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A TECNOLOGIA PARA ALÉM DA RAZÃO

 

Guilherme Alves Coelho

A falsa correlação entre os conceitos de progresso tecnológico e de progresso social gera e alimenta injustiças e perigos inimagináveis. O uso desadequado de uma tecnologia cada vez mais sofisticada e perigosa, pode contribuir, não para o progresso da humanidade, mas para o seu retrocesso, quando não, para o seu fim.

Uma das maiores contradições com que o homem se confronta neste começo do 21º século, é a do imenso e crescente fosso ou desfasamento entre a tecnologia e o seu uso, entre a rápida e inegável ascensão a um estádio superior no conhecimento tecnológico, detido por uma elite, e a lenta e dolorosa progressão do conhecimento geral.

Contra todas as evidências e bom senso, prevalece uma falsa identificação entre os conceitos de progresso tecnológico e de progresso social que, longe de ser anulado, se tem acentuado nos últimos anos.

Quais as causas desta contradição?

O último século viu nascer um imenso conjunto de inovações tecnológicas, em quantidade e qualidade nunca antes imaginadas.

A humanidade está hoje carregada de inventos. Revolucionários uns, já consagrados e integrados outros. Indispensáveis uns, perfeitamente supérfluos outros. Desde o simples rádio de pilhas ao mais sofisticado veículo espacial, desde a vacina à manipulação genética, tudo isto invade a vida do homem comum. Muitas vezes secretos na origem, são posteriormente introduzidos no quotidiano e banalizados através da produção em massa.

Decorre uma invasão insidiosa e perversa. Por um lado, resolvendo problemas. Por outro, limitando a liberdade e atrapalhando. Invasão que apenas alguns, os especialistas, conseguem de facto entender e controlar. Invasão que deixa a imensa maioria dos povos do mundo à margem. Povos para quem esse progresso não serve sequer para resolver as necessidades mais primárias.

O que torna este desfasamento entre a máquina e o homem tão perigoso é o facto de as máquinas, embora sendo muitas vezes inofensivas, se tornarem extremamente perigosas quando manipuladas por pessoas inexperientes ou irresponsáveis. Ou pior ainda quando o propósito deliberado do uso é apenas o de agredir.

Os exemplos de manipulação desadequada e desproporcionada da tecnologia pelo homem comum são os mais variados. Desde a deficiente manipulação dos pesticidas e rações pelos agricultores, até à da electrónica
/ 14 / pelos ciber-punks. Desde a relação dos indivíduos com as drogas ou com o automóvel, até ao uso desregrado das armas de todos os calibres.

Terá a generalidade dos automobilistas a noção exacta do potencial de destruição da máquina que manipula? Do perigo que pode advir da sua incapacidade em a dominar em caso de emergência? Suspeitamos que não.

Estarão os responsáveis pelas iniciativas de guerra minimamente conscientes das consequências dos seus actos? Suspeitamos que não. Não estão conscientes, nem sequer preocupados com os prejuízos materiais e morais a curto e a longo prazo para a humanidade, desde que satisfaçam as suas pequenas ou grandes ambições mais imediatas. Como dizia Carl Sagan, o célebre astrofísico, "a maior parte das decisões que influenciam o futuro da humanidade está pura e simplesmente nas mãos de charlatães."

Ou seja, uma destruição, automobilística ou bélica, real mas apenas para alguns. Para outros, os que fazem do negócio dos automóveis, do petróleo ou das armas um modo de enriquecimento, constitui apenas um mero, previsível e inevitável conjunto de "efeitos colaterais".

Este começo de século anuncia-se cheio de contradições que, pela sua agudização e extensão à escala planetária e pelas reacções que suscitam nos povos, simultaneamente assustam e constituem sinais de esperança.

O desfasamento de que temos vindo a falar é apenas uma dessas contradições. E umas das grandes mistificações do sistema: a pretensa identificação entre os conceitos de progresso tecnológico e de progresso em geral. Perigosa e dramática identificação que tem servido de suporte ideológico e de perpetuação do sistema.

Tal sofisma esconde as verdadeiras origens da maioria dos avanços técnicos e a das fontes de riqueza: a indústria militar e a pilhagem dos recursos e matérias primas alheios. A primeira, criada para perpetuar a segunda; e esta destinada a justificar aquela, numa dramática coincidência de causa e efeito.

É no sistema económico, no chamado mercado, que se podem encontrar as raízes mais profundas do problema.

Ao definir e impor "o que cada um precisa", criando a todo o momento novas necessidades e novos substitutos, que aliás nunca chegam a ser totalmente integradas no quotidiano, o sistema político-económico dominante promove um clima de instabilidade emocional, ansiedade e irracionalismo. O homem é obrigado a viver num permanente estado de desfasamento entre as suas necessidades e as que artificialmente lhe são criadas. Com um sentimento difuso e inquietante de frustração, de estar em
/ 15 / falta, de andar a reboque. Talvez mesmo uma congénita incapacidade em "acompanhar o progresso", de não estar em dia. Uma sensação de inferioridade, enfim.

Ao estimular um clima apenas competitivo e não cooperativo, este modelo é propício ao conflito, à lei do mais forte.

Não será por acaso que as maiores descobertas tecnológicas do século XX tiveram origem na indústria bélica, sendo posteriormente adaptadas e introduzidas no quotidiano civil. A inovação tecnológica é filha da guerra da indústria e da indústria de guerra.

Os custos a pagar: o retrocesso civilizacional global. Retrocesso esse cujos antecedentes encontram raízes e ensinamentos em históricos travões da razão, também eles globais na sua época: nas cruzadas, na Inquisição, no nazi-fascismo e em muitos outros exemplos.

Argumentam alguns que, não fora essa obsessão pela destruição, e o homem não possuiria a imensa capacidade de construir que hoje se observa. Nada mais perverso, falso e enganoso. É que o homem, ou melhor, os homens "destruidores" e os homens "construtores" de que falamos, não são certamente coincidentes. E nada nos garante que num mundo onde os valores superiores predominem, não se atinjam os mesmos (aparentes) progressos e que até se ultrapassem. São conhecidos avanços científicos que ficaram pelo caminho, apenas devido a estas condições competitivas em que foram criados. Devido aos obstáculos artificialmente colocados e até mesmo sabotagens, provocados pela ambição dos seus concorrentes mais poderosos. Quem sabe quanta destruição e quanto sofrimento não teriam sido evitados, se por exemplo, não tivesse vingado a primazia do petróleo como combustível universal, de que o Sr. Ford foi um dos principais impulsionadores?

Em resumo, é este clima de falso progresso que, levando frequentemente à utilização desproporcionada ou desadequada dos objectos, conduz ao consumo desregrado, ao desperdício, à poluição do ambiente e à depredação dos recursos, à guerra, ao desastre, à catástrofe. Pondo em causa o próprio futuro da humanidade neste planeta chamado Terra.

Não é certamente este o mundo que queremos deixar aos nossos filhos, mas sim um mundo em que os objectos que são fabricados pelo homem estejam efectivamente ao serviço do homem e do mundo em geral.

 

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