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Egas Salgueiro e a Empresa de Pesca de Aveiro – As minhas memórias

Naufrágio do Santa Isabel

Santa Isabel, irmão gémeo do Santa Cristina, ambos construídos nos Estaleiros de São Jacinto, naufragou na Terra Nova.

Vou cometer aqui uma pequena inconfidência. Quando recebemos a notícia na E.P.A., recordo-me que senti um certo alívio! Porquê? Porque, uns dias antes, tínhamos recebido um telegrama de Lisboa Rádio a informar que um dos dois geradores acoplados à máquina principal tinha partido o veio. E eu já me estava a ver a «docar» o navio, para abrir um buraco no casco, retirar aquele monstro cá para fora e voltar a metê-lo no sítio após a reparação. Até porque, naquela idade, não tinha a noção do que era um naufrágio. Hoje coro de vergonha.

Ao entrevistar o meu amigo Vieira e Silva, hoje radicado no Canadá, em St. John’s, ele mesmo evita falar no assunto, apesar dos seus 80 anos, porque muitas vezes lhe vêm em sonhos imagens desse naufrágio.

Convém aqui deixar bem claro que, ao contrário do que a imprensa noticiou, não havia icebergues. Havia sim, muito gelo grosso. Quem olha para a foto do navio, que ilustra este artigo, parece impossível como o mar engole um barco com esta envergadura. Vim agora a saber que, aquando do bota-abaixo, a madrinha foi a Dra. Helena Maria Salgueiro, neta do Sr. Egas.

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Arrastão de popa Santa Isabel, construído em S. Jacinto (1965). Fotografia ilustrativa do artigo do capitão de Marinha João São Marcos, A ria de Aveiro e a pesca do Bacalhau, in: "Aveiro e o seu Distrito", nº 9, Junho de 1970. Para consulta do artigo, utilizar a hiperligação: ███

 

Passemos aos pormenores relativos ao tema desta nossa crónica. Era Comandante de uma enorme lista de tripulantes e pescadores o Sr. Capitão David Calão. Como electricista, contava com o apoio do David Pequeno, infelizmente já falecido, que tive o prazer de conhecer, como nem podia deixar de ser. Só por milagre não ficaram de luto setenta famílias de pescadores.

O drama teve lugar pelas 20 horas do dia 23 de Abril de 1971. Era noite cerrada nessas longínquas paragens da Terra Nova. Depois de um dia de faina intensa, numa altura em que toda a gente procurava recuperar as energias para a faina do dia seguinte, eis que se ouve um som surdo, proveniente de algo que batera no casco. Outra embarcação que também por ali andaria àquela hora? Mas isto não parecia muito viável, pois não havia luzes, nem se ouviam vozes. O silêncio era total. No entanto, mesmo sem nada se ver, pressentia-se que algo de muito grave se estava a passar. Os pescadores, homens experientes nestas andanças, rapidamente se deram conta de que, sem a menor dúvida, o Santa Isabel, com pouco mais de seis anos da sua existência, estava de “água-aberta”, com um rombo que lhe traçara o destino. No fundo desse mar, por vezes gelado, que já servira de túmulo a tantos e tantos pescadores portugueses, iria repousar para sempre uma das melhores unidades de pesca nacionais. E, mais do que esse barco, desapareceriam, autenticamente devorados por essas águas, todos os seus haveres pessoais, incluindo as recordações das mulheres e dos filhos, registados nas fotografias que os acompanhavam.

O navio estava carregado e preparava-se para o regresso com mais de vinte mil quintais de bacalhau. Tudo se perdeu! Apenas a vida ficara resguardada, só Deus sabendo por quanto tempo mais. Os homens do Santa Isabel, ao sabor das ondas em jangadas salva-vidas, ficaram a dever a vida ao capitão e à tripulação do Vasco d’Orey, que se excedeu na luta pelo salvamento dos seus semelhantes. Recolhidos no navio, foram vestidos com roupas novas e “lavados” com Whisky e outras bebidas fortes para se aquecerem.

São assim os homens do mar. Rudes, como sempre os temos definido, mas amigos do amigo e, acima de tudo, humanos, verdadeiros heróis desconhecidos.

Toda a tripulação do Santa Isabel foi trazida para Aveiro a bordo do Santa Mafalda.

Houve testemunhos da tripulação do Vasco d'Orey que denotaram o seu espanto, «quando olharam para uma jangada com trinta e quatro homens em cima, cuja lotação era de dezassete…», e ainda mais surpreendente, porque arriaram uma baleeira sem o bojão do fundo, o que obrigou a ter sempre um homem com trapos a tapar o buraco, em águas tão gélidas como aquelas. Mas, do mal o menos, a verdade é que toda a tripulação se salvou.

 

 

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06-04-2015