Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 47 a 49.

José Gabriel Pinto Coelho

Não é intencional, como contraveneno ou antídoto, que ponha aqui, ao lado de Rocha Saraiva, este seu colega, em tudo ou quase tudo diferente.

Não.

Mas sinto que ao evocar aqueles a quem fiquei devendo os benefícios de uma formação, mesmo o favor de uma amizade ou gratidão por uma atitude, o Pinto Coelho, o Zé Gabriel das "Obrigações" do segundo ano, não deveria ficar ausente, até porque não foram de mais os Mestres que me ensinaram tanto e tão bem quanto ele.

Era um homem extremamente rigoroso a quem o sangue das veias já trazia nortes de uma profissão ingrata que, sem ser exclusiva, não deixava de lhe marcar comportamentos de método e de rigor que em muito facilitaram a nossa caminhada pelos labirintos de Guilherme Moreira, quase tornado claro pelos seus ensinamentos.

E é por isso que não hesito em o colocar ao lado de quem hoje fica, apesar de, para vincar a sua forte personalidade, eu trazer um quase episódio de rua, embora Largo fosse o palco onde se desenrolou, mesmo em frente da Faculdade de Direito, no Campo de Santana ou dos Mártires da Liberdade, em homenagem a um dos seus sacrificados, o General Gomes Freire de Andrade.

O Zé Gabriel era dado a desportos, ainda que só àqueles, como praticante, que não destoassem dos pergaminhos familiares de " gente bem" ainda que não" de algo" .

Ele tinha um dos poucos automóveis pertencentes a alunos ou professores.

Creio, mesmo, que entre os Professores o dele era o único, tal como, entre os alunos, único era o do Machado Pereira, um "Chevrolet" descapotável, causa das nossas invejas e vaidades quando nele conseguíamos obter lugar para o traseiro. / 48 /

Era menino rico, ele, de origem açoriana, e de quem dizíamos ser dono de Mafra, menos o Convento.

E não eram só ditos, já que o Pai, salvo erro Conservador do Registo Predial daquela Comarca, não se preocupou nunca em desmentir o que do filho se dizia...

Pois um dia, algum atrevido e estúpido aluno da Faculdade, em ajuste de contas ou qualquer outra malvadez, espetou em dois dos quatro pneus do carro do Pinto Coelho um qualquer instrumento perfurante ou que como tal actuasse, facto que, por mero acaso, foi contemplado pelo agredido Professor de uma das várias janelas do primeiro andar.

Tanto bastou para que e Zé Gabriel, lépido que era, descesse a escada, se dirigisse ao atrevido e, sem invocar degraus, antes deles fazendo tábua rasa, pregasse duas valentes bofetadas naquele a quem, logo ali, desafiou para se desafrontar se se julgasse com razões para o fazer.

Nós todos ficámos de boca aberta mas, lá bem no fundo, aplaudindo e, sobretudo, compreendendo a acção desenvolvida pelo quase sisudo Mestre de Obrigações e Direitos de Família.

Quando lá em cima, na sala comprida que alcunhámos de "Odéon" o Zé Gabriel nos servia de piloto, para a navegação através dos baixios das expressões latinas que enxameavam o II Volume, do Guilherme Moreira, tornando-o navegável, nós sempre sentíamos que ele ia connosco e era capaz de, por suas próprias mãos pagar se um qualquer devedor "minus solvit qui tardius solvit".

Assim foi daquela vez e com que razão!

Era respeitado mas não temido senão na medida em que todos nós antecipadamente sabíamos o seu rigor na avaliação dos conhecimentos que tínhamos para lhe mostrar.

É que esse rigor andava sempre de braço dado com a certeza de que nunca exigia mais ou diferente daquilo que tinha ensinado, quase com cuidados de ama, para que não se perdesse uma só gota / 49 / que fosse, do leite que de si próprio sabia mungir, às vezes "pas-teurizado" por outros cultores da ciência jurídica nos quais já tinha aprofundado os próprios conhecimentos, que eram muitos.

Quando, como muitas vezes sucede, eu recordo os Mestres que tive, na Faculdade, não hesito um só segundo em pôr, na primeira linha, ao lado do Rocha Saraiva, o José Gabriel Pinto Coelho, pois foi aquele que mais Direito me ensinou.

E noto, sempre, não ofender a sua memória ao não compará-lo com qualquer Carneiro Pacheco, Abel de Andrade ou mesmo e até Jaime de Gouveia. É que estes, pobres deles e de nós, eram de um outro mundo, bem diferente, desse mundo de quem é difícil ter saudades ou recordar, com proveito, quaisquer exemplos.

 

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