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Outros tempos... outros espaços

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AS MESMAS RAZÕES

Fernando Manique

Homem cavando a horta. Clicar para ampliar.

O homem caminhava com dificuldade, figura curvada ao peso da enxada que transportava ao ombro, não pelo seu próprio peso mas pelos muitos anos passados a cavar a terra agreste, mas amiga. Nesse momento e devido ao facto de há muitos dias não chover, foi encontrá-la bem dura e enrugada, o que dificultava ainda mais a sua tarefa.

Mesmo assim e após a tradicional cuspidela nas suas mãos calejadas, com elas abraçou o cabo da enxada e atacou os regos da horta, enquanto o serpentear da água da levada os tornava bastante mais tenros e acessíveis.

Era uma entre as muitas hortas que bordejavam o caminho térreo que partindo de Fontanelas ia dar à secular povoação de Janas, após deixar a capela circular de são Mamede ao seu lado direito. O velho caminho de São Mamede!… Nele e principalmente nas chuvas, somente a pé ou de burro, alguém se poderia aventurar naquelas andanças, ou não fosse o burro o maior todo-o-terreno de sempre.

E a feira de São Mamede, aquele local mágico onde todos os anos em Agosto as populações se concentravam, com os seus rituais, como a bênção do gado após as tradicionais voltas à capela, e os burros, muitos, muitos burros, zurrando em uníssono por entre os pinheiros, como que num apelo às gentes.

Numa época mais recente e após uma progressiva substituição do burro pelo tractor, mais feridas foram sendo abertas no caminho de São Mamede. Valas profundas dificultavam mesmo a progressão a pé, alternando a lama com o ressequido e gretado barro. Também as antigas hortas foram dando lugar a pinhal e baldios, e naquela mancha verde, muitas ilhas brancas sob a forma de casas, começaram a invadir a paisagem outrora fértil no abastecimento de produtos da terra genuína às populações locais e do Concelho.

O homem desloca-se facilmente no seu tractor com atrelado sobre o tapete de asfalto que o leva a Janas, passando por São Mamede. Nas bermas desfilam, de modo quase ininterrupto, inúmeras casas ocupando o espaço onde em tempos verdejavam hortas e pomares.

A enxada já não o verga com o peso da terra e os legumes que transporta têm a sua origem em terras distantes, desconhecidas na sua maioria, dele e das gentes locais.

A água já não serpenteia nos regos dos feijoeiros, pois a levada há muito secou, bem como o pequeno rio que lhe deu origem e desde sempre a alimentou.

A feira de São Mamede lá continua nos agostos dos nossos dias. Mantém alguns dos seus rituais, mas o chamamento dos burros foi substituído pelos escapes dos tractores e das motas.

Lá bem ao fundo, para o lado das Azenhas, o mar, essa presença imutável no seu azul profundo e salgado, parece murmurar numa maré duma tarde dos nossos dias…

Outros tempos…

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