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TEMPOS DOUTRO TEMPO

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José Roque e José Simões Miranda

 

O tempo é sempre um pêndulo de sentimentos no coração do homem. E por isso mesmo, com alguma facilidade, recuando a tempos não muito idos, por vezes ajudados pela memória de criança dos mais velhos, encontramos sinais que acabaram por vincar de forma indelével, as marcas da nossa identidade.

É que o alentejano, porque nunca gostou de pressas, sempre se levantou antes do tempo e sempre se deitou depois do tempo.

O galo anunciava a madrugada. Na planície, já homens e mulheres marcavam a passo e a compasso, por vezes das vozes, a caminhada para mais uma jornada.

Não sem que antes houvesse tempo para enxugar o estômago com o magro conduto que nunca abundava nas mesas.

Ainda assim, quem passasse nas ruas sentia o cheiro que pelas chaminés acompanhava o fumo do azinho a arder misturado com o vapor do café que fervia nas cafeteiras.

A jornada era dura. O sol a sol agreste e felino determinava a tonalidade bronzeada dos rostos, o suor ensopava a roupa, qual pluviómetro do cansaço a que havia de resistir. Aliás, por perto, havia sempre um feitor, um ganhão, o próprio lavrador, chamando a contas aquele que se descuidava com um pouco de descanso.

A rudeza das ferramentas calejava. O esforço sobre-humano a que tinham de se sujeitar moldava a pele construindo uma história em cada ruga. Porém, a criação dos filhos, que eram quase sempre em grande número, falava mais alto.

Sujeição! Resistência! Fizesse sol ou fizesse chuva. Na cava, na monda, na ceifa, na debulha, na vindima, na apanha da azeitona, fazendo o que fazia falta ser feito. Afinal ter trabalho até era “sinónimo” de felicidade e pão para a boca. É que havia quem não tivesse!

No regresso da faina, muitas vezes tarde e a más horas, era a mulher que ainda tinha a lide da casa, tratando do jantar. O mesmo é dizer, inventando qualquer coisa para enganar o estômago.

O homem, por seu lado, tinha a taberna como ponto de encontro. Era ali que se partilhava um naco de pão, um resto de conduto – grande petisco! – e se afogavam as mágoas no vinho que escorria pelas gargantas. Era também ali, e dessas gargantas, que brotavam sentimentos feitos modas que repetidamente ecoavam como se estivessem em êxtase.

No Verão, antes da deita, era o fresco da rua que antecipava a ida para a cama. No Inverno, a lenha voltava a arder nas chaminés aquecendo as casas dos montes, das aldeias e vilas do Alentejo.

Os corpos caíam exaustos. A história da vida repetia-se no dia seguinte.

Foi essa a herança desse tempo. Hoje somos, como eles foram, herdeiros no sentimento, desses ceifeiros, desses poetas, desses amantes que fizeram o Alentejo.

Somos eles! Os que choram, os que trabalham, os que cantam, os que com o seu sangue e as suas mãos benditas remexeram a terra à procura do pão da morte, do pão da vida.

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