Rousseau contra Malagrita
Apenas alguns dias após a publicação do
anterior texto sobre este tema – Ordenamento do Território e
Preservação do Ambiente – aconteceu o "tsunami" no Índico. Como que
uma trágica ilustração da tese aí apresentada: a responsabilidade humana
nos acontecimentos resultantes de catástrofes naturais.
Em simultâneo, chegou-me às mãos um
estudo sobre a Baixa Pombalina
(1),
no qual se relembra que, em 1755, em Lisboa, na sequência do célebre
terramoto, também sucedeu um "tsunami".
Pela sua dimensão e repercussão, a
comparação com os mais recentes pareceu-me inevitável. A tragédia que
vitimou Lisboa correspondeu, na sua época e à sua escala, à que se
verificou no Índico e se repete pelo Mundo cada vez com maior
frequência.
Durante o ano a lista foi-se avolumando.
Tragédias sucederam-se, aparentemente de forma descontrolada, como se o
homem tivesse sido colocado, impotente, à margem dos acontecimentos.
Passados que são duzentos e cinquenta
anos, durante os quais, para conforto da humanidade, tantos progressos
se conseguiram, a interrogação que se coloca é óbvia: como é possível
estas coisas ainda acontecerem nos dias de hoje? A resposta só pode ser
uma: a negligência humana.
O
terramoto de 1755
O terramoto e os fenómenos subsequentes
que assolaram Lisboa perturbaram de tal modo as mentes, que toda a
intelectualidade de então se pronunciou sobre as suas causas. Das mais
disparatadas às mais sensatas, as "explicações" para o sucedido
multiplicaram-se. Mas, no essencial, resumiram-se a dois tipos: as
religiosas e as científicas.
De entre as últimas, uma se destacou
que, infelizmente, ainda hoje poderíamos considerar como actual. Foi seu
autor Jean-Jacques Rousseau. Comentava ele, nessa altura, na sua
Lettre sur la Providence que, ao invés do que outros afirmavam, era
"responsabilidade do Homem, através dos seus erros, a corrupção da
harmonia da Criação. Há que convir, por exemplo, que não foi a Natureza
que reuniu (em Lisboa) 20 mil casas de 6 ou 7 andares, e que se os
habitantes dessa grande cidade se tivessem dispersado mais
uniformemente, e construído de modo mais ligeiro, os estragos teriam
sido muito menores, talvez nulos."
(2)
Mas, enquanto este homem, com uma
clarividência invulgar para a época, colocava o dedo na ferida, havia
quem encontrasse nos "modos pecaminosos dos seus habitantes (de
Lisboa)", as razões últimas para a catástrofe. Como era o caso do padre
jesuíta Gabriel Malagrita.
Dois séculos e meio nos separam dessa
data. Pelos indícios que se nos apresentam diariamente, tudo indica que
Malagrita não morreu, ainda anda por aí. Felizmente que Rousseau também
não morreu. Se a primeira constatação nos entristece, a segunda
conforta-nos e dá-nos alguma esperança no futuro.
Entretanto, Rousseau terá que continuar
a longa e dura batalha contra Malagrita: a batalha do racionalismo
contra o obscurantismo, da inteligência contra a estupidez, da
solidariedade contra a ganância, da justiça contra a falta dela.
O
tsunami do Índico
Sabemos hoje bastante sobre o fenómeno
natural que originou o tsunami no Índico. Sabemos o suficiente sobre a
forma como pereceram milhares de pessoas. Mas continuamos a saber muito
pouco sobre as verdadeiras causas da grandeza da tragédia.
Sabemos que, também aqui, não foi a
Natureza que colocou as casas, os hotéis, as aldeias, na frente da onda
gigante.
Sabemos que, entre o momento da formação
da onda no meio do Oceano e o da sua chegada aos locais costeiros,
decorreram duas horas. Com os meios de comunicação e de prevenção hoje
existentes, teria havido tempo suficiente para a evacuação. Caso as
vítimas tivessem tido conhecimento atempado.
Sabemos que, apesar da inexistência de
sistemas de aviso, houve quem tivesse advertido com antecedência para o
que se estava a passar. Mas esse alerta, embora escutado, não foi
comunicado aos destinatários. Antes pelo contrário, foi escondido.
Alguns empresários ou gerentes de hotéis, receosos de perder a clientela
e porventura ignorantes das consequências dos seus actos, calaram-se. E
mandaram calar.
Os responsáveis pela dimensão da
tragédia são assim diversos e com vários níveis de responsabilidade, mas
um pequeno esforço de pesquisa facilmente os identificaria.
Dir-se-á que esta é apenas uma
interpretação, embora talvez a mais evidente e científica. Outra seria
se, porventura, Malagrita fosse hoje consultado. Decerto teria
concordado com a actuação desses responsáveis, porque acharia que nada
mais havia a fazer. A catástrofe não passaria de um amplo, sério e
inevitável castigo divino, com origem nos modos pecaminosos dos nativos
e dos turistas, vendedores e compradores de sexo.
O
tufão Katrina
Infelizmente (mas previsivelmente) a
lista de exemplos não pára de aumentar. Ainda mal acabavam os ecos deste
acontecimento, quando outro, mais um trágico exemplo de incúria humana,
veio engrossar a lista: o tufão Katrina, que se abateu sobre as
Caraíbas, com especiais consequências para o sul dos EUA, mais
concretamente sobre o Estado da Luisiana e sobre a sua capital Nova
Orleães. De novo o mesmo cenário. Uma instalação humana, uma cidade,
edificada em local inapropriado. A cidade de Nova Orleães, construída no
delta do Rio Mississipi, abaixo do nível das águas do Lago
Pontchartrain. Durante muitos anos, apesar de se ter defrontado com
situações de alguma complexidade, nada de muito grave aconteceu. Mas
bastou um fenómeno natural com intensidade fora do comum para que
surgisse a tragédia. Os diques romperam e as águas do Lago inundaram a
cidade, levando consigo haveres e vidas.
Por ironia do destino, ou talvez não, a
catástrofe ocorre no país que é o maior responsável pelo aquecimento
global e pelo seu rosário de alterações do clima.
(3)
Mais uma vez recordamos Rousseau e
Malagrita. Se Rousseau fosse chamado a comentar os acontecimentos, teria
decerto afirmado que não foi a natureza que colocou as casas naquele
local. Teria dito que, desde há muito, pessoas responsáveis vêm avisando
para o perigo, que a catástrofe era previsível, ao ponto de estar
classificada como uma das quatro situações de risco mais prováveis
detectadas nos EUA. Teria afirmado que há responsáveis, a começar pelos
governantes, que deveriam ter prevenido a situação. Acresce que Bush
teria recusado, pouco tempo antes da catástrofe, libertar verbas para
reparação dos diques em mau estado de conservação.
É claro que há sempre a possibilidade,
embora remota, de que Bush pense como Malagrita. Tendo em conta a sua
religiosidade cristã, a catástrofe seria apenas um castigo divino para
eventuais pecados dos habitantes de Nova Orleães. Pouco provável também,
seria a hipótese, aventada por outros, de que os acontecimentos, embora
sendo um castigo divino, teriam razões contrárias: seriam contra o
próprio Bush, pelas suas malfeitorias no Iraque.
Caxemira
No intervalo de mais uns quantos tufões,
nova tragédia aconteceu no passado dia 8 de Outubro. Mais um terramoto,
agora nas montanhas de Caxemira, entre a Índia e o Paquistão, provocou
outra catástrofe, mais uma vez de dimensões chocantes: 80 mil mortos e
mais de três milhões de desalojados, o equivalente a cerca de um terço
da população portuguesa. As equipas de socorro não conseguiram chegar
aos locais afectados, quer por causa do relevo do local, quer pela
destruição das precárias vias de acesso. Cerca de um milhão de pessoas
não tinha onde dormir e previa-se que muitas iriam provavelmente morrer
com a chegada do Inverno.
Desconheço em pormenor a qualidade das
construções que aí existiam e qual o seu estado de conservação, mas tudo
indica que seriam casas modestas, construídas com materiais precários e
frágeis, como a taipa, ou seja, terra prensada. Mais uma vez, os pobres,
os principais atingidos. E esta é outra dimensão das tragédias. Isto
significa que as tragédias com origem em catástrofes naturais também são
selectivas? (3)
Conclusão
Recuso a tese vulgarizada de que todos
somos responsáveis. Ela pretende diluir responsabilidades, desviar as
atenções, metendo no mesmo saco governantes e governados, agressores e
agredidos, criminosos e vítimas.
Os responsáveis têm nomes. São todos
aqueles que, iludindo as leis, as instituições, a boa fé e a crença dos
povos, se instituíram como donos e senhores do planeta, conduzindo
irresponsavelmente a humanidade à catástrofe. Porque não sendo, de
facto, responsáveis pelos terramotos, pelos "tsunamis" ou por outros
fenómenos naturais, são-no decerto pela dimensão que acabam por assumir
as catástrofes que daí decorrem. Porque não souberam ou não as quiseram
prevenir ou corrigir. Pelo contrário. As razões também estão
identificadas e têm, passe a expressão, um epicentro: um fundamentalismo
cego que despreza o homem e faz da ganância razão de ser.
É preciso continuar a identificar os
Malagritas que tudo desculpam e afastá-los dos lugares de decisão. É
fundamental aumentar e promover os Rousseaus. É vital generalizar o
protesto, sob pena de, não o fazendo, já não haver tempo para
arrependimento.
Afirmava há 50 anos Sir Bertrand Russel,
perante o aumento assustador da população mundial, que a sua redução
seria inevitável e era urgente tomar medidas nesse sentido. O problema
estava na solução: é que enquanto uns apostavam no controlo da
natalidade, outros preferiam as guerras para atingir o objectivo. O
trágico é que era a opinião destes que prevalecia. Perante tantos e cada
vez mais frequentes exemplos, quase sou levado a crer que estes últimos
já acrescentaram as catástrofes "naturais" à lista das soluções
apontadas pelo filósofo inglês.
_________________________
(1) –
Dossier final da Candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial,
Câmara Municipal de Lisboa e outros, 2005.
(2) –
"Furacões fortes tornaram-se duas vezes mais frequentes em 35 anos.
Os EUA retiraram-se do protocolo de Quioto para o combate às alterações
climáticas e são um dos países que mais sentem a força dos furacões. Nos
últimos 35 anos o número de furacões diminuiu, mas os mais fortes
tornaram-se mais frequentes." Jornal Público, 16 Setembro 2005.
(3) –
Não é possível deixar de referir o caso exemplar e excepcional de
Cuba, também ela uma vítima frequente dos tufões das Caraíbas, mas onde,
ao contrário dos exemplos dados, a prevenção funciona e as consequências
do mesmo fenómeno natural são completamente diversas das dos seus
vizinhos. |