Índice do Almanaque.
 

As Relaxadas do Alto Alentejo

• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

António Carretas

Se formos ao dicionário, a palavra relaxada aparece como desalinhada, negligente, que evidencia desmazelo; ou distendida, frouxa, descontraída; ou ainda repousada, descansada, dissoluta.

Não imagino as minhas patrícias com aquela quantidade de adjectivos referidos. A uma ou outra poderá assentar a palavra, que tem um certo sentido pejorativo, mas, na generalidade, acredito que tal não acontece.

O termo reporta ao século 16 e não tem nada a ver com o actual significado. Podem, portanto, as patrícias estar descansadas.

Nas naus de “quinhentos”, quando os portugueses rumavam às Índias Orientais, naquele século de viagens marítimas inseguras e tormentosas, viajaram também mulheres, enfrentando igualmente os caprichos dos oceanos.

Uma das provas que centenas de mulheres portuguesas andaram nas naus da Índia, existe na documentação da Inquisição de Goa. E isto porque também elas sofrerem as diatribes do então designado de Santo Ofício. Dizia-se, talvez ironicamente, que “foi detectado que o corpo feminino ardia tão bem como o masculino” (?!).

A epopeia dos descobrimentos não foi só feito masculino. As mulheres também estiveram lá e por lá deixaram as suas cinzas.

De entre aquelas que a Inquisição queimou, ou seja nas “relaxadas” como então se dizia, sendo o maior grupo a embarcar constituído por cristãs-novas, trinta e oito viajantes femininas das naus da Índia foram relaxadas nas fogueiras da Inquisição entre 1567 e 1579.

Às condenadas era perguntado se queriam morrer como cristãs. A resposta afirmativa conferia-lhes o direito (?!) a serem garrotadas antes de expostas ao fogo. As cinzas eram removidas três dias depois, aguardando-se que tudo estivesse devidamente consumido pelo fogo. Em Goa as cinzas eram lançadas ao rio Mandovi.

Foi em 1567 que a primeira portuguesa foi queimada (relaxada). De entre as trinta e oito passageiras das naus relaxadas na Índia, constam 6 “alentejanas do alto”. Da minha terra natal, Elvas, tiveram “direito a esse conforto”  três, precisamente Isabel Alvares, viúva, em 1574; Leonor Ferrão, casada, em 1575 e Constança Mendes, viúva, em 1576, as duas primeiras em Goa e a terceira em Baçaim. A primeira alentejana a “relaxar” seria no entanto Catarina da Orta, casada, de Castelo de Vide, em 1569. Ainda em 1574, caberia a vez a Francisca Coelho, casada, de Vila Viçosa, completando-se o naipe em 1577, com Guiomar Fernandes, viúva, de Estremoz, estas três “relaxadas” em Goa.

O “relaxamento” destas patrícias do século 16, ou acompanhavam igual tratamento dos seus homens, ou o complementavam quando já na situação de viúvas. Isto mesmo era referido numa carta que o inquisidor de Goa, Bartolomeu da Fonseca, dirigiu ao rei D. Sebastião, em 1578, “envergonhando-se” porque  “sempre com as mãos no fogo, tinha tirado vidas, tinha desfeito casais”.

Foi, portanto, a própria tenebrosa Inquisição de Goa que acabou por nos dar aquilo que os historiadores ignoraram – a identidade de portuguesas viajantes nas naus da Índia.
 
Nota final: socorremo-nos de um artigo de Fina d’Armada, de Outubro de 1997, no semanário “Expresso”.

António Carretas

Julho de 2013

Cimo da páginaPágina anteriorPágina seguinte