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ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

A Importância do Ordenamento do Território na Protecção do Ambiente II

 

Guilherme Alves Coelho

Rousseau contra Malagrita

Apenas alguns dias após a publicação do anterior texto sobre este tema – Ordenamento do Território e Preservação do Ambiente ­– aconteceu o "tsunami" no Índico. Como que uma trágica ilustração da tese aí apresentada: a responsabilidade humana nos aconte­cimentos resultantes de catástrofes naturais.

Em simultâneo, chegou-me às mãos um estudo sobre a Baixa Pombalina (1), no qual se relembra que, em 1755, em Lisboa, na sequência do célebre terramoto, também sucedeu um "tsunami".

Pela sua dimensão e repercussão, a com­paração com os mais recentes pareceu-me inevitável. A tragédia que vitimou Lisboa correspondeu, na sua época e à sua escala, à que se verificou no Índico e se repete pelo Mundo cada vez com maior frequência.

Durante o ano a lista foi-se avolumando. Tragédias sucederam-se, aparentemente de forma descontrolada, como se o homem tivesse sido colocado, impotente, à margem dos acontecimentos.

Passados que são duzentos e cinquenta anos, durante os quais, para conforto da huma­nidade, tantos progressos se conseguiram, a interrogação que se coloca é óbvia: como é possível estas coisas ainda acontecerem nos dias de hoje? A resposta só pode ser uma: a negligência humana.

 

O terramoto de 1755

O terramoto e os fenómenos subsequentes que assolaram Lisboa perturbaram de tal modo as mentes, que toda a intelectualidade de então se pronunciou sobre as suas causas. Das mais disparatadas às mais sensatas, as "explicações" para o sucedido multi­plicaram-se. Mas, no essencial, resumiram-se a dois tipos: as religiosas e as científicas.

De entre as últimas, uma se destacou que, infelizmente, ainda hoje poderíamos considerar como actual. Foi seu autor Jean-Jacques Rousseau. Comentava ele, nessa altura, na sua Lettre sur la Providence que, ao invés do que outros afirmavam, era "responsabilidade do Homem, através dos seus erros, a corrupção da harmonia da Criação. Há que convir, por exemplo, que não foi a Natureza que reuniu (em Lisboa) 20 mil casas de 6 ou 7 andares, e que se os habitantes dessa grande cidade se tivessem dispersado mais uniformemente, e construído de modo mais ligeiro, os estragos teriam sido muito menores, talvez nulos." (2)

Mas, enquanto este homem, com uma clarividência invulgar para a época, colocava o dedo na ferida, havia quem encontrasse nos "modos pecaminosos dos seus habitantes (de Lisboa)", as razões últimas para a catástrofe. Como era o caso do padre jesuíta Gabriel Malagrita.

Dois séculos e meio nos separam dessa data. Pelos indícios que se nos apresentam diaria­mente, tudo indica que Malagrita não morreu, ainda anda por aí. Felizmente que Rousseau também não morreu. Se a primeira constatação nos entristece, a segunda conforta-nos e dá-nos alguma esperança no futuro.

Entretanto, Rousseau terá que continuar a longa e dura batalha contra Malagrita: a batalha do racionalismo contra o obscurantismo, da inteligência contra a estupidez, da solidariedade contra a ganância, da justiça contra a falta dela.

 

O tsunami do Índico

Sabemos hoje bastante sobre o fenómeno natural que originou o tsunami no Índico. Sabemos o suficiente sobre a forma como pereceram milhares de pessoas. Mas conti­nuamos a saber muito pouco sobre as verda­deiras causas da grandeza da tragédia.

Sabemos que, também aqui, não foi a Natureza que colocou as casas, os hotéis, as aldeias, na frente da onda gigante.

Sabemos que, entre o momento da formação da onda no meio do Oceano e o da sua chegada aos locais costeiros, decorreram duas horas. Com os meios de comunicação e de prevenção hoje existentes, teria havido tempo suficiente para a evacuação. Caso as vítimas tivessem tido conhecimento atempado.

Sabemos que, apesar da inexistência de sistemas de aviso, houve quem tivesse advertido com antecedência para o que se estava a passar. Mas esse alerta, embora escutado, não foi comunicado aos desti­natários. Antes pelo contrário, foi escondido. Alguns empresários ou gerentes de hotéis, receosos de perder a clientela e porventura ignorantes das consequências dos seus actos, calaram-se. E mandaram calar.

Os responsáveis pela dimensão da tragédia são assim diversos e com vários níveis de responsabilidade, mas um pequeno esforço de pesquisa facilmente os identificaria.

Dir-se-á que esta é apenas uma interpretação, embora talvez a mais evidente e científica. Outra seria se, porventura, Malagrita fosse hoje consultado. Decerto teria concordado com a actuação desses responsáveis, porque acharia que nada mais havia a fazer. A catástrofe não passaria de um amplo, sério e inevitável castigo divino, com origem nos modos pecaminosos dos nativos e dos turistas, vendedores e compradores de sexo.

 

O tufão Katrina

Infelizmente (mas previsivelmente) a lista de exemplos não pára de aumentar. Ainda mal acabavam os ecos deste acontecimento, quando outro, mais um trágico exemplo de incúria humana, veio engrossar a lista: o tufão Katrina, que se abateu sobre as Caraíbas, com especiais consequências para o sul dos EUA, mais concretamente sobre o Estado da Luisiana e sobre a sua capital Nova Orleães. De novo o mesmo cenário. Uma instalação humana, uma cidade, edificada em local inapropriado. A cidade de Nova Orleães, construída no delta do Rio Mississipi, abaixo do nível das águas do Lago Pontchartrain. Durante muitos anos, apesar de se ter defrontado com situações de alguma complexidade, nada de muito grave acon­teceu. Mas bastou um fenómeno natural com intensidade fora do comum para que surgisse a tragédia. Os diques romperam e as águas do Lago inundaram a cidade, levando consigo haveres e vidas.

Por ironia do destino, ou talvez não, a catástrofe ocorre no país que é o maior responsável pelo aquecimento global e pelo seu rosário de alterações do clima. (3)

Mais uma vez recordamos Rousseau e Malagrita. Se Rousseau fosse chamado a comentar os acontecimentos, teria decerto afirmado que não foi a natureza que colocou as casas naquele local. Teria dito que, desde há muito, pessoas responsáveis vêm avisando para o perigo, que a catástrofe era previsível, ao ponto de estar classificada como uma das quatro situações de risco mais prováveis detectadas nos EUA. Teria afirmado que há responsáveis, a começar pelos governantes, que deveriam ter prevenido a situação. Acresce que Bush teria recusado, pouco tempo antes da catástrofe, libertar verbas para reparação dos diques em mau estado de conservação.

É claro que há sempre a possibilidade, embora remota, de que Bush pense como Malagrita. Tendo em conta a sua religio­sidade cristã, a catástrofe seria apenas um castigo divino para eventuais pecados dos habitantes de Nova Orleães. Pouco provável também, seria a hipótese, aventada por outros, de que os acontecimentos, embora sendo um castigo divino, teriam razões contrárias: seriam contra o próprio Bush, pelas suas malfeitorias no Iraque.

 

Caxemira

No intervalo de mais uns quantos tufões, nova tragédia aconteceu no passado dia 8 de Outubro. Mais um terramoto, agora nas montanhas de Caxemira, entre a Índia e o Paquistão, provocou outra catástrofe, mais uma vez de dimensões chocantes: 80 mil mortos e mais de três milhões de desalojados, o equivalente a cerca de um terço da população portuguesa. As equipas de socorro não conseguiram chegar aos locais afectados, quer por causa do relevo do local, quer pela destruição das precárias vias de acesso. Cerca de um milhão de pessoas não tinha onde dormir e previa-se que muitas iriam provavelmente morrer com a chegada do Inverno.

Desconheço em pormenor a qualidade das construções que aí existiam e qual o seu estado de conservação, mas tudo indica que seriam casas modestas, construídas com materiais precários e frágeis, como a taipa, ou seja, terra prensada. Mais uma vez, os pobres, os principais atingidos. E esta é outra dimensão das tragédias. Isto significa que as tragédias com origem em catástrofes naturais também são selectivas? (3)

 

Conclusão

Recuso a tese vulgarizada de que todos somos responsáveis. Ela pretende diluir responsabilidades, desviar as atenções, metendo no mesmo saco governantes e governados, agressores e agredidos, crimi­nosos e vítimas.

Os responsáveis têm nomes. São todos aqueles que, iludindo as leis, as instituições, a boa fé e a crença dos povos, se instituíram como donos e senhores do planeta, conduzindo irresponsavelmente a huma­nidade à catástrofe. Porque não sendo, de facto, responsáveis pelos terramotos, pelos "tsunamis" ou por outros fenómenos naturais, são-no decerto pela dimensão que acabam por assumir as catástrofes que daí decorrem. Porque não souberam ou não as quiseram prevenir ou corrigir. Pelo contrário. As razões também estão identificadas e têm, passe a expressão, um epicentro: um fundamentalismo cego que despreza o homem e faz da ganância razão de ser.

É preciso continuar a identificar os Malagritas que tudo desculpam e afastá-los dos lugares de decisão. É fundamental aumentar e promover os Rousseaus. É vital generalizar o protesto, sob pena de, não o fazendo, já não haver tempo para arrepen­dimento.

Afirmava há 50 anos Sir Bertrand Russel, perante o aumento assustador da população mundial, que a sua redução seria inevitável e era urgente tomar medidas nesse sentido. O problema estava na solução: é que enquanto uns apostavam no controlo da natalidade, outros preferiam as guerras para atingir o objectivo. O trágico é que era a opinião destes que prevalecia. Perante tantos e cada vez mais frequentes exemplos, quase sou levado a crer que estes últimos já acrescentaram as catástrofes "naturais" à lista das soluções apontadas pelo filósofo inglês.

_________________________

(1) Dossier final da Candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial, Câmara Municipal de Lisboa e outros, 2005.

(2) "Furacões fortes tornaram-se duas vezes mais frequentes em 35 anos. Os EUA retiraram-se do protocolo de Quioto para o combate às alterações climáticas e são um dos países que mais sentem a força dos furacões. Nos últimos 35 anos o número de furacões diminuiu, mas os mais fortes tornaram-se mais frequentes." Jornal Público, 16 Setembro 2005.

(3) Não é possível deixar de referir o caso exemplar e excepcional de Cuba, também ela uma vítima frequente dos tufões das Caraíbas, mas onde, ao contrário dos exemplos dados, a prevenção funciona e as consequências do mesmo fenómeno natural são completamente diversas das dos seus vizinhos.

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