Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 49 a 52.

Mário Júlio Almeida Costa

Este Ilustre Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra não é aqui chamado pela beca ou pela toga, nem mesmo pela borla e pelo capela, muito menos, pela capinha, mas por um curioso caso fortuito aquando da sua presença, no Terreiro do Paço, como titular da pasta da Justiça, portanto como, de certo modo, ligado a pedidores de justiça, a aplicadores ou fazedores dela.

O facto de ser Ministro é que lhe dá o relevo maior, no episódio que dele vou contar, já que foi o único que até hoje conheci − e já foram muitos e... variados − cumpridor fiel duma promessa feita, o que, apesar da de certo modo pequena relevância, traduz a raridade que muito me apraz registar aqui.

E o caso tem o seu quê de curioso, dadas as características de que se revestiu. / 49 /

Mas contemos:

Com a construção do Palácio da Justiça de Aveiro, inaugurado quando Antunes Varela era Ministro da Justiça, no já recuado ano de 1962, ficou a cidade dotada de um belo edifício, com certa grandiosidade, que em muito beneficiou o local do velho edifício e quintal do Colégio de Meninas ali existente que em nada, mesmo nada, beneficiava aquele ângulo Norte/Oeste da Praça onde já existia curioso Convento das Carmelitas, detentor de alguns nacos da melhor arte barroca, de que Aveiro é feliz repositório.

Mas, apesar de certa grandiosidade e preocupações artísticas marcadas por uma bela e imponente tapeçaria de Almada, uma amaneirada dedada de Mestre Martins Barata em homenagem a José Estêvão e, logo na fachada, um magnífico trabalho escultórico do Euclides Vaz, representando a figura tradicional da Justiça com a curiosidade da balança figurar, quase enrolada, na mão esquerda, com os pratos em pose "négligé" mais parecendo "soutiens" fora de serviço, mas com uma elegância de conjunto bem capaz de se superiorizar ao desleixo "becal" de certos Magistrados ou "togal" de alguns pedi dores de justiça; desde sempre se notou falta de atenção para a parte material das instalações que, de Direito, deveria apoiar as gentes da toga e sua associação de classe.

Havia uma salita, ao fundo do corredor do 2º Juízo, que cedo foi anexada por outros serviços e substituída por outra, ainda menos correspondendo às necessidades da classe e da função.

E essa mesmo, cedo também foi retirada àqueles a quem tinha sido destinada.

Nas próprias salas de audiência e na respectiva teia, a bancada dos Advogados de defesa e de acusação ou de autores e réus, estava ao través, de frente para os Juízes e de costas para a assistência e os próprios réus que, por isso mesmo, não podiam ser vistos pelos causídicos para apreciarem as suas reacções fisionómicas, facto importante para o exercício do seu mister. / 51 /

Mas, pior que isso, proporcionava, sobretudo aos réus em processo crime, nem todos inocentes" cordeirinhos", posições para fácil agressão ou até mero insulto verbal que nem o homem da beca nem o da capinha, poderiam evitar.

Nesse cenário, um dia, o saudoso Álvaro, o Álvaro Seiça Neves, foi ameaçado, não recordo, mesmo, se agredido, por um qualquer facínora cadastrado, pouco agradado das suas palavras de defesa ou de acusação.

O caso causou burburinho e, desde logo, a decisão de ir, junto do Ministro de então, exactamente o Mário Júlio, "esse rapazito do Boco que dizem para aí que é Ministro..." no dizer atrevido, sem deixar de ser carinhoso, do condiscípulo dele, o nosso colega João Maio.

Mas os tempos de então eram por demais resvaladiços para que não fossem tomadas precauções adequadas, no sentido de evitar que a justa reivindicação a fazer fosse entendida como de descontentamento político, perigoso sempre e por certo impeditivo de vermos atendido o pretendido.

Esse era, nem mais nem menos, que a alteração da teia, ficando, como era tradicional, a bancada dos advogados à direita e à esquerda da dos Juízes e o banco, mocho ou cadeira do réu ou réus, em frente e, de certo modo permitindo a perfeita visão e audição, sem perigo de destemperos ou despeitos despropositados, eventualmente, até, perigosos.

A equipa escolhida para a diligência a tão alto nível, foi-o com a intenção de levar, junto do Mário Júlio, alguns condiscípulos e até amigos e, com eles, outros colegas cuja posição política englobava apoiantes e adversários do Salazar reinante, todos unidos na justiça do nosso pedido e na sua inteira razoabilidade, quase acto de "legítima defesa" colectiva.

Eu era o presidente da Delegação de Aveiro da Ordem dos Advogados e comigo foram, se não erro, o Manuel Granjeia, o Fernando de Oliveira, o Álvaro Neves e o Flávio Sardo, e no dia e hora / 52 / acordados, fomos cortêsmente recebidos pelo Ministro Mário Júlio que a todos mais ou menos conhecia por camaradagem coimbrã ou laços de regional naturalidade − O Boco é ali em baixo, num dos recantos do Sul da Ria de Aveiro...

Expusemos ao que íamos.

Fomos compreendidos e, aceites como boas, as nossas razões. Que sim, que nas próximas férias judiciais, aliás não distantes, as alterações seriam feitas, de harmonia com os nossos desejos.

E foi então que eu, como representante directo da Ordem, agradeci o acolhimento e me prontifiquei a obter, de Arquitecto amigo, o plano, o "croquis" das alterações a levar a cabo e que forneceria ao Ministério ou directamente ou por intermédio do Corregedor do Círculo ou do Presidente do Tribunal da Comarca.

Não é preciso. Há para aí Arquitectos do Ministério sem nada que fazer. Eu lhes darei ordens para que satisfaçam o vosso justo pedido.

Quando descemos a imponência daquelas escadas, olhávamos uns para os outros, agradados com a recepção e com a promessa feita, mas quase todos desconfiados de que ela não passaria daí, como, aliás, era e é de tradição.

As férias grandes chegaram.

O Tribunal fechou e Outubro abriu-lhe, de novo, as portas. Já nos tinham dito, mas não acreditávamos!

Quando, de novo, nos instalámos na teia, já foi na bancada posta à direita e à esquerda dos becados, com os réus visíveis e sem nos terem ao alcance da mão e da "língua".

E, com isso, foi a primeira e única vez que constatei um Ministro cumprir, em tempo e em modo, o que havia prometido.

E nem ficará mal trazer para aqui, a coberto da manta dos de borla e capelo aquele que o João Maio dizia ser "o rapazito do Boco, que dizem para aí ser Ministro".

 

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