Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 24 a 26.

O Grijó

Foi o primeiro dos Escrivães de Direito que conheci, mais como figura castiça das ruas de Águeda, na Águeda da minha mocidade, que como funcionário público judicial, homem de capinha que era no velho Tribunal da Praça Velha ainda dos tempos anteriores à da / 25 / colocação da estátua do Conde de Águeda − triste obra de arte, mais fiel retrato do Solicitador Flamengo, da Comarca de Aveiro, que do simpático senhor da Quinta da Aguieira.

E dava nas vistas o velho Escrivão Grijó com a sua figura magricela, seus sapatos de salto alto, quase à senhora, e um chapéu de aba bem larga, à Mazantini, creio.

Era famosa a sua caligrafia, émula de hieróglifos ou cuneiformes caracteres de antiguidades orientais. E tanto que nem ele próprio a entendia apesar dos cuidados com que cumpria os deveres de limpeza dos aparos da caneta, na cabeleira, nem por isso abundante.

Mas não foi em Águeda que melhor o conheci.

Foi em Aveiro quando, em 1946, para cá vim pedir justiça e o encontrei a chefiar, se bem recordo, a 1ª Secção do 1º Juízo, ali sob a alçada do indicador em riste do Tribuno emblemático da cidade.

Era lá então o Tribunal e a Secretaria ocupava o rés-do-chão do lado direito do edifício da Câmara Municipal, onde ainda conheci, de vista, já se vê, a cadeia comarcã.

O nosso Grijó fugia, sempre que podia, aos julgamentos. Não porque embirrasse com a capinha do ofício mas porque, sabendo ter de redigir a acta dos julgamentos e, sobretudo, arrostar o perigo do ditado delas pelos "Meritíssimos" não queria correr o risco dum pedido de leitura que o Juiz viesse a fazer "sponte sua" ou a pedido de um qualquer homem de toga menos confiado na fidelidade do escriba.

Não recordo, já, se o Juiz era o Gurgo ou o Gorjão Nogueira mas lembro, por directamente envergar a toga e intervir na audiência de discussão e julgamento que, em dada altura, o da Beca chamou a atenção do da Capinha, que era o Grijó, dizendo-lhe que escrevesse o que passou a ditar-lhe e era, nem mais nem menos que o ocorrido com qualquer presença, depoimento ou contradita. / 26 /

O ditado durou uns minutos e o nosso Grijó quase bufava dando tratos de polé à caneta justiçada pelo seu manejo saltitante como o andar dele, de autêntica "prima ballerina".

Eis senão quando, o da Beca, querendo ficar ciente do que ditara, despejou do alto do seu degrau para o plaina do da Capinha, esta ordem que nem por vir fardada de delicadeza, tão arreada como a autoridade, representava para o Grijó a fulminância de um corisco:

Leia o que escreveu, senhor Grijó.

E é então que o Grijó, começando por coçar o queixo que era, quase, de prognata borbónico, com a caneta de bico de pato, a leva à cabeça e diz, por entre dentes mas em volume perfeitamente audível pelas gentes da teia:

Com essa. Com essa é que o Senhor Juiz me... lixou!

Para além do eco naquele sinónimo que a decência mandou pôr no lugar do palavrão ouvido, guardo na memória o retrato de todo aquele esforço que o Meritíssimo fez para indeferir, "in limine" a gargalhada que quase o ia afogando.

 

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