Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 28 a 34.

O Pinto da Costa

Não é o outro.

É este e não aquele que, por não ser este, não deixa de ser aquele de capinha que usa P.C. na etiqueta de identidade e, por inteiro, / 29 / se identifica com aqueles que a usam na abrangência de uma ideologia que sempre conheci como sua.

Já lá vão muitos anos que ele veio, de moliceiro ou de rabelo, não recordo bem, para o Tribunal de Aveiro onde eu então ainda Ia cavar na vinha dos clientes para colher com que fazer o mosto duma vida que procurava, tanto quanto então era possível, ser útil ao conjunto social em que estava integrado.

Desde sempre o vi metido em tudo quanto fosse de interesse intelectual como o cinema, o teatro, o jornalismo e poderia até dizer-se que, sem faltar à obrigação do ofício, era na devoção desses aspectos culturais que ele mais se sentia no cumprimento da sua tarefa vital como homem.

Mas não só.

Desde sempre o vi identificado com correntes de opinião que pouco tinham de cómodas, dada a sujeição da função pública à "ordem social estabelecida" que não era a sua, e, muito menos, ao "activo repúdio do comunismo ou outras ideias subversivas", coisa que nele não era possível embora por ventura o tivesse declarado, forçadamente, por certo com" reserva mental", em legítima defesa do seu posto de trabalho, tal como os católicos italianos foram aconselhados a fazer pelo Papa, quando Benito Mussolini, tão identificado com o Salazar, cá do sítio, os quis obrigar e obrigou a idêntica declaração, tudo isto antes daquele acordo, salvo erro de Latrão, que pôs um pouco de água benta entre a força dos Guardas Suíços da tradição Vaticana e os "carabiniere" da força do Quirinal.

Consumiu-se, principalmente, por tarefas ligadas ao Direito Criminal mas sempre se mostrou atento ao envolvimento humano de outros sectores profissionais como a advocacia, conquistando naturais simpatias, não porque abrisse muito a boca em sorrisos de mostrar dentes que então tinha, mas por natural tendência de comunicabilidade.

Mas era um pouco diferente dos colegas de função a quem, por / 30 / velha praxe sempre mais ou menos respeitada nesse tempo, os Advogados da Comarca, na altura longe de, em número, atingirem o colectivo de enxame, costumavam ofertar a cada um e pelo Natal, uma qualquer garrafita de Porto ou de Bairrada.

Pois, ao Pinto da Costa, apesar dele não ser abstémio de tais sangues de Cristo, eu costumava oferecer um livro que talvez nem sempre tenha produzido a agradável sensação de acolhimento desejado.

Mas não quero, acerca deste plurifacetado P.C., deixar de contar o meu perigoso atrevimento de então quando o Tribunal era porto de minhas frequentes visitas de trabalho ou simples busca de encontros de camaradagem ou amizade.

Quando eu entrava na Secretaria, esse desconfortável corredor largo com "paredes divisórias de vidro com buracos" para as escorrências verbais ou passagens de autos, ao tempo de papéis brancos e azuis, e não via o Pinto da Costa, logo berrava com o meu vozeirão de Adamastor jurídico:

O P.C. não está?

E logo os mais medrosos se borravam pelas calças abaixo, com medo de algum colaborador da P.I.D.E. que por lá andasse infiltrado e fosse avisar o "recebedor" das Informações, daquele desplante de, alto e bom som, alguém perguntar pelas duas letras demoníacas do emblema do Álvaro Cunhal.

Quem? Quem? Quem?

Pois quem havia de ser? O Pinto da Costa que tem P. e C. como letras capitulares, já que não usa o nobiliárquico A de Alvarenga, que também orna o seu brasão do Arquivo de Identificação!

A partir de certa altura habituaram-se mas a cena, quando repetida, continuava a causar arrepios a quem, do público, acorria ao Tribunal.

Por mera coincidência negativa nunca por lá apareceu a pedir / 31 / certificado de registo criminal ou coisa parecida, um Zé Sachetti, um Porto Duarte, um Abílio Pires, um Barbieri Cardoso, um Rosa Casaco!

Estou a ver o que sucederia com esses "fundamentalistas" a ouvirem, num templo da Justiça, o eco dessas letras de perdição que só queriam dizer o que diziam e tão só era Pura Camaradagem.

Os tempos rolaram céleres e chegada, usando as palavras de Eça, a "hora geba do reumatismo", eis o Pinto da Costa, disfarçado de "Pintos das Costas", de vária origem, a dedicar-se à adubação semanal daqueles canteiros que o LITORAL lhe abre, com evidente benefício e alegria dos leitores que, não sendo de mais, têm, ultimamente, uma frescura de idades que não pode deixar de beneficamente contagiar quem por lá derrama os efeitos das suas inspirações ou... intenções.

Seja o Pinto da Costa, propriamente dito, seja o Zé Respigos, o Prisioneiro, o Joalpico, o Jotapêcê, todos pessoas distintas numa só verdadeira, sempre levam marcadas as dedadas daquele transmontano de Mesão Frio, tornado apaixonado das terras e águas salgadas de Aveiro, onde lançou raízes e escolheu até, para viver, uma torre donde pode ver os altos distantes do Marão pátrio, os mais próximos da Estrela da conjunção, sem ter de partir os espelhos milagrosos de luz que são as Marinhas.

Cada manhã lá aparece, abraçado a toneladas de papel de jornal que consegue ler ou, pelo menos, farejar, na constante busca que a sua sensibilidade incita, em esperança de encontrar uma poesia, uma crónica, uma fotografia ou um desenho que vá alimentando a apetência, sempre crescente, do catador de pretextos que ele é, para os belos folhetins da sua lavra no jornal que foi do David Cristo.

E lá, no Café, num dos cantos da nossa pluralística escolha, trocamos impressões sobre temas próprios ou colhidos de leituras recentes, agora e logo repartidas com outros amigos, igualmente interessados nesta convivência social sem arrebiques de moda ou elegâncias / 32 / de dandismo, tão só como corrupio "à vara larga" por esta lezíria de ilusões e desilusões que a vida nacional é, agora sem valas de censura a impedir o galope da liberdade do pensamento e das acções.

O Pinto da Costa, homem de capinha inteira, para além de produto acabado de uma vertebração ideológica com a qual me não identifico mas que muito tem de comum com os objectivos daquela que abraço, também sempre se mostra influenciado por duas presenças aveirenses, ícones do nosso nicho ou arca de saudades, e que são as do Mário Sacramento e do João Sarabando, aquela sublimada em altura e esta emparceirada numa camaradagem que não desvalorizava, em nada, o muito amor que ambos tinham pelo povo e pelas suas tradições e ensinamentos.

Eu gostaria de deixar aqui uma ou várias pinceladas da personalidade artística do Pinto da Costa, esse homem de capinha que sempre a conseguiu honrar e fazer esvoaçar a ponto de largos serem os voos, por vários céus, que sem deixarem de ser, sempre, os do homem, nunca foram impeditivos da Liberdade do voo de outros homens, para o tal "mundo melhor" do Mário Sacramento.

Mas seria difícil, por deslocado.

E é como "liberdade poética" que vou à poesia, arte em que o P.C. do Pinto da Costa, se mostra valioso, embora já com o bolor de um tempo em que era preciso disfarçar para mostrar e por vezes tapar, para se descobrir.

É de 1959 esta poesia de Pinto da Costa publicada na "COMPANHA" com o título de "Peixe Cego", dedicada ao Cláudio Torres:

«Esta é a viagem sem fim e sem começo,
Neste mar imenso em que principio,
Esta é a viagem sem meta e sem regresso,
Sem bússola, sem rota e sem navio...

/ 33 /

− Esta é a viagem em que um peixe cego
Alcança finalmente a foz do rio...


Mas há uma outra, de trinta e um ano depois, em que também há peixes a buscar a foz dum rio de seu destino, mas já com liberdade para a alcançar. Esta é minha, muito minha e dela sou cioso mas não tanto que consiga resistir à vaidade de a mostrar e dizer acompanhada da dedicatória que em 1 de Setembro de 1990 a acompanhava: "A M. da Costa e Melo, inédito e sem cópia, no seu 77º aniversário com toda a estima e camaradagem do Pinto da Costa − 1/ 9/1990".

Já lá vão 10 anos e é com medo de a perder, no tombo das minhas saudades, que a deixo aqui, sobretudo orgulhoso pela amizade que já existia mas que desde então se cimentou nos cantinhos do nosso café da manhã, à sombra da para nós inutilidade do Palácio da Justiça:

"Sol pela Vidraça
E vinham os salmões desovar no rio
Com o peso da viagem entre os olhos,
e traziam molhadas de esperança,
outras rotas ainda por fazer...


Na superfície como primaveras,
fendiam os caminhos da poesia
e quebravam seus versos contra o fundo,
assim numa pilastra de cristal...


Quando os olhos de negro se pintavam
é que o rio se tornava navegável
e subiam os braços como eles,
até se perderem na nascente!..."


/ 34 / E é olhando para trás, para a primeira série destes fogachos da lareira forense, onde figuram o João Vale, o António Pinho pela mão do Júlio Calixto, o Abranches Ferrão, o António Ribeiro da Silva, o João Brito Câmara e o Zé Godinho, gente de beca, toga e poesia, que eu trago o Pinto da Costa para a todos eles acrescentar a possibilidade das rimas poderem vir escondidas nas pregas modestas de qualquer capinha.

 

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