A falsa correlação entre os conceitos de progresso
tecnológico e de progresso social gera e alimenta injustiças e perigos
inimagináveis. O uso desadequado de uma tecnologia cada vez mais
sofisticada e perigosa, pode contribuir, não para o progresso da
humanidade, mas para o seu retrocesso, quando não, para o seu fim.
Uma das maiores contradições com que o homem se confronta neste começo
do 21º século, é a do imenso e crescente fosso ou desfasamento entre a
tecnologia e o seu uso, entre a rápida e inegável ascensão a um estádio
superior no conhecimento tecnológico, detido por uma elite, e a lenta e
dolorosa progressão do conhecimento geral.
Contra todas as evidências e bom senso, prevalece uma falsa
identificação entre os conceitos de progresso tecnológico e de progresso
social que, longe de ser anulado, se tem acentuado nos últimos anos.
Quais as causas desta contradição?
O último século viu nascer um imenso conjunto de inovações tecnológicas,
em quantidade e qualidade nunca antes imaginadas.
A humanidade está hoje carregada de inventos. Revolucionários uns, já
consagrados e integrados outros. Indispensáveis uns, perfeitamente
supérfluos outros. Desde o simples rádio de pilhas ao mais sofisticado
veículo espacial, desde a vacina à manipulação genética, tudo isto
invade a vida do homem comum. Muitas vezes secretos na origem, são
posteriormente introduzidos no quotidiano e banalizados através da
produção em massa.
Decorre uma invasão insidiosa e perversa. Por um lado, resolvendo
problemas. Por outro, limitando a liberdade e atrapalhando. Invasão que
apenas alguns, os especialistas, conseguem de facto entender e
controlar. Invasão que deixa a imensa maioria dos povos do mundo à
margem. Povos para quem esse progresso não serve sequer para resolver as
necessidades mais primárias.
O que torna este desfasamento entre a máquina e o homem tão perigoso é o
facto de as máquinas, embora sendo muitas vezes inofensivas, se tornarem
extremamente perigosas quando manipuladas por pessoas inexperientes ou
irresponsáveis. Ou pior ainda quando o propósito deliberado do uso é
apenas o de agredir.
Os exemplos de manipulação desadequada e desproporcionada da tecnologia
pelo homem comum são os mais variados. Desde a deficiente manipulação
dos pesticidas e rações pelos agricultores, até à da electrónica
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relação dos indivíduos com as drogas ou com o automóvel, até ao uso
desregrado das armas de todos os calibres.
Terá a generalidade dos automobilistas a noção exacta do potencial de
destruição da máquina que manipula? Do perigo que pode advir da sua
incapacidade em a dominar em caso de emergência? Suspeitamos que não.
Estarão os responsáveis pelas iniciativas de guerra minimamente
conscientes das consequências dos seus actos? Suspeitamos que não. Não
estão conscientes, nem sequer preocupados com os prejuízos materiais e
morais a curto e a longo prazo para a humanidade, desde que satisfaçam
as suas pequenas ou grandes ambições mais imediatas. Como dizia Carl
Sagan, o célebre astrofísico, "a maior parte das decisões que
influenciam o futuro da humanidade está pura e simplesmente nas mãos de
charlatães."
Ou seja, uma destruição, automobilística ou bélica, real mas apenas para
alguns. Para outros, os que fazem do negócio dos automóveis, do petróleo
ou das armas um modo de enriquecimento, constitui apenas um mero,
previsível e inevitável conjunto de "efeitos colaterais".
Este começo de século anuncia-se cheio de contradições que, pela sua
agudização e extensão à escala planetária e pelas reacções que suscitam
nos povos, simultaneamente assustam e constituem sinais de esperança.
O desfasamento de que temos vindo a falar é apenas uma dessas
contradições. E umas das grandes mistificações do sistema: a pretensa
identificação entre os conceitos de progresso tecnológico e de progresso
em geral. Perigosa e dramática identificação que tem servido de suporte
ideológico e de perpetuação do sistema.
Tal sofisma esconde as verdadeiras origens da maioria dos avanços
técnicos e a das fontes de riqueza: a indústria militar e a pilhagem dos
recursos e matérias primas alheios. A primeira, criada para perpetuar a
segunda; e esta destinada a justificar aquela, numa dramática
coincidência de causa e efeito.
É no sistema económico, no chamado mercado, que se podem encontrar as
raízes mais profundas do problema.
Ao definir e impor "o que cada um precisa", criando a todo o momento
novas necessidades e novos substitutos, que aliás nunca chegam a ser
totalmente integradas no quotidiano, o sistema político-económico
dominante promove um clima de instabilidade emocional, ansiedade e
irracionalismo. O homem é obrigado a viver num permanente estado de
desfasamento entre as suas necessidades e as que artificialmente lhe são
criadas. Com um sentimento difuso e inquietante de frustração, de estar
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falta, de andar a reboque. Talvez mesmo uma congénita incapacidade em
"acompanhar o progresso", de não estar em dia. Uma sensação de
inferioridade, enfim.
Ao estimular um clima apenas competitivo e não cooperativo, este modelo
é propício ao conflito, à lei do mais forte.
Não será por acaso que as maiores descobertas tecnológicas do século XX
tiveram origem na indústria bélica, sendo posteriormente adaptadas e
introduzidas no quotidiano civil. A inovação tecnológica é filha da
guerra da indústria e da indústria de guerra.
Os custos a pagar: o retrocesso civilizacional global. Retrocesso esse
cujos antecedentes encontram raízes e ensinamentos em históricos travões
da razão, também eles globais na sua época: nas cruzadas, na Inquisição,
no nazi-fascismo e em muitos outros exemplos.
Argumentam alguns que, não fora essa obsessão pela destruição, e o homem
não possuiria a imensa capacidade de construir que hoje se observa. Nada
mais perverso, falso e enganoso. É que o homem, ou melhor, os homens
"destruidores" e os homens "construtores" de que falamos, não são
certamente coincidentes. E nada nos garante que num mundo onde os
valores superiores predominem, não se atinjam os mesmos (aparentes)
progressos e que até se ultrapassem. São conhecidos avanços científicos
que ficaram pelo caminho, apenas devido a estas condições competitivas
em que foram criados. Devido aos obstáculos artificialmente colocados e
até mesmo sabotagens, provocados pela ambição dos seus concorrentes mais
poderosos. Quem sabe quanta destruição e quanto sofrimento não teriam
sido evitados, se por exemplo, não tivesse vingado a primazia do
petróleo como combustível universal, de que o Sr. Ford foi um dos
principais impulsionadores?
Em resumo, é este clima de falso progresso que, levando frequentemente à
utilização desproporcionada ou desadequada dos objectos, conduz ao
consumo desregrado, ao desperdício, à poluição do ambiente e à
depredação dos recursos, à guerra, ao desastre, à catástrofe. Pondo em
causa o próprio futuro da humanidade neste planeta chamado Terra.
Não é certamente este o mundo que queremos deixar aos nossos filhos, mas
sim um mundo em que os objectos que são fabricados pelo homem estejam
efectivamente ao serviço do homem e do mundo em geral.
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