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Uma vela de cera é um
objecto que todos conhecemos, mas um livro de cera seria hoje uma
curiosidade.
Um livro que se derretesse como manteiga seria muito mais curioso do
que os de tijolo ou do que aqueles livros às tiras de certamente já
ouviram falar. Pouca gente sabe que os livros de cera, que foram
inventados pelos Romanos, ainda eram usados até ao começo do século
passado, até à época da revolução francesa.
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Na gravura pode ver-se o
aspecto desses livros. Eram compostos de um certo número de tabuinhas,
tendo mais ou menos as dimensões de uma agenda de algibeira. Cada uma
das tabuinhas era cavada ao meio para formar um espaço rectangular cheio
de cera amarela ou preta.
Em dois dos cantos havia uns orifícios pelos quais passavam uns cordões
que seguravam as tábuas juntas, formando um livro só. A primeira e a
última tabuinha não tinham cera na superfície externa; assim, quando se
fechava o livro, perigo de se apagar o que estava escrito.
Como se escrevia nestas tabuinhas. Certamente que não era com tinta.
Usavam-se bicos de aço que se chamavam estiletes e que tinham uma ponta
aguda e outra arredondada. Escrevia-se ou, antes, raspava-se com a ponta
aguda e apagava-se com a ponta arredondada. É este o antepassado da
borracha.
As tabuinhas de cera eram muito baratas. As pessoas serviam-se delas,
como de um bloco, para tirar apontamentos, para fazer somas, recibos e
mesmo para escrever cartas.
O papiro importado em Roma, proveniente do
antigo
Egipto, era caro e
empregavam-no unicamente para fazer livros.
Ainda havia outra razão que tornava cómodas essas tabuinhas: podiam-se
utilizar durante muito tempo!
Quando em Roma se escrevia uma carta numa placa de cera, recebia-se a
resposta na mesma placa. Podia-se apagar indefinidamente o que estava
escrito, com a ponta romba do estilete e recomeçar a escrever.
– Sirvam-se com frequência da ponta romba do estilete – tal era o
conselho que davam aos jovens escritores daquele tempo. E ainda hoje se
diz de um escritor que escreve bem, que tem um bom estilo, apesar de o
estilete estar fora de uso.
O facto de se poder apagar facilmente o que estava escrito na cera nem
sempre era vantajoso. Acontecia, às vezes, que cartas secretas,
importantes, chegavam ao destino com o conteúdo completamente apagado
pelas pessoas por cujas mãos eles tinham passado durante o trajecto.
Para evitar que isso acontecesse, derretia-se sobre a carta secreta uma
nova camada de cera, na qual se escreviam insignificâncias destas: Como
passou? Tem passado bem? Venha jantar comigo... etc..., etc... Quando
uma pessoa recebia uma carta assim, tirava com cuidado a camada
superficial da cera e lia a carta verdadeira escrita na camada inferior.
Uma carta desse tempo podia ter um ou dois andares, como se fosse uma
casa.
As letras do alfabeto latino, que tinham sido direitas e nítidas na
pedra, que se tinham arredondado no papiro, transformavam-se agora, na
cera, em garatujas ilegíveis.
Só um paleógrafo poderia decifrar estas cartas romanas escritas na cera.
Para nós seria impossível compreender fosse o que fosse destas curvas e
destas vírgulas.
Experimente o leitor fazer uma placa de cera e escrever qualquer coisa
nela. Verá como é difícil traçar letras correctamente, principalmente se
escrever depressa.
Só depois da invenção do lápis e do papel barato é que nós pudemos
passar sem as tabuinhas de cera. Há alguns séculos, cada aluno trazia
uma pendurada no cinto.
Um grande numero de tabuinhas foi encontrado nos esgotos da igreja de S.
Tiago, em Lubeck. Encontrou-se lá igualmente uma certa quantidade de
estiletes, de canivetes para rasgar o pergaminho, e de varinhas que
serviam para bater nos dedos dos alunos. Porque devem saber que, nesse
tempo, batia-se nos alunos se dó nem piedade. Em vez de se dizer andei
na escola, dizia-se apanhei varadas.
Num livro latino escrito há muitas centenas de anos, lê-se a conversa
seguinte entre os alunos e o mestre:
Os alunos. – Nós, os
rapazes, suplicamos-te, ó mestre, que nos ensines a falar latim
correctamente, porque falamos muito mal e somos muito ignorantes.
O mestre: – Querem que lhes bata quando os ensino?
Os alunos: – Mais vale apanhar pancada do que ficar ignorante.
E a conversa continua no mesmo tom.
Imaginem um aluno desse tempo, sentado com as pernas cruzadas. A placa
de cera está aberta nos joelhos. Segura-a na mão esquerda e escreve com
a mão direita enquanto o mestre dita.
Não eram só os rapazes da escola que empregavam as placas de cera; os
monges escreviam nelas as cerimónias eclesiásticas; os comerciantes, as
suas contas; os elegantes da corte, as suas cartas de amor às lindas
damas e os desafios de duelo.
Certas pessoas tinham tabuinhas de madeira vulgar, cobertas de couro
exteriormente para as tornar mais sólidas, e cobertas interiormente de
cera suja misturada com gordura. Outros tinham tábuas de madeira
preciosa, havia mesmo algumas de luxo com embutidos de marfim.
Em Paris, no século XII, havia até uma corporação de artistas que
fabricava destas tabuinhas.
Para onde foram estes milhões de tabuinhas?
Há muito que as queimaram ou que as deitaram para o lixo, como nós
fazemos aos papéis velhos. Mas quanto daríamos agora por uma destas
tabuinhas escritas por Romanos que viviam há dois mil anos. Muito poucas
tabuinhas romanas chegaram até nós. A maior parte das que possuímos
foram encontradas em Pompeios na casa de um banqueiro, Cecílius
Jucundos. Esta cidade foi sepultada sob as cinzas com a cidade vizinha
de Herculano, quando de uma erupção do Vesúvio. Não é interessante que,
sem esta erupção de um vulcão, as tábuas nunca teriam chegado até nós.
Apenas possuímos vinte e quatro rolos de papiro Romano, que também foram
descobertos nas cinzas de Herculano. A mais terrível das catástrofes não
é nada comparada com os estragos causados pelo séculos. O tempo não
poupa ninguém, apaga até a recordação das acções humanas, tal como a
ponta romba dos estiletes torna lisa a superfície das tabuinhas de cera.
In: O Homem e o Livro |