Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 34 a 37.

O António Pinheiro de Melo - O Melo

Sempre que o vejo ou nele penso me vem à memória o Junqueiro, o do "Melro", e logo me vejo amarrado às suas palavras que sempre enfeitiçaram a minha sensibilidade poética.

"O Melro, eu conheci-o.
Era negro, vibrante e luzidio"


O melro cumpria os seus deveres pelos silvados do Padre Cura, através da sua brilhante plumagem negra e trinados melodiosos emitidos pelo bico amarelo do tenor que era.

O Melo fazia outro tanto, nem sempre com o negro emblemático da capinha mas, porque não era de bico amarelo, usava a voz tonitruante que de secretária em secretária, de teia em teia, ia misturando a sua competência profissional com o sal das suas pilhérias de que até os Juízes gozavam os efeitos hilariantes quando nelas se não viam retratados.

/ 35 / Ouvia-se, e eu ouvi-o, muitas vezes nos recôncavos do velho Tribunal de Águeda, na já moderna Casa da Justiça, de Aveiro e até quando passava em Travassô a caminho da Mourisca natal, nos ecos das suas trombetas que até fizeram, segundo se dizia, com que os pimpões da Pateira de Fermentelos emigrassem para mais calmas paragens onde pudessem antegozar o sonho de virem a ser pitéus de categoria, de parceria com achigãs, enguias e barbos daquelas doces águas, benzidas anualmente pela Senhora da Saúde, com côngrua pela fé venezuelana de emigrantes em alta, ou pela dos Santos Mártires, de Marrocos ou de Travassô, como queiram.

O Melo, eu conheci-o!

Era certo e sabido ser figura de proa em qualquer festança de despedida a Juiz ou quejando Magistrado e sabia sempre perder, com dignidade, a compostura reverenciaI quando, chegada a hora das libações, recitava versos ou dizia prosas de sua autoria alusivas a maleitas judiciais de alguns dos homenageados.

Fazia-o, sempre, com fino espírito, embora fosse capaz de emoldurar com rosas os cardos de algumas becas cujas pregas, costuras e rasgões conhecia por fora, sempre, e por dentro, algumas vezes...

Um dia tentei confessá-lo, ao abrigo daquela amizade que sempre nos uniu, e consegui dele algumas "estórias" que não fujo à tentação de aqui contar, ainda que com aquela conta, peso e medida como se fosse fino cendal que as partes cubra, as partes que a cobrir natura ensina, como disse o Épico.

E elas aí vão:

O mui Ilustre Juiz e Corregedor José Maria Bravo Serra, tinha ilustrado, até ao zénite, o sempre difícil Tribunal da Comarca da Anadia desses tempos. E tanto e tão bem o fez que, apesar de não ser fiel de Baco, nem pouco mais ou menos, recebia com regularidade, de um amigo, garrafões de bom Bairrada.

O seu Gabinete era posto de observação privilegiado e não lhe era estranha a presença, num dos bancos que havia no Largo / 36 / fronteiro, de um tal "Arrasta", mutilado da 1ª Grande Guerra e que andava com uma perna a arrastar e que, em dada altura, juntamente com dois ou três da mesma condição passou a usufruir do Bairrada do Bravo Serra. Era o próprio Juiz que os chamava ou mandava chamar para uma "copaneira", como ele dizia.

Quando os beneficiários do garrafão calculavam ter chegado nova remessa, mostravam-se no banco fronteiro à espera da citação.

E era o Melo ou outro, dos da capinha que se encontrasse no Gabinete, quem ouvia o gozo das suas palavras ao ver o "Arrasta", quase a correr sem se lembrar que a perna era de arrastar:

− Olha o F... da p... como corre!

frase que sempre acompanhava com as suas tonitruantes gargalhadas de... gozador impenitente.

 

De outra vez, contou-me o Melo que para certas coisas tinha bem amarelo o bico, aconteceu esta no Tribunal de Vagos onde estava como Juiz "de fora" por ser julgado Municipal, ao tempo, o Doutor Barata dos Santos, muito temente a Deus e aos bons costumes e que não se contentava com sê-lo já que sempre tudo fazia para parecê-lo.

Intervinha o Dr. Manuel das Neves, ilustre Advogado do foro de Aveiro, já um pouco duro de ouvido, principalmente quando essa falha beneficiava os seus clientes.

Era um caso de "reais" onde se discutia um caminho, público ou privado, e era preciso esclarecer se, na época das sementeiras e colheitas, o milho, os feijões ou os nabos lá cresciam muito e chegavam a impedir a passagem dos burros.

A testemunha, uma mulher sem papas na língua, lá foi explicando e perante a insistência, um pouco surda, do Manuel das Neves, e depois de ver que ele não compreendera as palavras que havia dito, largou esta que fez corar, só de pensá-la, os pescadores da Vagueira:  / 37 /

− Sabe que mais, senhor Doutor, os feijões cresciam tão pouco que nem chegavam aos... do burro!

O Manuel das Neves, perante a gargalhada corada do Juiz e do Escrivão, que era o Melo, só conseguiu perceber o que a testemunha dissera, através da rima com os feijões do caminho.

 

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