índice do almanaque
 

O ALENTEJO

• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •  • •

E O CULTO CÉLTICO DAS CABEÇAS *

 

Gabriela Morais e Fernanda Frazão

 

Pote oculado. Anta do Zambujeiro, Évora. Clicar para ampliar.

Pote oculado. Anta do Zambujeiro, Évora.

Nos últimos anos, novos contributos científicos têm permitido rever conceitos e teorias. Em particular, no que diz respeito à História, com o novo paradigma da Continuidade Paleolítica, apoiado na linguística, na genética, na arqueologia, na climatologia, etc., é possível colocar-se a hipótese de serem os antigos Celtas os primeiros habitantes, em tempos paleomesolíticos, do Ocidente Europeu. Ora o Alentejo pode contar-se entre as regiões que mais claramente se harmonizam com tal hipótese.

À luz desta perspectiva, entre os vestígios arqueológicos do Sudoeste peninsular vamos salientar alguns exemplos que nos levam a supor estarem as terras alentejanas incluídas, de modo expressivo, dentro do roteiro céltico do culto das cabeças. Efectivamente, muitos achados parecem indiciar ter havido um tratamento especial dado a certos crânios, tratamento esse que pode remeter-nos para práticas rituais de cariz mítico-religioso próprio do mundo celta.

Segundo muitos autores, para os antigos Celtas, a cabeça possuiria atributos divinos. Como tal, talvez considerada incorruptível e autónoma do corpo, teria poderes protectores – das pessoas ou colectividades, do gado ou da vegetação –, divinatórios ou proféticos, de cura e de regeneração, poderes, em suma, xamânicos. A cabeça seria, assim, o centro dos poderes sobrenaturais reconhecidos no êxtase do xamã, do adivinho ou do feiticeiro, para além de ser o local onde se acreditaria estar alojada a histeria, a loucura ou os defeitos físicos mais impressionantes – mal sagrado ou mal de santo, na máxima popular de que o que é raro é maravilhoso.

Depósito votivo de Garvão, Ourique. Clicar para ampliar.

Depósito votivo de Garvão, Ourique.

Placa de xisto

Placa de xisto

Os dados arqueológicos, iconográficos, ou mitológicos sugerem, por outro lado, ter existido uma primeira fase desse culto das cabeças, interligado com o conhecimentos dos ciclos sazonais, os cultos primordiais da fertilidade, dos mortos e dos antepassados; numa segunda etapa, nas idades dos Metais, sobretudo do Ferro – meados do I milénio a. C. – ter-se-á evoluído para o culto das cabeças cortadas, a cabeça dos inimigos, relacionando-se, deste modo, não apenas com a sobrevivência do próprio grupo, mas também com a guerra e com os jogos de poder entre grupos distintos. Ora o Alentejo parece dispor claramente dessas duas fases.

Poderemos dizer que este culto é visível desde, pelo menos, o VII milénio a. C., passando pelas sucessivas eras pré-históricas até à romanização, época em que um crânio encontrado em Tróia (Setúbal) mostra a continuidade e a larga diacronia da prática de trepanação, uma prática com componentes reveladoras do exercício de rituais relacionados com a crença nas capacidades excepcionais atribuídas à cabeça humana. Crânios provenientes dos concheiros do Tejo e do Sado, de há mais de 8 mil anos, com sinais de trepanação (em vida, post mortem, ou as duas em simultâneo), ablação da língua ou cortes no couro cabeludo parecem ter sido objecto de rituais que se pensa próprios da cultura céltica dessa primeira fase. Para além de se verificar, em certos casos, e como se disse, a intervenção depois da morte, foram encontrados, em alguns exemplares, desenhos de um minúsculo círculo raiado e outros traços a vermelho, relativamente longos, ambos interpretados como representando o Sol. Este tipo de desenho parece ser recorrente, podendo ser inserido, hipoteticamente, dentro de uma linha ritual imagética de constante evolução.

Lembremos, para os tempos subsequentes – Neolítico, Calcolítico ou Bronze –, as marcas «solares» e olhos de sol que surgem em objectos votivos encontrados por todo o Alentejo, nas cerâmicas, nos cilindros oculados ou nas placas de xisto ou placas alentejanas, como lhes chamam os arqueólogos.

Do mesmo modo, os achados de pequenas raspas, esquírolas de crânios trepanados ou rodelas perfuradas de ossos cranianos – que já Leite de Vasconcelos interpretava como amuletos –, poderão revelar-se uma comprovação da crença nas propriedades maravilhosas e curativas de certos crânios. Citem-se os exemplos de duas rodelas encontradas por esse investigador na Lapa do Bugio (Setúbal) e um pedaço de osso parietal com marcas de orifícios, na Anta da Capela, em Avis.

Mas ainda um outro elemento nos leva a supor ter havido um culto da cabeça humana no Alentejo, ou, pelo menos, uma preocupação preferencial e selectiva quanto a ela: na gruta do Escoural, na necrópole do Neolítico Final, há nichos aparentemente reservados para conterem os crânios de alguns dos ali inumados, provavelmente como resultado de cerimónias de trasladação.

Um pouco mais tarde, no espólio do Monte da Velha, em Serpa (III milénio a. C.) – um provável santuário megalítico –, encontraram-se os fragmentos cranianos de um esqueleto claramente dissociados das restantes ossadas. Nas necrópoles de todo o Sudoeste peninsular, do período Calcolítico ao Bronze Final (cerca do IV ao II - I milénio a. C.), mantém-se este tipo de atitude – veja-se o caso da sepultura de Medarra, em Aljustrel –, a ponto de, por vezes, se depositarem os crânios numa espécie de arca, fazendo-os acompanhar por oferendas funerárias.

A acrescentar a este acervo, outro há, já pertencente à Idade do Ferro (segunda metade do século III a. C.): no santuário de Garvão, no «Cerro do Castelo», uma fossa, coberta por lajes de xisto, continha um crânio humano, separado do respectivo esqueleto e com indícios de trepanação.

Objectos votivos encontrados no Escoural.

Cabeça relicário S. Fabião. Clicar para ampliar.

Cabeça relicário S. Fabião.

Todo o espólio parece implicar a existência de um eventual ritual relacionado com um sacrifício humano, próprio do culto das cabeças cortadas em contexto guerreiro, bem como do culto das cabeças inserido em rituais fundacionais e de soberania. A natureza dos objectos votivos encontrados, como a cerâmica ou as placas oculadas – na linha dos achados do Escoural, Estremoz, Vidigueira ou Évora, de épocas anteriores – e os múltiplos restos animais – a sugerir refeições e libações rituais cíclicas, como seriam as cerimónias solsticiais –, indica-nos, assim, não só a persistência de crenças, como também a presença da segunda fase deste culto céltico.

E, para terminar esta brevíssima resenha, resta sinalizar os possíveis resquícios deste culto expressos na existência, em tempos medievais até épocas mais modernas, dos saludadores, curandeiros das maleitas do gado e adivinhadores através de cabeças, bem como da veneração dos chamados «cascos de Santo», entre os quais se conta a cabeça de prata de S. Fabião, de Casével, datada talvez do século XIII. No século XVI, D. Sebastião foi encomendar-se a esta Santa Cabeça, antes de partir para Alcácer-Quibir.

____________________________________

* Pequeno resumo da parte referente ao Alentejo do artigo «Contribuições Portuguesas para o Estudo do culto das Cabeças» a publicar em finais de 2010, na revista italiana "Studi Celtici".

cimo da páginapágina anteriorpágina seguinte