Não é fácil deixar de agradecer ao Destino a felicidade de ter
encontrado, num qualquer caminho escolar ou simplesmente humano, um
homem da craveira deste Professor, baixo e quase negro de figura, mas
por demais grande de estatura mental e moral que a todos se impunha sem
nunca pretender esmagar quem quer que fosse.
De seu nome ALBERTO DA CUNHA ROCHA SARAIVA, foi meu Professor de Direito
Constitucional na velha sala dos espelhos na Faculdade de Direito do
Campo de Santa na, mas ainda hoje, abandonadas as lides para que me
preparou, sinto a sua presença em toda a minha formação mental
democrática, pluralista e tolerante.
Mesmo quando, catedrático, subia os dois degraus do estrado onde estava
implantada a cátedra e a sua figura se reflectia no espelho quilométrico
da parede do fundo, cujos dourados contrastavam com" a parede lateral da
enorme sala, forrada a papel de jornais velhos, ele se sentia e nós o
víamos na majestade da sua postura de homem superior.
Nas aulas dele havia, como que um calor humano que tudo tornava aberto e
acessível, fosse o germinar da amizade entre colegas de curso, fosse a
marcha, por vezes penosa, pelas veredas do pensamento jurídico e por
aquela Constituição que ele teimava em mostrar
/ 42 / apesar de escondida pelo negrume saído da Revolução de Maio, já
mascarada pelos lábios do aprendiz de ditador que começava a escolher os
atacadores para as botas da sua teimosia aldeã e obstinada.
Rocha Saraiva era um pedagogo que parecia não ensinar mas junto de quem
todos aprendiam a amar o que ele queria que aprendessem. Não ditava
frases nem impunha conceitos. Despertando interesses, fazia com que o
curso o acompanhasse sem esforço, o seguisse com a naturalidade de quem
é atraído pela luz que brilha sem ofuscar. Essa luz brilhava na noite
que se sentia não tardar a envolver-nos, cada vez mais, a todos os que
queriam ver claro e livremente.
Parece que estou a vê-lo, aparentemente austero mas com os olhos
pequenos a brilhar de alegria, quando eu, na sua aula e no desempenho de
missão para que fora escolhido ou me oferecera em devoção de tarefa,
pulei para cima de uma carteira e comecei o meu contraponto com o
Mestre, a desafiar os colegas que haviam" furado a greve", para que se
juntassem a nós na luta que, ao fim e ao cabo, era de oposição a
Salazar, o "sacristão das finanças" como então lhe chamávamos, luta que
surgira sob um pretexto qualquer.
Ele mandava-me calar, continuava a prelecção e eu falava, indiferente, arvorando uma valentia que talvez não tivesse.
Eu sabia que ele, o Mestre, pensava como eu.
Ao pronunciar os nomes de
León Duguit e de
Hauriou, ele sentia-os como
faróis de liberdade e Democracia e, ao ensinar 1911, negava
antecipadamente 1933, embora sonhasse com 1976!
Não era grande a minha heroicidade.
É que eu tinha, então e ali, por adversário um Camarada, por
inimigo um Amigo, por negação uma Afirmação.
Deixado passar aquele primeiro impacto de irreverência e de atrevimento
do garotelho que enfrentava o Mestre e, marcado por este, o mínimo de
decoro catedrático que se impunha, lá vieram as palavras procuradas e
bem vindas:
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− Senhores! Não posso continuar a aula devido à perturbação do seu funcionamento. Podem sair!
Até se esquecera o bom do Rocha Saraiva, de me ter posto na rua, a mim
que irreverentemente o perturbava, antes de se dar por vencido, ele que
fora o grande, o único vencedor.
E ficámos amigos e tanto que ainda hoje não passo pela Rua Actor
Taborda, onde ele vivia, ou pelo Restaurante Clementina, onde ele comia,
sem sentir um acelerar de coração em aleluia pela sua memória.
O que dele vou contar, são fogaréus simples da sua luz, mas daqueles que
pela vida fora marcam mais o nossa rota que a das vergastas de altos e
potentes faróis de costa pedregosa e juncada de leixões traiçoeiros.
Estou a vê-lo nas aulas práticas da tarde, a passear por entre as
cadeiras da nossa sala e a perguntar a este ou àquele, com a maior
simplicidade, o que na véspera ou mesmo na aula da manhã havia ensinado.
Nunca pretendia descobrir o que cada um de nós ignorava, mas tão só ou
principalmente, para não criar complexos de inferioridade, o que nós
sabíamos e, sobretudo, o que tínhamos compreendido do que nos havia
dito.
Dava, muitas vezes, errada sensação de ser superficial e não entrar no
âmago das questões que aflorava, sempre, de forma a que todos sentissem
que a porta larga dos seus conhecimentos estava aberta, de par em par,
para que por ela pudéssemos entrar à vontade.
Assim foi uma tarde quando, em nível igualado com o dos discípulos,
abolido que fora o degrau do estrado da cátedra, perguntou, a um de nós,
uma qualquer coisa, muito simples.
O colega não havia forma de encontrar a resposta adequada, apesar da
clareza da pergunta e das ajudas do Professor.
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A paciência deste nunca se esgotava mas, daquela vez e dada a
simplicidade da pergunta, foi-se mirrando até que, sem grande azedume
mas sem de todo poder esconder uma certa impaciência, desabafou:
− O Senhor donde é?
Ele, que nunca nos tratava com tal cerimónia, ouviu, de seguida, esta perigosa resposta:
− Eu sou da Lourinhã, Senhor Professor!
O Rocha Saraiva sorriu, quase imperceptivelmente, e deixando para trás um tal aluno, foi" resmungando" a caminho da cátedra:
− Cá
me estava a parecer! Cá me estava a parecer!
Mas o pobre e simpático colega não ficou amesquinhado e até
sorriu, quase triunfante, por ter conseguido responder certo à
derradeira pergunta daquele Santo Mestre da terra de Bandarra.
De outra vez − e esta foi-me contada por quem directamente a presenciou,
na Sala dos Professores... − e mete, para além do nosso querido Mestre,
um outro bem ilustre, da mesma zona do Direito mas dos antípodas
ideológicos do Rocha Saraiva.
Tratava-se de Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar até ao 25 de Abril
e que, para além das suas, sem dúvida, grandes qualidade de Mestre de
Direito, tinha um sentido de rigor que em muito espezinhava razões de
humanidade compreensível.
A cena teve como vítima e
beneficiado um Padre simpático, de nome
Costa Nunes,
muito mais velho que nós e que, precisamente por isso e dadas as suas
absorventes tarefas espirituais, frequentou durante vários anos a
Faculdade, nem sempre conseguindo resultados favoráveis.
Ainda o tive como Colega em
um ou dois anos lectivos e não raro o vejo na fotografia de grupo duma
das reuniões de curso, nas escadarias ao Palácio Nacional de Sintra, ao
lado de várias saudades como o
Andrade Borges,
o
Pinto Gonçalves,
o
José Roberto,
o
Jaime Rua,
o
Braz Teixeira,
o
Lopes Dias,
o
Júlio Vilela
e o
Abreu
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Monteiro
e de alguns que ainda por cá andam como o
Vitorino de Almeida,
o Vasco Homem de Melo
e o Machado Pereira.
Tinha o Costa Nunes acabado o acto final da licenciatura em Ciências
Jurídicas em que não tinha sido brilhante. Bem pelo contrário, haviam
sido muitas as deficiência, mas... era o derradeiro acto, aquele que
satisfaria a vaidade de um título e daria a chave de várias portas.
Logo entre os Professores,
em Conselho, se extremaram os campos: o da compreensão bondosa, do Rocha
Saraiva, como não podia deixar de ser, e que, apesar de ateu confesso,
olhava com certa e humana simpatia o Padre que aluno era também; e do
outro lado, o do rigor cego de
Marcelo Caetano,
católico praticante, mas inflexível na aplicação dos parâmetros de
avaliação do examinado.
E é então que entre os dois se trava este diálogo de contrários, quase
paradoxal, por demais curioso para que deva ser excluído dessa alta
lareira forense, filtro das outras nas quais e das quais viveram as
gentes de toga e beca do mundo.
Dizia o Rocha Saraiva, transformado em hissope de água benta:
− Este homem tem um curso de teologia, frequentou as
aulas e chegou até ao quinto ano e, por vaidade ou não, pretende um
diploma. Porque lhe haveremos de o negar?
A que o Marcelo Caetano respondia, espartilhado em todo o
seu rigor:
− Mas ele não mostrou merecer a aprovação final e, por isso,
não deverá passar!
E é então que o Rocha Saraiva, bondoso como era e por certo sem esquecer
que as suas vestes académicas, para além do capelo tinham a "borla",
largou esta sublime lufada de compreensão:
− Oiça, professor Marcelo. Todo o aluno que vem às aulas e, depois, a
exame, traz dentro de si, pelo menos 10 valores. O mérito está no
examinador ser ou não capaz de os tirar cá para fora.
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Creio bem que da tirada do Mestre de Trancoso voou a pomba de uma
qualquer Santíssima Trindade que com as asas emprestadas pelo ateu, deu
ao Sacerdote a virtude de voar!
Mas não era só a espalhar bondade e compreensão que muitas vezes adoçava
os féis do
Gaston Geze, do Hauriou ou do Duguit, era também como Cidadão
que conscientemente pisava terrenos resvaladiços como eram os do tempo.
Vi-o na rua com Barbosa de Magalhães, estudantes e povo, a caminho do
Cemitério dos Prazeres, em romagem ao túmulo de Magalhães Lima. A
repressão fascista começava, já, a apertar as malhas, embora sem aquela
ciência aprendida mais tarde nas escolas nazis de
Himmler e quejandos.
Pouco depois já o cilindro ensaiava novos esmagamentos e Barbosa de
Magalhães era afastado da Cátedra que
soubera brilhantemente conquistar.
Mas em Rocha Saraiva não se tocou.
Não seria possível apesar de toda a sua coerência oposicionista.
Dizia-se que Sal azar, bem no fundo da sua manhosice aldeã, tinha por
ele um grande respeito e temia, apesar de tudo quanto podia, praticar a
iniquidade do seu afastamento compulsivo. Havia de tê-lo por alguém,
fora da sua teia!
Este Rocha Saraiva é dos tais, dos raros, que sabe bem recordar e
oferecer, aos que nos leiam, como acha do melhor sobro para a lareira da
saudade. |