Sempre que o vejo ou nele
penso me vem à memória o Junqueiro, o do "Melro", e logo me vejo
amarrado às suas palavras que sempre enfeitiçaram a minha sensibilidade
poética.
"O Melro, eu conheci-o.
Era negro, vibrante e luzidio"
O melro cumpria os seus deveres pelos silvados do Padre Cura, através da
sua brilhante plumagem negra e trinados melodiosos emitidos pelo bico
amarelo do tenor que era.
O Melo fazia outro tanto,
nem sempre com o negro emblemático da capinha mas, porque não era de
bico amarelo, usava a voz tonitruante que de secretária em secretária,
de teia em teia, ia misturando a sua competência profissional com o sal
das suas pilhérias de que até os Juízes gozavam os efeitos hilariantes
quando nelas se não viam retratados.
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Ouvia-se, e eu ouvi-o, muitas vezes nos recôncavos do velho Tribunal de
Águeda, na já moderna Casa da Justiça, de Aveiro e até quando passava em
Travassô a caminho da Mourisca natal, nos ecos das suas trombetas que
até fizeram, segundo se dizia, com que os pimpões da Pateira de
Fermentelos emigrassem para mais calmas paragens onde pudessem antegozar
o sonho de virem a ser pitéus de categoria, de parceria com achigãs,
enguias e barbos daquelas doces águas, benzidas anualmente pela Senhora
da Saúde, com côngrua pela fé venezuelana de emigrantes em alta, ou pela
dos Santos Mártires, de Marrocos ou de Travassô, como queiram.
O Melo, eu conheci-o!
Era certo e sabido ser
figura de proa em qualquer festança de despedida a Juiz ou quejando
Magistrado e sabia sempre perder, com dignidade, a compostura
reverenciaI quando, chegada a hora das libações, recitava versos ou
dizia prosas de sua autoria alusivas a maleitas judiciais de alguns dos
homenageados.
Fazia-o, sempre, com fino
espírito, embora fosse capaz de emoldurar com rosas os cardos de algumas
becas cujas pregas, costuras e rasgões conhecia por fora, sempre, e por
dentro, algumas vezes...
Um dia tentei confessá-lo,
ao abrigo daquela amizade que sempre nos uniu, e consegui dele algumas
"estórias" que não fujo à tentação de aqui contar, ainda que com aquela
conta, peso e medida como se fosse fino cendal que as partes cubra, as
partes que a cobrir natura ensina, como disse o Épico.
E elas aí vão:
O mui Ilustre Juiz e
Corregedor
José Maria Bravo Serra,
tinha ilustrado, até ao zénite, o sempre difícil Tribunal da Comarca da
Anadia desses tempos. E tanto e tão bem o fez que, apesar de não ser
fiel de Baco, nem pouco mais ou menos, recebia com regularidade, de um
amigo, garrafões de bom Bairrada.
O seu Gabinete era posto de
observação privilegiado e não lhe era estranha a presença, num dos
bancos que havia no Largo
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fronteiro, de um tal "Arrasta", mutilado da 1ª Grande Guerra e que
andava com uma perna a arrastar e que, em dada altura, juntamente com
dois ou três da mesma condição passou a usufruir do Bairrada do Bravo
Serra. Era o próprio Juiz que os chamava ou mandava chamar para uma
"copaneira", como ele dizia.
Quando os beneficiários do
garrafão calculavam ter chegado nova remessa, mostravam-se no banco
fronteiro à espera da citação.
E era o Melo ou outro, dos
da capinha que se encontrasse no Gabinete, quem ouvia o gozo das suas
palavras ao ver o "Arrasta", quase a correr sem se lembrar que a perna
era de arrastar:
− Olha o F... da p... como
corre!
frase que sempre acompanhava
com as suas tonitruantes gargalhadas de... gozador impenitente.
De outra vez, contou-me o
Melo que para certas coisas tinha bem amarelo o bico, aconteceu esta no
Tribunal de Vagos onde estava como Juiz "de fora" por ser julgado
Municipal, ao tempo, o
Doutor Barata dos Santos,
muito temente a Deus e aos bons costumes e que não se contentava com
sê-lo já que sempre tudo fazia para parecê-lo.
Intervinha o
Dr. Manuel das
Neves, ilustre Advogado do foro de Aveiro, já um pouco duro de ouvido,
principalmente quando essa falha beneficiava os seus clientes.
Era um caso de "reais" onde
se discutia um caminho, público ou privado, e era preciso esclarecer se,
na época das sementeiras e colheitas, o milho, os feijões ou os nabos lá
cresciam muito e chegavam a impedir a passagem dos burros.
A testemunha, uma mulher sem
papas na língua, lá foi explicando e perante a insistência, um pouco
surda, do Manuel das Neves, e depois de ver que ele não compreendera as
palavras que havia dito, largou esta que fez corar, só de pensá-la, os
pescadores da Vagueira:
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− Sabe que mais, senhor
Doutor, os feijões cresciam tão pouco que nem chegavam aos... do burro!
O
Manuel das Neves,
perante a gargalhada corada do Juiz e do Escrivão, que era o Melo, só
conseguiu perceber o que a testemunha dissera, através da rima com os
feijões do caminho. |