O presente trabalho mais não pretende
senão continuar a aprofundar a problemática do ambiente e da necessidade
de sua defesa. A este propósito foram mesmo já apontados casos
catastróficos ocorridos no nosso eco sistema, casos esses que embora
muitas vezes gerados por acção da natureza atingem dimensões
desproporcionadas, devido à acção do homem. Alguém negará por exemplo,
que as recentes inundações na Europa Central, no Oriente e na América
Latina, o impacto feroz e sequencial de furacões Katrina e Rita, os
desastrosos efeitos dos tufões, dos ciclones e seus ventos, os Tsumanis
gerados por terramotos subaquáticos, a venenosa poluição dos mares e
rios, o flagelo das secas, o degelo árctico e os incêndios, são em parte
assinalável, devidos à incúria dos homens, como são, a descontrolada
poluição atmosférica, as experiências nucleares subterrâneas, a
desenfreada destruição e endémico descuido no tratamento das
florestas, a incontida extracção de petróleo e gás natural, a
destruição das terras gerada pelas guerras, pelo uso de bombas, napalme e
minas? E muito mais haveria a referir. |
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E a resultante está à vista: mortes;
desaparecimento de pessoas; epidemias; habitação, bens e haveres
destruídos; colheitas desfeitas; água a minguar; terrenos de cultivo
transformados em lamaçais; mares poluídos, rios transformados em esgotos
a céu aberto e peixes mortos; a flora e a fauna desaparecidos! Quase
todos à espera que outra catástrofe ocorra, mas a afectar sempre os
outros.
Nenhuma dessas ocorrências nos parece
impressionar, continuando os responsáveis a explicar e justificar todos
os excessos, ora em nome do consumismo ora sob o signo de políticas, mas
sempre marcados pelo cunho de um endémico, quase doentio egoísmo ou
indiferença.(1)
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O meio ambiental continua a ser uma
abstracção, sem relevo, sob a
presunção de que está incondicionalmente ao serviço do homem sem
dependência de qualquer interacção e harmonização recíprocas
"homonatura". Ao que se sabe, já a Magna Carta aludia ao bem ambiental
como essencial à "sadia qualidade de vida". O equilíbrio ecológico do
ambiente é uma constante da vida, quer se trate do ambiente natural
(solo, água, ar atmosférico, flora e fauna); artificial (espaço
urbano, construções, edificações, ruas, áreas verdes, património
histórico e paisagístico); de trabalho (bem estar do
trabalhador).
O direito ao ambiente
constitui assim um direito constitucional fundamental(2).
Tem pois que ser protegido como um verdadeiro valor, um bem jurídico
merecedor de protecção legal. Neste enquadramento há porém que não
confundir as coisas. Não é à acção exclusiva das forças da natureza que
nos referimos. Em causa estão as transformações ambientais levadas a
cabo por acção do homem, sendo que a grande virtude da nossa
capacidade reactiva consiste em controlar defensivamente as
consequências nocivas daquela e eliminar os efeitos desastrosos destas.
A natureza existencial evoluiu em moldes
tais para que o homem colocasse racionalmente, isto é, por conta e
medida os seus elementos ao serviço da humanidade – toda a humanidade
– sob pena de não poder controlar as suas consequências não o fazendo,
já que os elementos da natureza também tem regras de desenvolvimento
próprias. Acaso um desastre no Mar do Norte, não poderá afectar a
produção petrolífera no Golfo do México? E as guerras com as dimensões
da ocorrida no Vietname e mais recentemente em Angola não terão tido a
virtualidade de afectar negativamente a riqueza dos seus solos e
consequentemente as produções agrícolas? São exemplos que no mínimo dão
que pensar.
Onde pois a criminalização?
Se na pureza de princípios a
racionalidade e a responsabilidade andam de mãos dadas, a verdade é
que no contexto ambiental estes dois valores assumem contornos bem mais
amplos, visto que os efeitos de um acção ou omissão podem atingir sempre
a esfera de outrem, e não necessariamente ou apenas a do seu autor. A
questão coloca-se sobremaneira quando, para uma quase descarada
inobservância e desrespeito da lei de protecção ambiental(3)
e o regime sancionatório actualmente existente, permanece desadequado
senão mesmo ineficaz para responder aos efeitos perversos ou perniciosos
a que aquelas actuações dão origem. É o caso dos incêndios ou da seca
gerados pela incúria do Executivo; de um fogo ocasionado por uma
ponta de cigarro e que incendeia casas ou ainda de detritos
lançados para um rio matando peixes – cheiros, fumos, ventos
desencontrados, aquecimento atmosférico e o equilíbrio do parque natural
e da biosfera tudo em equilíbrio instável, senão mesmo em progressiva
degeneração.
Nesta circunstância o direito ao
ambiente, enquanto bem juridicamente defensável fica sem protecção,
a contento do prevaricador que deixa de prestar contas à sociedade pela
gravidade de danos por si causados e pela consciência imprimida na
prática do acto. Estamos então no domínio de prática de um acto ou
omissão anti-social, com responsabilidade do seu autor, e punição a ter
que ser escalonada desde a contra-ordenação até ao crime consoante a
dimensão violadora do bem jurídico em causa. É aliás assim que se
procede tratando-se de outros bens jurídicos como a vida, o património,
o bom-nome, os direitos da humanidade e outros, nada justificando que
idêntico tratamento não seja também tributado ao direito ao ambiente
quando violado. Em termos de estrita criminalidade estamos face a um
crime ambiental ou crime ecológico.
A consagração expressa deste tipo
legal impunha-se a todas as luzes, face à pouca
valência do regime sancionatório do
nosso ordenamento jurídico-penal. Na verdade este não passava de uma
mera grelha de contra-ordenações ou de um quadro de tipos legais penais(4)
onde o ambiente carecia de individualidade e tratamento valorativo de
qualidade.
Em termos da dogmática jurídico-penal,
esta previsão legipunitiva devia ir mesmo mais longe no sentido de
abranger a exploração desabrida de recursos e a responsabilização
criminal dos órgãos ou representantes das pessoas colectivas(5)
sendo mesmo exigível a todos os que sendo implicados se escondem
sobre o disfarce de habilidades jurídico-formais, por interpostas
pessoas ou de justificações como é o da chamada responsabilidade
política como factor desviante de responsabilidade criminal quando
violam o bem da humanidade que é o ambiente.
O artigo 279º do Código Penal
introduzido pelo Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de Março sob a rubrica
"Poluição" revela por isso uma alteração conceitual qualitativa por
consagrar pela primeira vez o crime ecológico no nosso ordenamento
jurídico.
Não se deixa porém de reconhecer
tratar-se de uma medida legislativa tímida.(6)
Em toda esta questão há uma palavra a
dizer quanto à forma de actuação e funcionamento das nossas
instituições. Sem uma administração eficaz e uma justiça eficiente
qualquer veleidade para o exercício de autoridade não passará de uma
ilusão. Assim, e desde logo, impõe-se que a capacidade fiscalizadora da
Administração e devidamente habilitada tenha a prerrogativa de poder
actuar, através de mandado de suspensão ou de laboração preventivas até
à eliminação do dano ambiental devidamente constatado ou do cumprimento
dos condicionamentos legais exigíveis. De igual modo, impõe-se que no
sector de justiça os magistrados judiciais e do Ministério Público
estejam suficientemente preparados, senão mesmo vocacionados para o
tratamento de "casos e criminalidade ambientais", tanto no plano
administrativo como criminal. Para estes vai a recomendação para
distinguir o legalismo meramente dogmático da legalidade substancial,
aquele preponderantemente formalista, esta marcadamente vocacionada para
a defesa atempada de valores e interesses impositivos da sociedade,
juridicamente relevantes. Só assim se evitarão decisões destoantes da
realidade em que vivemos e que por vezes tanto pasmo tem causado.
O ambiente é o pressuposto da nossa
vivência. Uma existência enquanto qualidade de vida exige um ambiente
sadio. O ar que respiramos, a água que bebemos, a terra que pisamos e o
alimento de que necessitamos são elementos integrantes desse ambiente.
Respeitá-lo constitui um imperativo para todo o homem. Não respeitá-lo
dentro do que é legalmente exigido constitui um acto contra a sociedade
de que fazemos parte e como tal criminalmente censurável.
Lisboa, 30.09.2005
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(1)
– "Europa paralisada" – ensaio – Viriato Soromenho –
Marques. in. Visão 22/09/2005, pg.122.
(2)
– artigos 9º e 66º da Constituição da República.
(3)
– Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 07.04 de
Abril, alterada pelo Decreto-lei n.º 278/97 de 08.10 e pela Lei n.º
13/2002 de 19.02.
– Directivas n.º 85/337/CEE do Conselho
de 27.06 e n.º 97/ll/CE, do Conselho de 03.03 sobre o impacto ambiental,
transpostas para a ordem interna pelo Decreto-lei n.º 69/2000 de 03.05.
(4)
– As diversas previsões do Código Penal relacionadas
com o ambiente (artigos 272.º e seguintes) parecem atentar na sua defesa
apenas difusa ou indirecta e não enquanto bem jurídico.
– "Ora o passo mais ousado, e quiçá o
único expediente verdadeiramente eficaz do ambiente só terá lugar,
quando o ambiente valer por si, para além do que vale para o homem" –
Souto Moura, Adriano – “O crime de poluição – a propósito do artigo
279.º do Projecto de Reforma do Código Penal " – CEJ – ano
1994.
(5)
– Souto Moura, Adriano – ibidem.
(6)
– I) – Desde logo por conter um elemento de crime que
é impreciso. É o caso da expressão '"em medida inadmissível", que por
sua vez depende de urna outra imprecisão que é a '"contrariedade" às
prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente. Ora,
encontrar a medida dessa contrariedade, face ao conteúdo, também ele por
vezes impreciso dos regulamentos administrativos, constitui muitas vezes
um cavalo de batalha, que conduz a decisões controversas, nomeadamente a
absolvições. II) – A isto acresce que o crime na sua formulação genérica
é punível com a pena de 3 anos, este normalmente passível de ser é
geralmente punível suspensa. III) – Finalmente, ficou sem previsão
normativa o crime contra a '"Conservação da Natureza" e a consagração de
"Responsabilidade de Pessoas colectivas e equiparadas", tal como
previstas no Projecto – Souto Moura, a que acrescentaremos a
responsabilidade criminal de organismos do Estado. |