Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 26 a 28.

O Rocha Pereira

Era um simpático senhor de capinha, este oriundo das Bairradas e que veio para Aveiro trabalhar no seu ofício de Escrivão de Direito, no desempenho do qual sempre mereceu as simpatias que soube sempre gerar pelo desempenho correcto dele.

Tinha fortes e fracos o bom do homem, mas fez amizades seguras, entre os da Toga, no seio dos quais eu me contava. / 27 /

Mas tinha" fracos" esses que muitos consideram fortes sinais de "machismo" nem sempre correspondendo às nozes, ou na contrária, às vozes.

Mas gostava, quase fazia gala, de alçar a crista ou eriçar as penas quando qualquer galinha ou, sobretudo, franganota, lhe entrava na capoeira da Secção ou se pavoneava pelas redondezas.

Era certo e sabido que se a plumagem ou o cacarejar do galináceo ou mesmo da perdigota, lhe enchiam os ouvidos e os olhos cobiçosos, logo se derretia em ademanes de amabilidade que em si nem raros eram e logo se aprestava, a troco, tantas vezes, não todas de um sorriso, a prestar todas as informações mesmo que elas fossem "coutada" de outra Secção ou Juízo, mesmo, de preferência, de Arquivo.

Nunca levava a caneta com medo que o seu prejudicasse outros manuseamentos...

Mas nunca que eu saiba, foi alvo de queixas de qualquer garnizé, galeto ou galo preterido por tais manobras.

Fazia sempre questão de honra nos seus "có-có-ró-có-cós" afinados.

Mas era incapaz, pelo menos, de se privar de paisagens que lhe entrassem pelos olhos dentro!

Quase os punha em alvo se uma qualquer moçoila ou senhorita lhe fizesse abanar a compostura que procurava respeitar.

Mas uma vez aconteceu que uma linda, esbelta e respeitável cachopa-senhora, ali dos lados de S. Bento, não o da porta aberta, é bom de ver, hoje vivendo, julgo, em Terras de Santa Cruz, lhe enfeitiçou os olhos que quase dela os não despegou durante os poucos minutos em que ela prestou declarações, num qualquer "atado" de papel selado, em moda, na altura.

Durante os dias seguintes, o bom mas nada santo Rocha Pereira, quase encavalitava as letras da sua aliás boa caligrafia − não tinha tido por mestre, o Grijó... − e confundia petições com autos de penhora e mandados de despejo com exames directos ou autópsias.

/ 27 / Quase dava pena, enquanto durou a crise, ver aquele cumpridor homem de capinha a trocar as folhas do processado pela pele, sempre bem lavada, dos dedos de mãos finas.

Mas um dia atreveu-se − e isso passou-se comigo − a fazer um pedido:

O Senhor Doutor conhece aquela rapariga de S. Bento que tem uns olhos bonitos e anda como uma garça real?

Eu lá lhe disse que sim, sem mentir, e ele, então, com os olhos em alvo e quase a babar-se de unção:

O Senhor Doutor tem que dar testemunhas naquele processo do homenzinho da Costa do VaIado.

Faça-me o favor de a indicar como testemunha dele.

Eu farei o possível para que o julgamento seja adiado para mais vezes a ver cá.

Valeu?

Não me lembro do que respondi ao Rocha Pereira, mas como se tratava, só, de paisagens, devo ter pensado em lhe fazer a vontade.

Infelizmente para o bom amigo, ela não chegou a ser notificada por já ter partido para os Brasis.

 

Página anterior.

Índice Geral.

Página seguinte.