Viviam num povoado do tamanho de 16
campos de futebol, rodeados por um fosso profundo e circular. Quando a
aurora rompia, saíam das suas cabanas e iniciavam mais um dia de
trabalho árduo. O ferreiro acendia o lume e começava a preparar os
moldes que receberiam o cobre líquido e incandescente, enquanto algumas
mulheres se sentavam junto dos teares e afagavam as peças de lã. Um dia,
com as suas toscas ferramentas de pedra e metal, um artífice sacou de um
minúsculo pedaço de osso e começou a talhá-lo. Ao fim de longos minutos,
dos seus dedos hábeis, nasceu uma figura semelhante a um coelho. Com as
compridas orelhas para trás e dois buracos a delinearem os olhos.
Cinco mil anos mais tarde, os tractores
do Esporão vieram arrancar as oliveiras e remexer a terra para preparar
o plantio de uma vinha nova na Herdade dos Perdigões, em Reguengos,
Alentejo. Foi nesse dia que o pequeno coelho de osso e muitos outros
artefactos, usados por estes homens, vieram à superfície. Quando
chegaram ao terreno, chamados pelos responsáveis da Finagra (a empresa
que detém as herdades vizinhas do Esporão e dos Perdigões), os
arqueólogos da Era-Arqueologia não queriam acreditar no que viam. "Este
povoado era conhecido desde os anos 80. E, um pouco mais em baixo,
existe um cromeleque, um recinto cerimonial. Mas ninguém fazia ideia que
o local pudesse ter esta dimensão, bem visível e marcada nas fotografias
aéreas, e com esta riqueza de vestígios", diz Miguel Lago, 38 anos, que
partilha com Cidália Duarte e António Valera a responsabilidade
científica do projecto.
As obras foram travadas de imediato
pelos responsáveis da Finagra. Os primeiros trabalhos de prospecção,
realizados de emergência pela Era-Arqueologia, mostraram que o sítio
possuía informação única sobre uma comunidade pré-histórica do
Calcolítico e que esses dados não se podiam perder. E começaram a
preparar a candidatura do local a monumento nacional. "Os 12 hectares
que pertencem à Finagra já estão libertos de qualquer pressão. Restam os
outros quatro hectares, que pertencem a vários donos. Um deles já
remexeu as terras e o Instituto Português de Arqueologia (IPA) teve de
colocar uma acção em tribunal para impedir a destruição do património",
conta o cientista, que também é administrador da Era.
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O sítio arqueológico dos Perdigões fica
a pouco mais de um quilómetro de Reguengos, no Alentejo. Como a antiga
herdade foi comprada pela Finagra, parte do espólio encontrado nas
escavações foi levado para a torre do Esporão, onde foi inaugurado
um pequeno espaço museológico. Numa das salas da exposição, a
arqueóloga Cidália Duarte, de 43 anos, não esconde o seu entusiasmo:
«Na Idade do Cobre, os homens já
praticavam a domesticação dos animais e das plantas. Era uma
sociedade camponesa complexa, com rituais fúnebres que estão a ser
estudados graças aos oito túmulos da necrópole, já identificados no
exterior do povoado.»
Para esta investigadora do Instituto
Português de Arqueologia (IPA), as ossadas e os objectos encontrados nas
sepulturas vieram trazer pistas novas sobre o quotidiano destas gentes.
Numa das sepulturas, a única escavada por completo, foram retirados
ossos de 120 pessoas diferentes, 15 das quais eram
crianças. "Este era o último local de residência dos habitantes dos
Perdigões e, junto dos esqueletos, eram colocadas várias oferendas. Os
corpos não têm patologias visíveis e não sabemos porque morreram. Mas
podem ter sido vítimas de epidemias, pois isso não deixa marcas para os
arqueólogos", diz Cidália Duarte. |
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Todas as suposições sobre o modo de vida
dos antigos habitantes dos Perdigões e a sua relação com a morte são
baseadas em peças desenterradas. Os cientistas descobriram, graças ao
desgaste dos dentes estudados, que os cereais constituíam a base da
alimentação. Os cadinhos, os pesos de tear e os coadores vieram
demonstrar que estes homens se dedicavam à metalurgia, à tecelagem e que
já sabiam produzir queijos a partir do leite das cabras e das ovelhas
que criavam. Os ídolos de calcário e as conchas de vários moluscos
provam que existiam relações comerciais com a região onde actualmente se
situa Lisboa e com as populações primitivas dos estuários do Tejo e do
Sado.
As escavações no sítio dos Perdigões
ainda vão durar mais uns anos. O objectivo dos cientistas e da Finagra é
lançar um novo conceito: a arqueologia em construção. "Pretendemos
proteger a paisagem em redor e criar aqui um centro de recepção de
visitantes, com exposições e visitas guiadas. Isto permitirá conhecer o
povoado, enquanto os arqueólogos escavam. É uma forma original de aliar
o avanço da ciência com o lazer e o turismo", diz Miguel Lago. |
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