paladinos
convictos e desinteressados a propagar e a difundir a
nova direcção de onde brotou, no decorrer do tempo,
um núcleo de associações e montepios».
Em 30 de Agosto de 1835, a numerosa classe dos
alfaiates conseguiu, com muita persistência e determinação, fazer aprovar o seu alvará, cujo documento, no
Nº 2 do artigo 4º, vinculava os beneficiários ao compromisso de «criar, em proveito da Associação, os estabelecimentos que forem julgados necessários e úteis». Daí em
diante, tanto os artífices como os artistas, classe média
e até média-alta, promoveram iniciativas de finalidade
associativista que, paralelamente, criaram «mutualidades livres» para suprir despesas por morte do associado e ajuda compatível em caso de desemprego.
Assim se entrelaçaram, década por década, os laços de
fraternidade e de solidariedade nos infortúnios. Sem ajudas nem incentivos oficiais (que só viriam a ter maior
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expressão depois de implantada a República), os movimentos mutualistas e
cooperativistas estavam razoavelmente coesos, em 1882. Os activistas
preparavam-se para os congressos, orgulhosos da sua obra e acreditando
que, mesmo sem a assistência reclamada insistentemente, a «marcha pela
emancipação» seria imparável.
E, em 1890-91, dois congressos tiveram enorme aceitação. Tão
robustecidas foram as teses, tão elaboradas foram as intervenções, tão
objectivas foram as palavras da Câmara dos Deputados que,
antecipadamente, se tinha por escandalosa a ignorância dos movimentos
pelos governantes. Foi aprovada sem grande celeuma a primeira lei
mutualista! Contudo, o «diploma» não agradou plenamente às comunidades,
que denodadamente se empenharam para que fossem ratificadas todas as
cláusulas estatutárias e também o projecto delineado para um futuro
digno, progressista e sem paternalismos. Mas as directrizes dos
sucessivos governos constitucionais alteravam-se consoante a relutância
de maiorias conservadoras ou a determinação vigorosa das minorias
ideologicamente acreditadas.
Todavia, o espírito imperialista transmitido pelos países evoluídos,
apesar das «aberturas de circunstância», não estimulava o crescimento
das associações, basicamente dirigidas por trabalhadores ou enquadradas
por intelectuais assimilados, «esgrimistas» de idealismos quase
proféticos e quantas vezes de estilo parnasiano...
Os ecos da Revolução Francesa
– vitórias e derrotas, objectivos
conseguidos e «ilusões perdidas» – só muito mais tarde chegaram às
classes trabalhadoras. Entretanto, revivendo experiências mal expurgadas
de defeitos contraídos na ambição da / 14 /
liderança, os responsáveis revolucionários apelavam
desesperadamente à unidade das correntes progressistas.
Permaneciam, aqui e ali, as mazelas ignominiosas das
invasões napoleónicas (1807-1811) que conduziram aos
actos revolucionários do Porto (1820 e 1891); por
extensão, aos aderentes de Lisboa. Pouco a pouco
ressaltava uma diferente concepção de vida pública em
discurso inflamado. mas a economia, amarrada a
tendências pequeno-burguesas sustentadas, caminhava
«a passo de boi». E, poucos anos depois da
Constituinte, a Guerra Civil Liberais/Absolutistas, que
derrotou o usurpador do Reino, abalou, durante anos, as
estruturas geradoras de progresso.
Da generosa Revolução Francesa (um século
decorrido) ficaram, apesar do resto, algumas ideias
prevalecentes nos caminhos emancipadores dos
dirigentes associativos e das lideranças operárias, mas
prevaleceram, ainda, situações difíceis para as classes
exploradas.
Da Revolução Industrial inglesa sobreveio um
«benefício de sinal contrário». Camponeses e manufactureiros começaram por sofrer a concorrência da
máquina e das ferramentas mecanizadas. Em teoria, a
mecanização e os inventos deveriam reduzir as horas de
trabalho e o esforço manual sobre-humano, segundo as
concepções científicas, que foram demagogicamente
deturpadas. Aumentou o desemprego, a miséria e a
fome. Os benefícios reverteram para os bolsos dos
industriais de grande poder mercantilista e dos
empresários importadores de tecnologia inovadora.
Por estas e outras situações que a vida, o tempo e o
desleixo retiraram à luta pelos direitos fundamentais, o
«Pico dos Himalaias» – como disse um operário
dirigente em plenário mutualista – ficaria mais alto e / 15 /
inacessível à miraculosa escalada. Estas palavras, tão simples como
incentivadoras contra a inércia,
produziram um grande impulso para o reforço da iniciativa proclamada.
Pelo Decreto-Lei de 2 de Outubro de 1896, foi possível fazer revogar a
lei promulgada em 1891. A
movimentação engrossava, confiando mais na coesão e iniciativa do que no
conjunto das discussões parlamentares e, como nem a reforma nem as
emendas facilitavam a finalidade mutualista à escala nacional, as
iniciativas, debates e conclusões continuaram a exercer-se cada vez com
mais entusiasmo e determinação. Alguns grupos, desiludidos com a
indiferença do Estado, juntaram-se aos activistas intervenientes nas
assembleias de classe.
Reinava D. Carlos I. No Governo, o general Crisóstemo de Abreu,
primeiro-ministro; nas Obras Públicas, o execrável João Franco que, já
nessas funções secundárias, revelava um autoritarismo intrínseco,
gerador de grande agitação. Surgem os primórdios da ditadura, que
prejudicou as associações progressistas até às últimas consequências,
começando Francisco Maria da Veiga com a censura à Imprensa, e João
Franco e os seus «monstros» (apodo que sobressaía com persistente
retumbância), logo a seguir, deportavam para Timor muitos anarquistas e
suspeitos mutualistas. |
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O
Pelicano, símbolo da divisa «Pola Ley e Pola Grey», surge aqui numa
moeda de conto, cunhada no reinado de D. João II |
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