Não é intencional, como contraveneno ou antídoto, que ponha aqui, ao
lado de Rocha Saraiva, este seu colega, em tudo ou quase tudo diferente.
Não.
Mas sinto que ao evocar aqueles a quem fiquei devendo os benefícios de uma formação, mesmo o favor de uma amizade ou gratidão por
uma atitude, o Pinto Coelho, o Zé Gabriel das "Obrigações" do segundo
ano, não deveria ficar ausente, até porque não foram de mais os Mestres
que me ensinaram tanto e tão bem quanto ele.
Era um homem extremamente rigoroso a quem o sangue das veias já trazia
nortes de uma profissão ingrata que, sem ser exclusiva, não deixava de
lhe marcar comportamentos de método e de rigor que em muito facilitaram
a nossa caminhada pelos labirintos de Guilherme Moreira, quase tornado
claro pelos seus ensinamentos.
E é por isso que não hesito em o colocar ao lado de quem hoje fica,
apesar de, para vincar a sua forte personalidade, eu trazer um quase
episódio de rua, embora Largo fosse o palco onde se desenrolou, mesmo em
frente da Faculdade de Direito, no Campo de Santana ou dos Mártires da
Liberdade, em homenagem a um dos seus sacrificados, o General Gomes
Freire de Andrade.
O Zé Gabriel era dado a desportos, ainda que só àqueles, como
praticante, que não destoassem dos pergaminhos familiares de " gente
bem" ainda que não" de algo" .
Ele tinha um dos poucos automóveis pertencentes a alunos ou professores.
Creio, mesmo, que entre os Professores o dele era o único, tal como,
entre os alunos, único era o do Machado Pereira, um "Chevrolet"
descapotável, causa das nossas invejas e vaidades quando nele
conseguíamos obter lugar para o traseiro.
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Era menino rico, ele, de origem açoriana, e de quem dizíamos
ser dono de Mafra, menos o Convento.
E não eram só ditos, já que o Pai, salvo erro Conservador do Registo
Predial daquela Comarca, não se preocupou nunca em desmentir o que do
filho se dizia...
Pois um dia, algum atrevido e estúpido aluno da Faculdade, em ajuste de
contas ou qualquer outra malvadez, espetou em dois dos quatro pneus do
carro do Pinto Coelho um qualquer instrumento perfurante ou que como tal
actuasse, facto que, por mero acaso, foi contemplado pelo agredido
Professor de uma das várias janelas do primeiro andar.
Tanto bastou para que e Zé Gabriel, lépido que era, descesse a escada,
se dirigisse ao atrevido e, sem invocar degraus, antes deles fazendo
tábua rasa, pregasse duas valentes bofetadas naquele a quem, logo ali,
desafiou para se desafrontar se se julgasse com razões para o fazer.
Nós todos ficámos de boca aberta mas, lá bem no fundo, aplaudindo e,
sobretudo, compreendendo a acção desenvolvida pelo quase sisudo Mestre
de Obrigações e Direitos de Família.
Quando lá em cima, na sala comprida que alcunhámos de "Odéon" o Zé
Gabriel nos servia de piloto, para a navegação através dos baixios das
expressões latinas que enxameavam o II Volume, do Guilherme Moreira,
tornando-o navegável, nós sempre sentíamos que ele ia connosco e era
capaz de, por suas próprias mãos
pagar se um qualquer devedor "minus solvit qui tardius solvit".
Assim foi daquela vez e com que razão!
Era respeitado mas não temido senão na medida em que todos nós antecipadamente sabíamos o seu rigor na avaliação dos
conhecimentos que tínhamos para lhe mostrar.
É que esse rigor andava sempre de braço dado com a certeza de que nunca
exigia mais ou diferente daquilo que tinha ensinado, quase com cuidados
de ama, para que não se perdesse uma só gota
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que fosse, do leite que de si próprio sabia mungir, às vezes "pas-teurizado" por outros cultores da ciência jurídica nos quais já
tinha aprofundado os próprios conhecimentos, que eram muitos.
Quando, como muitas vezes
sucede, eu recordo os Mestres que tive, na Faculdade, não hesito um só
segundo em pôr, na primeira linha, ao lado do
Rocha Saraiva,
o
José Gabriel Pinto Coelho,
pois foi aquele que mais Direito me ensinou.
E noto, sempre, não ofender
a sua memória ao não compará-lo com qualquer
Carneiro Pacheco,
Abel de Andrade
ou mesmo e até
Jaime de Gouveia.
É que estes, pobres deles e de nós, eram de um outro mundo, bem
diferente, desse mundo de quem é difícil ter saudades ou recordar, com
proveito, quaisquer exemplos. |