Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 41 a 46.

O Rocha Saraiva

Não é fácil deixar de agradecer ao Destino a felicidade de ter encontrado, num qualquer caminho escolar ou simplesmente humano, um homem da craveira deste Professor, baixo e quase negro de figura, mas por demais grande de estatura mental e moral que a todos se impunha sem nunca pretender esmagar quem quer que fosse.

De seu nome ALBERTO DA CUNHA ROCHA SARAIVA, foi meu Professor de Direito Constitucional na velha sala dos espelhos na Faculdade de Direito do Campo de Santa na, mas ainda hoje, abandonadas as lides para que me preparou, sinto a sua presença em toda a minha formação mental democrática, pluralista e tolerante.

Mesmo quando, catedrático, subia os dois degraus do estrado onde estava implantada a cátedra e a sua figura se reflectia no espelho quilométrico da parede do fundo, cujos dourados contrastavam com" a parede lateral da enorme sala, forrada a papel de jornais velhos, ele se sentia e nós o víamos na majestade da sua postura de homem superior.

Nas aulas dele havia, como que um calor humano que tudo tornava aberto e acessível, fosse o germinar da amizade entre colegas de curso, fosse a marcha, por vezes penosa, pelas veredas do pensamento jurídico e por aquela Constituição que ele teimava em mostrar / 42 / apesar de escondida pelo negrume saído da Revolução de Maio, já mascarada pelos lábios do aprendiz de ditador que começava a escolher os atacadores para as botas da sua teimosia aldeã e obstinada.

Rocha Saraiva era um pedagogo que parecia não ensinar mas junto de quem todos aprendiam a amar o que ele queria que aprendessem. Não ditava frases nem impunha conceitos. Despertando interesses, fazia com que o curso o acompanhasse sem esforço, o seguisse com a naturalidade de quem é atraído pela luz que brilha sem ofuscar. Essa luz brilhava na noite que se sentia não tardar a envolver-nos, cada vez mais, a todos os que queriam ver claro e livremente.

Parece que estou a vê-lo, aparentemente austero mas com os olhos pequenos a brilhar de alegria, quando eu, na sua aula e no desempenho de missão para que fora escolhido ou me oferecera em devoção de tarefa, pulei para cima de uma carteira e comecei o meu contraponto com o Mestre, a desafiar os colegas que haviam" furado a greve", para que se juntassem a nós na luta que, ao fim e ao cabo, era de oposição a Salazar, o "sacristão das finanças" como então lhe chamávamos, luta que surgira sob um pretexto qualquer.

Ele mandava-me calar, continuava a prelecção e eu falava, indiferente, arvorando uma valentia que talvez não tivesse.

Eu sabia que ele, o Mestre, pensava como eu.

Ao pronunciar os nomes de León Duguit e de Hauriou, ele sentia-os como faróis de liberdade e Democracia e, ao ensinar 1911, negava antecipadamente 1933, embora sonhasse com 1976!

Não era grande a minha heroicidade.

É que eu tinha, então e ali, por adversário um Camarada, por inimigo um Amigo, por negação uma Afirmação.

Deixado passar aquele primeiro impacto de irreverência e de atrevimento do garotelho que enfrentava o Mestre e, marcado por este, o mínimo de decoro catedrático que se impunha, lá vieram as palavras procuradas e bem vindas: / 43 /

− Senhores! Não posso continuar a aula devido à perturbação do seu funcionamento. Podem sair!

Até se esquecera o bom do Rocha Saraiva, de me ter posto na rua, a mim que irreverentemente o perturbava, antes de se dar por vencido, ele que fora o grande, o único vencedor.

E ficámos amigos e tanto que ainda hoje não passo pela Rua Actor Taborda, onde ele vivia, ou pelo Restaurante Clementina, onde ele comia, sem sentir um acelerar de coração em aleluia pela sua memória.

O que dele vou contar, são fogaréus simples da sua luz, mas daqueles que pela vida fora marcam mais o nossa rota que a das vergastas de altos e potentes faróis de costa pedregosa e juncada de leixões traiçoeiros.

Estou a vê-lo nas aulas práticas da tarde, a passear por entre as cadeiras da nossa sala e a perguntar a este ou àquele, com a maior simplicidade, o que na véspera ou mesmo na aula da manhã havia ensinado.

Nunca pretendia descobrir o que cada um de nós ignorava, mas tão só ou principalmente, para não criar complexos de inferioridade, o que nós sabíamos e, sobretudo, o que tínhamos compreendido do que nos havia dito.

Dava, muitas vezes, errada sensação de ser superficial e não entrar no âmago das questões que aflorava, sempre, de forma a que todos sentissem que a porta larga dos seus conhecimentos estava aberta, de par em par, para que por ela pudéssemos entrar à vontade.

Assim foi uma tarde quando, em nível igualado com o dos discípulos, abolido que fora o degrau do estrado da cátedra, perguntou, a um de nós, uma qualquer coisa, muito simples.
O colega não havia forma de encontrar a resposta adequada, apesar da clareza da pergunta e das ajudas do Professor.
/ 44 /

A paciência deste nunca se esgotava mas, daquela vez e dada a simplicidade da pergunta, foi-se mirrando até que, sem grande azedume mas sem de todo poder esconder uma certa impaciência, desabafou:

− O Senhor donde é?

Ele, que nunca nos tratava com tal cerimónia, ouviu, de seguida, esta perigosa resposta:

− Eu sou da Lourinhã, Senhor Professor!

O Rocha Saraiva sorriu, quase imperceptivelmente, e deixando para trás um tal aluno, foi" resmungando" a caminho da cátedra: − Cá me estava a parecer! Cá me estava a parecer!

Mas o pobre e simpático colega não ficou amesquinhado e até sorriu, quase triunfante, por ter conseguido responder certo à derradeira pergunta daquele Santo Mestre da terra de Bandarra.

De outra vez − e esta foi-me contada por quem directamente a presenciou, na Sala dos Professores... − e mete, para além do nosso querido Mestre, um outro bem ilustre, da mesma zona do Direito mas dos antípodas ideológicos do Rocha Saraiva.

Tratava-se de Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar até ao 25 de Abril e que, para além das suas, sem dúvida, grandes qualidade de Mestre de Direito, tinha um sentido de rigor que em muito espezinhava razões de humanidade compreensível.

A cena teve como vítima e beneficiado um Padre simpático, de nome Costa Nunes, muito mais velho que nós e que, precisamente por isso e dadas as suas absorventes tarefas espirituais, frequentou durante vários anos a Faculdade, nem sempre conseguindo resultados favoráveis.

Ainda o tive como Colega em um ou dois anos lectivos e não raro o vejo na fotografia de grupo duma das reuniões de curso, nas escadarias ao Palácio Nacional de Sintra, ao lado de várias saudades como o Andrade Borges, o Pinto Gonçalves, o José Roberto, o Jaime Rua, o Braz Teixeira, o Lopes Dias, o Júlio Vilela e o Abreu / 45 / Monteiro e de alguns que ainda por cá andam como o Vitorino de Almeida, o Vasco Homem de Melo e o Machado Pereira.

Tinha o Costa Nunes acabado o acto final da licenciatura em Ciências Jurídicas em que não tinha sido brilhante. Bem pelo contrário, haviam sido muitas as deficiência, mas... era o derradeiro acto, aquele que satisfaria a vaidade de um título e daria a chave de várias portas.

Logo entre os Professores, em Conselho, se extremaram os campos: o da compreensão bondosa, do Rocha Saraiva, como não podia deixar de ser, e que, apesar de ateu confesso, olhava com certa e humana simpatia o Padre que aluno era também; e do outro lado, o do rigor cego de Marcelo Caetano, católico praticante, mas inflexível na aplicação dos parâmetros de avaliação do examinado.

E é então que entre os dois se trava este diálogo de contrários, quase paradoxal, por demais curioso para que deva ser excluído dessa alta lareira forense, filtro das outras nas quais e das quais viveram as gentes de toga e beca do mundo.

Dizia o Rocha Saraiva, transformado em hissope de água benta:

− Este homem tem um curso de teologia, frequentou as aulas e chegou até ao quinto ano e, por vaidade ou não, pretende um diploma. Porque lhe haveremos de o negar?

A que o Marcelo Caetano respondia, espartilhado em todo o seu rigor:

− Mas ele não mostrou merecer a aprovação final e, por isso, não deverá passar!

E é então que o Rocha Saraiva, bondoso como era e por certo sem esquecer que as suas vestes académicas, para além do capelo tinham a "borla", largou esta sublime lufada de compreensão:

− Oiça, professor Marcelo. Todo o aluno que vem às aulas e, depois, a exame, traz dentro de si, pelo menos 10 valores. O mérito está no examinador ser ou não capaz de os tirar cá para fora. / 46 /

Creio bem que da tirada do Mestre de Trancoso voou a pomba de uma qualquer Santíssima Trindade que com as asas emprestadas pelo ateu, deu ao Sacerdote a virtude de voar!

Mas não era só a espalhar bondade e compreensão que muitas vezes adoçava os féis do Gaston Geze, do Hauriou ou do Duguit, era também como Cidadão que conscientemente pisava terrenos resvaladiços como eram os do tempo.

Vi-o na rua com Barbosa de Magalhães, estudantes e povo, a caminho do Cemitério dos Prazeres, em romagem ao túmulo de Magalhães Lima. A repressão fascista começava, já, a apertar as malhas, embora sem aquela ciência aprendida mais tarde nas escolas nazis de Himmler e quejandos. Pouco depois já o cilindro ensaiava novos esmagamentos e Barbosa de Magalhães era afastado da Cátedra que soubera brilhantemente conquistar.

Mas em Rocha Saraiva não se tocou.

Não seria possível apesar de toda a sua coerência oposicionista.

Dizia-se que Sal azar, bem no fundo da sua manhosice aldeã, tinha por ele um grande respeito e temia, apesar de tudo quanto podia, praticar a iniquidade do seu afastamento compulsivo. Havia de tê-lo por alguém, fora da sua teia!

Este Rocha Saraiva é dos tais, dos raros, que sabe bem recordar e oferecer, aos que nos leiam, como acha do melhor sobro para a lareira da saudade.

 

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