Este Ilustre Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra não é aqui chamado pela beca ou pela toga, nem mesmo pela borla
e pelo capela, muito menos, pela capinha, mas por um curioso caso
fortuito aquando da sua presença, no Terreiro do Paço, como titular da
pasta da Justiça, portanto como, de certo modo, ligado a pedidores de
justiça, a aplicadores ou fazedores dela.
O facto de ser Ministro é que lhe dá o relevo maior, no episódio que
dele vou contar, já que foi o único que até hoje conheci − e já foram
muitos e... variados − cumpridor fiel duma promessa feita, o que, apesar
da de certo modo pequena relevância, traduz a raridade que muito me
apraz registar aqui.
E o caso tem o seu quê de curioso, dadas as características de que se
revestiu.
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Mas contemos:
Com a construção do Palácio da Justiça de Aveiro, inaugurado
quando Antunes Varela era Ministro da Justiça, no já recuado ano de
1962, ficou a cidade dotada de um belo edifício, com certa
grandiosidade, que em muito beneficiou o local do velho edifício e
quintal do Colégio de Meninas ali existente que em nada, mesmo
nada, beneficiava aquele ângulo Norte/Oeste da Praça onde já existia
curioso Convento das Carmelitas, detentor de alguns nacos da melhor arte
barroca, de que Aveiro é feliz repositório.
Mas, apesar de certa grandiosidade e preocupações artísticas marcadas
por uma bela e imponente tapeçaria de Almada, uma amaneirada dedada de
Mestre Martins Barata em homenagem a José Estêvão e, logo na fachada, um
magnífico trabalho escultórico do
Euclides Vaz, representando a figura
tradicional da Justiça com a curiosidade da balança figurar, quase
enrolada, na mão esquerda, com os pratos em pose "négligé" mais
parecendo "soutiens" fora de serviço, mas com uma elegância de conjunto
bem capaz de se superiorizar ao desleixo "becal" de certos Magistrados
ou "togal" de alguns pedi dores de justiça; desde sempre se notou falta
de atenção para a parte material das instalações que, de Direito,
deveria apoiar as gentes da toga e sua associação de classe.
Havia uma salita, ao fundo do corredor do 2º Juízo, que cedo foi anexada
por outros serviços e substituída por outra, ainda menos correspondendo
às necessidades da classe e da função.
E essa mesmo, cedo também foi retirada àqueles a quem tinha sido
destinada.
Nas próprias salas de audiência e na respectiva teia, a bancada dos
Advogados de defesa e de acusação ou de autores e réus, estava ao
través, de frente para os Juízes e de costas para a assistência e os
próprios réus que, por isso mesmo, não podiam ser vistos pelos
causídicos para apreciarem as suas reacções fisionómicas, facto
importante para o exercício do seu mister.
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Mas, pior que isso, proporcionava, sobretudo aos réus em processo crime,
nem todos inocentes" cordeirinhos", posições para fácil agressão ou até
mero insulto verbal que nem o homem da beca nem o da capinha, poderiam
evitar.
Nesse cenário, um dia, o saudoso Álvaro, o
Álvaro Seiça Neves, foi
ameaçado, não recordo, mesmo, se agredido, por um qualquer facínora
cadastrado, pouco agradado das suas palavras de defesa ou de acusação.
O caso causou burburinho e, desde logo, a decisão de ir, junto do
Ministro de então, exactamente o Mário Júlio, "esse rapazito do Boco que
dizem para aí que é Ministro..." no dizer atrevido, sem deixar de ser carinhoso, do condiscípulo dele, o nosso colega João Maio.
Mas os tempos de então eram por demais resvaladiços para que não fossem
tomadas precauções adequadas, no sentido de evitar que a justa
reivindicação a fazer fosse entendida como de descontentamento político,
perigoso sempre e por certo impeditivo de vermos atendido o pretendido.
Esse era, nem mais nem menos, que a alteração da teia, ficando, como era
tradicional, a bancada dos advogados à direita e à esquerda da dos
Juízes e o banco, mocho ou cadeira do réu ou réus, em frente e, de certo
modo permitindo a perfeita visão e audição, sem perigo de destemperos ou
despeitos despropositados, eventualmente, até, perigosos.
A equipa escolhida para a diligência a tão alto nível, foi-o com
a intenção de levar, junto do Mário Júlio, alguns condiscípulos e até
amigos e, com eles, outros colegas cuja posição política englobava
apoiantes e adversários do Salazar reinante, todos unidos na justiça do
nosso pedido e na sua inteira razoabilidade, quase acto de "legítima
defesa" colectiva.
Eu era o presidente da
Delegação de Aveiro da Ordem dos Advogados e comigo foram, se não erro,
o
Manuel Granjeia,
o
Fernando de Oliveira,
o
Álvaro Neves
e o
Flávio Sardo,
e no dia e hora
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acordados, fomos cortêsmente recebidos pelo Ministro Mário Júlio que a todos
mais ou menos conhecia por camaradagem coimbrã ou laços de regional
naturalidade − O Boco é ali em baixo, num dos recantos do Sul da Ria de
Aveiro...
Expusemos ao que íamos.
Fomos compreendidos e, aceites como boas, as nossas razões. Que sim, que
nas próximas férias judiciais, aliás não distantes,
as alterações seriam feitas, de harmonia com os nossos desejos.
E foi então que eu, como representante directo da Ordem, agradeci o
acolhimento e me prontifiquei a obter, de Arquitecto amigo, o plano, o
"croquis" das alterações a levar a cabo e que forneceria ao Ministério
ou directamente ou por intermédio do Corregedor do Círculo ou do
Presidente do Tribunal da Comarca.
− Não é preciso. Há para aí Arquitectos do Ministério sem nada que
fazer. Eu lhes darei ordens para que satisfaçam o vosso justo pedido.
Quando descemos a imponência daquelas escadas, olhávamos uns para os
outros, agradados com a recepção e com a promessa feita, mas quase todos
desconfiados de que ela não passaria daí, como, aliás, era e é de
tradição.
As férias grandes chegaram.
O Tribunal fechou e Outubro abriu-lhe, de novo, as portas. Já nos tinham
dito, mas não acreditávamos!
Quando, de novo, nos instalámos na teia, já foi na bancada posta à direita e à esquerda dos becados, com os réus visíveis e sem nos
terem ao alcance da mão e da "língua".
E, com isso, foi a primeira e única vez que constatei um Ministro cumprir, em tempo e em modo, o que havia prometido.
E nem ficará mal trazer para aqui, a coberto da manta dos de borla e
capelo aquele que o João Maio dizia ser "o rapazito do Boco, que dizem
para aí ser Ministro". |