Quem
anda no mar tem sempre uma história para contar. Uma não, muitas. Eu
escolhi o Sr. Afonso, chefe de máquinas do St. André, para nos contar algo do passado, anterior ao 25 de Abril, que marca duma
forma indelével as relações de condições de trabalho, tanto mais que o S.to
André é
actualmente o único navio que se pode visitar e do qual até já
efectuámos uma breve reportagem fotográfica.
Eis como ele nos recorda o episódio.
«O
Santo André era alimentado a corrente contínua, enquanto foi da EPA,
sendo que só em 1975 ficou definitivamente em corrente alterna. A sua
construção em chapa de aço, toda ela rebitada, conferia ao arrastão uma
boa segurança, pois que a pesca entre os anos 50 e os 90 decorria
praticamente em mares de gelo. Recordo um episódio, na costa do Labrador,
onde nós e mais oito navios ficámos bloqueados no gelo, obrigando a que lá
fosse um quebra-gelos, pois mesmo com a máquina a toda a força, o navio não se
mexia. A quantidade de gelo era tal, que se tornava difícil avistar uma
pequena parcela de mar limpo; e apertava o navio cada vez mais,
tanto de bombordo como de estibordo, entrando para dentro do barco, por
cima da borda, obrigando o pessoal a tentar pô-lo para fora
com a máxima rapidez.
Os
tripulantes mais frágeis não conseguiam lidar com o medo e o pânico
devido àquilo que estava a suceder, chegando mesmo a vomitar, tal era
a aflição. Permanecemos assim toda a noite, à espera do nosso salvador
(o quebra-gelos). Quando este chegou junto de nós começou a abrir uma
esteira, tornando possível que o navio se começasse a movimentar atrás
dele. Chegados a mar limpo, todos os tripulantes se saudavam e
celebravam, com enorme alegria e satisfação.
O gelo
era um dos nossos piores inimigos.
Outra
vez, fez-nos ficar sem uma chapa na roda de proa. O mar entrava no barco
quando este baixava; quando o navio vinha para cima, toda a água saía. E
foi nestas condições que navegámos até Portugal. Aquilo que nos salvou
foi que esta zona era de um tanque de água e a porta do homem estava bem
vedada.
Pescar
no gelo e nestas condições era muito difícil, principalmente em navios
de pesca de arrasto lateral.»
Eis
outro episódio que o chefe de máquinas, o Sr. Afonso, recorda com alguma frequência.
«Era
ajudante de máquinas nos anos 1958/59, quando adoeci. Em St. John’s fui
ao Gil Eanes e o médico perguntou-me se eu comia fruta, ao que o
enfermeiro que me acompanhava lhe respondeu que eu não “vencia”, isto é,
que pertencia ao grupo de tripulantes que não tinha direito a comer
fruta. O médico alertou que o meu organismo tinha um grande défice de
vitaminas. Disse-me ele entre sorrisos: – Pois agora vai
comer uma laranja” − dando-me uma injecção no braço
−
“e amanhã vai comer uma banana”
−
que seria outra injecção.
A
pesca do bacalhau regia-se por estas leis. A alimentação não era igual
para todos. Só após o 25 de Abril as coisas se alteraram. Foi
uma vida repleta de dificuldades, angústias, medos e incertezas. A maior
de todas elas, atrevo-me a afirmar, era a incerteza do amanhã, o medo de
não voltarmos a abraçar as nossas famílias que, de tempos a tempos,
ficavam “para trás”, em terra, esperando o nosso regresso.»
E com estas evocações que nos foram fornecidas pelo amigo Afonso, antigo
chefe de máquinas, por aqui nos ficamos, esperando que estas histórias
revividas por ele vos tenham permitido dar uma ideia das dificuldades e
agruras da vida no mar.
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