Índice do Almanaque.
 

Leónidas, traz o vinho, caraças!

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António Nunes de Almeida

 

– Leónidas! Leónidas, porra, não me ouves?

– Oiço, patrão, oiço, mas é só de um ouvido...

– Porquê, a tua mulher arrancou-te a outra orelha?

– Não podia...

– Não podia o quê, tirar-te a orelha?!!

– Nam, nam proque estava encostada à enxerga...

– Já cá me parecia que havia enxerga no caso.

– "Tamém" nam enxergo bem, o olho direito está coxo, já vê vomecê porque nam o podia ouvir chamar.

– Tens algum pé cego? Ou perna? Já agora...vê lá bem porque não quero chatear os teus problemas!

– Vai-me do tornozelo às cruzes um arrepio que passa aqui pelo senhor da humanidade, ó patrão, sabe como é...

– O senhor da humanidade? Sim sei, é aquele que a tua mulher diz que não serve para nada...só mija.

– Ela disse-lhe isso, patrão?

– A mim? Não! Só contou ao mulherio todo que têm os maridos na venda do Serafim.

– Ai a cabrona!

– Olha, Leónidas: cabrona não é a mulher de um cabrão?

– D'um cabrão que eu esfolo se me aparecer p'la frente!

– Essa é fácil...Podes começar quando quiseres...

– Eu num seija home, se não esfolo!

– Bem, enquanto esfolas e não esfolas, antes que fiques sem pele, vai à adega e traz vinho.

– Qual, patrão?

– A adega cá do monte, não sabes qual é?

– Qual vinho, patrão, não me faça estúpido, olhe que nam gosto!  Qual vinho é que vou buscar?

– Vinho só há um com esse nome, o tinto. Mas deixa-me ver...Hoje é quarta-feira...com tantas pressas e perguntas se calhar é melhor começares a trazer já o vinho da missa do domingo que ainda começa a reza antes que chegue  cá  o tintol.

– Tintol? Ah, podia ter dito, tintol, claro, vou já na achega.

– E chega antes da missa de domingo, juras? Se não, vem do branco.

– Tá a ver como tenho rezão? Queria vinho, mas vai de nam dizer se era branco ou tinto.

– Vinho, porra! Vinho! Traz vinho da adega, Leónidas!

– É isso, quero saber, o patrão não se decide, é traz vinho tintol, ós despois traz vinho do padre, eu só tenho um ouvido escorreito, mas vi bem que o patrão nam sabe o que quer!

– Sei, sei, mas antes sou capaz de te ir ao focinho...se não estiver paralítico, já se vê! VAI BUSCAR O VINHO, LEÓNIDAS!

– Pronto, pronto! Trago dos dois e o patrão escolhe pela sua veneta!

– FORA!

– Já estou a sair, patrão, nam grite comigo, nam tem por isso, caraças!

O Leónidas arrisca-se muito comigo, onde vou buscar a pachorra para o ter por cá e não o correr à ponta da bota direita que é aquela com que chuto melhor, é pra muitos uma misteriosidade.

Para mim não é tanto.

Velho e casmurro, tem como modo de pensar o que já não há nem nunca devia ter havido, a resignação.

Em pequeno com as sopas de vinho para não chorar, meteram-lhe pelos costumes abaixo, as lérias de que um povo é como nasce, e já foi uma chatice nascer.

Vistas curtas, sofrimentos morais longos, descrença e lassidão, vieram de mistura com o sangue árabe, pouco caldeado pelas virtudes lusitanas da luta

O resultado foi o ter crescido vergado e com a vontade curta de desejos de andar para a frente. Dizia-se indomável….quando estivesse para isso, antes não que está muito calor

– Patrão!

– Hem? Ah, és tu, diz.

– Quer uma canada de cada ou um garrafósio chega?

– Leónidas!!! Leónidas traz vinho nem que seja no teu chapéu!

– Assim explicado...é melhor! Vou andando, vou andando...

Sempre fui contra as anedotas de alentejanos parvos e com outros defeitos que sei que não são reais. Olhando bem, vê-se que começa a haver mudança, o sangue vertido deu origem a forças novas. Haja esperança!

Nesta terra, sacudido o peso do Salazar e depois o da ditadura que os comunistas queriam instalar por aí, apareceu gente capaz, nova e mesmo alguma velha de boa cepa, que deu uma volta nesse Alentejo das anedotas.

O chaparro não fugiu, o calor também não e até se gosta de uma sesta, de uma pinga, não há mal nisso. Houve que lutar ou aprender com espanhóis, lituanos e até bifes bêbados, que sabiam cultivar e dar novos usos e produtos à terra. Hoje, as culturas com ordem da política, deram, estão a dar, outras políticas para as terras e  culturas. É necessário que o que lá foi lá foi, e que não volte! Hoje...

– Patrão! Olhe aqui.

Olhei. O Leónidas, relho, não pertence a nenhum dos mundos com que estou a sonhar para o Alentejo. Nele não há inteligência, pingo daquilo que esta terra precisa e merece. Nela e logo nos "Leónidas", há o terrível defeito do "não te rales que o dia é longo a está um calor do carago". Os tais feitios árabes sem as virtudes da persistência! São más raízes que custam a arrancar.

E se calhar o resultado dos Leónidas terem existido, é mesmo castigo e fado  português, embora duvide fortemente, tal é a má qualidade do produto que não vai bem com os Cabrais e Gamas cantados por Camões! Mas este Leónidas….

– Patrão. Vomecê vendeu o branco todo para a "comprativa", como é quer que lhe traga vinho para a missa?

– Já te confessaste esta semana?

– A quem patrão? Que polícia é que anda atrás de mim? Nam tenho nada para confessar!

– Ao padre, Leónidas, se já te confessaste ao padre?

– Nam, mas proquê?

– Devias. Porque quem morre sem se confessar, vai assar no inferno, e estou quase a despachar-te para lá!

– Olha, Patrão, assar no inferno? É diferente daqui do Alentejo em Agosto? Se não é, já 'tou habituado!

Digam-me que o inferno é aqui para os lados de Serpa, e eu acredito. Digam-me que o Leónidas representa aquilo que um povo não pode ser e já não é, e eu acredito.

Digam-me que em Portugal, os "Leónidas" vão desaparecer para termos um país melhor, e eu esperançosamente acredito.

Afiancem-me que não há nenhum troca-tintas político chamado Leónidas, e eu sorrio e vejo um bom futuro para todos. Poderemos esperar por isso? Acham que conseguiremos?

– Patrão! Atão que faço?

– LEÓNIDAS,  ACORDA, TRAZ  VINHO, CARAÇAS!

– Branco?

Faço figas...

António Nunes de Almeida

13-01-2014

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