Soares da Graça, Auto da Infanta Dona Joana, Vol. XVIII, pp. 107-158.

AUTO DA INFANTA DONA JOANA, FILHA DO REI «AFRICANO»

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ACTO I

QUADRO III

   

A mesma Sala do Capítulo, agora preparada para a cerimónia da tomada de hábito da Princesa. Altar ao fundo, com uma imagem grande de Cristo na cruz. Como ornato, apenas tocheiras.

A comunidade forma em duas alas, empunhando as freiras tochas acesas; têm os véus descidos, a cobrir-lhes o rosto. Ambiente de grande austeridade.

Antes de abrir o pano, ouvem-se já, em toada sumida, e longínqua, as preces e o cantochão do ritual, em música da época, que depois as freiras vão acompanhando pelos seus devocionários. Há fumos de incenso suspensos no ar.

Com a cena ainda fechada, ouve-se, em declamação alta, e voz muito clara, pausadamente:

E a Princesa... assim o quis!...
Realiza aquele pensamento
Que a tornou tão feliz:
– Vai professar neste Convento!...

Quer deixar o mundo,
Seguir outros caminhos;
Perscrutar mais fundo!...
Arredai-lhe os espinhos...

Entre Salmos e Rezas,
Baixinho... a murmurar...
Muitas tochas acesas,
Ficou junto do altar.

Nunca mais... Nunca mais!...
Lhe brilharão no peito,
Oiros... brocados... jóias reais...
Tudo será desfeito!...

Vestes de áspero linho,
Vão afogar-lhe em breve
o colo de arminho:
Tão alvo... cor da neve!...   
/ 122 /

Como a espuma do mar,
Nardos num canteiro;
Pomba branca a adejar,
Sobre a vila de Aveiro!...

        (Nesta altura começa a erguer-se o pano, lentamente, aparecendo aos olhos do espectador o quadro geral da figuração da cerimónia. A Infanta está de joelhos, em frente da Madre Abadessa, que se acha sentada num mocho. Tira os anéis dos dedos e coloca-os num açafate (1) que uma das freiras segura, ao lado, e bem assim o cordão que tem ao pescoço, com o relicário de ouro. D. Brites Leitoa toma o hábito que uma freira lhe entrega e abençoa-o, aspergindo-o com agua benta, que lhe é ministrada por outra Irmã. Depois corta as tranças da Infanta, e arremessa-as para o chão, uma a uma, prostrando-se Ela por terra, em atitude de humildade, após isto)

E agora... de geolhos,
'Té são mais formosos,
Os seus verdes olhos!...
Pisados... chorosos...

E as madeixas doiradas,
Vão rolar no chão:
Tem que ser cortadas...
Oh! desolação!...


DONA BRITES LEITOA

        (Com a voz repassada da maior emoção. Palavras bem marcadas, muito compassadamente, ergue-se do mocho, para se curvar e falar à Infanta, que continua estendida no chão, apoiando a cabeça no primeiro degrau do estrado.)

A vós, Senhora, nas letras tão versada, (2)
E bem conhecedora das Sagradas Escrituras,
Acho que nenhuma pergunta vos é apropriada:
Só lições nos destes, e as dareis também futuras...   
/ 123 /

Do que está nos Livros Santos, heis inteiro saber;
Conheceis os Evangelhos, toda a cristã doutrina;
Apenas... a vossa profissão... resta agora fazer...
De tomar o santo hábito, há muito que sois dina;

Não tendes vós faltas para serem agora declaradas,
Mas sim altas virtudes... grande aperfeiçoamento,
Por tantas acções boas já por vós praticadas,
Mui antes ainda da vossa entrada no Convento...
Assim... dizei-me: «que mandais»?... e «que quereis?»  
/ 124 /

INFANTA

        (Com acento da mais profunda humildade, erguendo a cabeça e voltando-se para a interpelante)

«A misericórdia de Deus... e a vossa»... (3)

DONA BRITES LEITOA

        (Replica, em voz suave, após uma ligeira pausa. Com acento de quem reflecte nas palavras que vai proferindo; em seguida, mutação de voz)

A Misericórdia divina!... Oh!... decerto a tereis!...
Porém... eu... é que nada tenho que dar-vos possa...
Sou a mais pobre ovelha do rebanho do Senhor;
Certamente... a sua mais fraca e humilde serva...
Mísera escrava... que Ele remiu por seu amor.
Verme desprezível... a mais inútil, rasteira erva!...

        (Pára um momento, para prosseguir, sentidamente)

Que sejais sempre, bem contente, nesta casa de Deus:
Pois havendo as coisas terrenas, assim, desprezadas,
Podereis subir... finalmente, as escadas dos Céus,
Que são feitas de sofrimento... de muita lágrima regadas!...
E é nessa disposição d'alma... tão pronta! E sujeita
A descomodidades, obediência... e inteira pobreza,
Que reside a grande Sabedoria... a mais perfeita:
Chave segura daquele reino... de eternal Realeza!...

        (Após ligeira pausa)

E que, pela infinita Bondade, se acabe agora em bem
O que já, por divino favor, tão bem foi começado!...
Louvemos ao Senhor: bem alto e para sempre: (Todas) Ámen
Que Ele – em toda a parte – seja por todos adorado!...

         (Em seguida, a Abadessa procede à investidura do habito. Veste a infanta, ajudada por outras freiras, pondo-lhe a correia, / 125 /  o terço, etc., etc. A Infanta, depois disso «dá a paz» a todas as Irmãs, formando-se o cortejo a caminho do Claustro. Os coros cantam durante a cerimónia).

   
ACTO I

QUADRO IV

   

        (O mesmo cenário. Depois da tomada de hábito da Princesa. Cena deserta, por momentos, até que aparece uma freira a apagar as velas, munida de apagador de cabo alto. Vem com ela outra Irmã, trazendo um açafate, no qual recolhe algumas alfaias que serviram na cerimónia. Vai ao encontro, e interpela a companheira, quando esta desce os degraus do altar)

IRMÃ VIOLANTE

        (Sobraçando o açafate, em tom de meditação)

O que somos nós, minha Irmã... ao pé de tudo isto?!...

IRMÃ INÊS

        (Apoiando o apagador no chão, acenando com a cabeça, reflectindo)

O que somos?!... Ovelhas errantes, inda longe do aprisco...
Desvairadas!... Surdas tanta vez ao doce clamor de Cristo!...
E que o vento do mal sacode... como a um leve cisco...

IRMÃ VIOLANTE

        (Que tem caminhado a passo muito lento com a companheira, pára agora um momento junto dela. Em meditação)

Aquilo sim... aquilo, é que é verdadeiro amor!...
Despido de vaidades... sem humano artifício...
Repassado do mais sincero e ardente fervor;
Inteiro desprendimento... Resignação... Sacrifício...

         (Já quase a desaparecer da cena, ar pensativo, recolhido)

A hora... é de silêncio, meditação, recolhimento...
Mas à vista dessa tão alta... e tão edificante lição,
Não pude esconder mais tempo este pensamento,
Que me domina – inteiramente – o coração!...    
/ 126 /

IRMÃ INÊS

         (Pondo uma das mãos no ombro da outra lrmã, com afago)

 

Consideremos bem a lição, que há pouco nos foi dada:
– Uma Filha e Neta de reis – tão altos, valorosos e capazes!...

Pr'ali assim estendida... Com a face ao chão colada...
Oh! enganos deste mundo!... Transitórios... falazes!...

        (Saem pela E. fundo. mas sem passarem à vista das tranças da Infanta, que continuam abandonadas no chão).   / 127 /


FREI JOÃO DIAS (confessor da Infanta)
e AIO da lnfanta

AIO

         (Acompanhado do frade dominicano, cujo diálogo já há momentos se ouvia, sumidamente. Decrépito, longa cabeleira branca, alquebrado, falando a custo, a voz embargada pelo vivo sentimento que o domina. Entram pela D. fundo. Já à vista da cena; a modos de confidência)

E foi só esse o motivo... deste meu desalento...

FREI JOÃO DIAS

        (Ar aprumado. Paternalmente, para o AIO; fala vagarosamente; as palavras e frases bem marcadas)

Não podia ser!... Não podia ser!... meu amado Irmão!...
Nunca tal o permitiram as regras do Convento.
É isso mesmo contrário à nossa secular Constituição!...

        (Carinhosamente, abeirando-se mais dele)

Contudo, eu vos prometo que num fugaz momento,
Ireis beijar em breve a mão da Senhora Infanta;
E sei bem que o fareis com aquela mesma devoção
Com que devemos oscular as relíquias duma Santa!...

        (Mudando de tom, concretizando a sua ideia)

Porque... afinal... já o é... disso estais vós certo...
Por este seu – tão raro – exemplo de mortificação!!!
E se ainda está na terra... do céu Ela é já perto...
– A estrada desta vida... é de bem curta extensão!....

        (Caminhando mais uns passos, querendo animar)

Mas trazendo-vos agora aqui, como foi vossa vontade,
Podereis melhor... mais facilmente reconstituir,
Na vossa lembrança... em evocadora saudade,
A cerimónia aí feita, para o hábito lhe investir.  
/ 128 /

Cercam-nos ainda aromas d'incenso, que se vão diluindo...
E agora, suspensos, vogam sobre nós, ficaram a pairar!...
Outros... ergueram-se em nuvens... subindo... subindo...
Como asas brancas que se juntassem pr'até Deus voar,
E, depois, à sua volta, se irem abatendo, e repartindo!...


AIO

        (Que mal deixa terminar a fala do Frade, atalhando logo, quase implorante)

Perdoai, Reverendo Padre: mas não me posso conformar:
Eu... a quem tal segredo pela Princesa foi confiado,
Queria vê-la hoje, quando ELA, aí veio professar...
Vir também aqui... tê-la a este lugar acompanhado...

        (Em tom de sentida evocação)

Como outrora... tanta vez a via!... Rodeada de grandeza...
Em seus reais Paços... cintilando oiro, dos ricos brocados!...
Irradiando de si tanta galanteria... e tão singular beleza,
Que o Rei... Príncipe... e vassalos... ficavam encantados!...
(4)

        (Ar quase misterioso, a jeito de confidência)

Mas lá por dentro... Em torturante, viva aspereza,
Ocultos nos vestidos... e ao corpo bem chegados,
Os panos mais vis... da mais grosseira dureza;
A morder-lhe a carne... bem cingidos... apertados!...


FREI JOÃO DIAS

        (Acenando, ligeiramente, a cabeça, concordando)

Bem sei... bem sei!... E que vós... por secreto mandado,
Íeis comprar-lhe às tendas dos mercadores, furtivamente...
/ 129 / [Vol. XVIII - N.º 70 - 1952]

        (Depois duma pequena pausa, evocador)

De tudo isso... de todas essas coisas, Ela me há informado...
Vassalo atento fostes sempre; dedicado... e mui reverente...

        (Repentinamente, atalhando logo, como se naquele momento lhe aflorasse à ideia mais aquela lembrança)

E também éreis vós, tantas vezes... Senhor...
Quem, em seu lugar, percorria Lisboa inteira,
Matando muita fome, e aliviando muita dor!
Buscando os desgraçados... parando à sua beira...

AIO

        (Dominado pela maior e mais sentida emoção)

Assim era... assim foi sempre, reverendo Irmão!...
Ai! se o Príncipe soubesse!... Seria eu logo desterrado!...
Ou morto pr'aí, como o mais reles, ascoroso, vilão...
Mas este segredo... para mim... era como sagrado!...
E se eu o revelasse (numa exaltação) se tal fizesse... Oh!... então...
Que me retalhassem o corpo... todo... às postas!...
Ou me matassem... como a qualquer nojento cão,
A ferro de lança... varando-me... do peito às costas!!!

FREI JOÃO DIAS

        (Tomado de emotivo espanto, procurando sossegar o Aio, sustendo-o carinhosamente)

Meu Irmão... Bom Irmão!... Quem tal pensaria?!...
Um juízo assim!?... O que o poderia autorizar?!...
Não!... Não!... Que a vossa alma se inunde d'alegria,
Mas por tudo o que íizestes, só há que vos louvar...
Servidor pronto e leal, da saudosa rainha Dona Isabel,
Que tão menina deixou no mundo a Senhora Infanta,
(5)
À sua memória vos mostrastes, bem grato... e bem fiel...
Votando depois à Filha... tanta amizade!... tanta!... 
/ 130 /

AIO

        (Cambaleante, vai caminhando devagar, quase impulsionado pelo Frade. Com dolorido acento)

Que me dizeis?!... Que me dizeis?!... Já não valho nada!...
Sombra fugidia... quase a desaparecer... que se esvai...
Tronco velho e seco... que... com a mais leve rajada...
O vento logo abala... e ele... por terra logo cal!....

        (Ao ver as tranças da lnfanta, no chão. Num desvairo de sentimento, desordenadamente)

Ah!... Ah!... São as tranças d' Ela que ali vejo a brilhar,
Assim... desprezadas?!...Espalhadas pelo chão?!!!...
Largai-me, meu bom Padre: deixai-mas ir buscar...
Para levar comigo... quando eu morrer... no meu caixão!...

FREI JOÃO DIAS

        (Perplexo perante este arrebatamento, procura arrastar o Aio para fora da cena. Fala-lhe carinhosamente)

Meu Irmão!... Por Deus!... desisti de tal intento...
São ainda ecos do mundo... que é preciso apagar,
E não devem transpor os umbrais deste Convento...
Aquelas tranças d'oiro... são... (hesitante) talvez... para enterrar!...

        Saem pela E. fundo.

MARGARIDA PINHEIRO

        (Entra pela D. Espectral, com o seu perfil de freira dominicana desenhado na sombra que a mortiça luz do lampadário espalha na quadra. Caminha meio vacilante; verifica se é ou não vista por alguém; apanha as tranças apressadamente, recolhendo-as no escapulário. Com sentida expressão, olhando para o regaço)

Não!... Não!... Ninguém irá enterrá-las!...
Irei eu antes guardá-las já num relicário,
Para quando quiser poder então beijá-las!
E lá ficarão... recolhidas... como num Sacrário...
Leves fumos de vaidade?... Cinzas d'ilusão?...
Lembram íntimos, fundos anseios torturados;
Algum sonho lindo que se afogou no coração,
Suspiros d'alma... que ali fossem abafados!!!... 
/ 131 /

        (Com acento muito triste)

Que profunda, grande lição aqui se encerra!...
Riquezas... Nome... poderio... formosura...
Tudo isso!... Abatido ao raso pó da terra!...
E à roda... um denso negrume d'amargura!...


        Aconchega mais, a si, as tranças que leva no regaço e sai apressadamente.

O pano desce lento

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SOARES DA GRAÇA

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(1) «...nẽ pos anel ẽ dedo salvo hũ soo desmeralda e outro doro que traziia sẽpre por Respeyto da Senhora sua tya presente que lhos dera. E estes lancou no acafate quãdo lhe vestirã ho havyto.» Memorial cit., pág. 111.

(2) ... «Entẽdia muito bẽ latim»... fallãdo e departindo das scripturas e cousas de Deus...» Fyca vos muita e boa Iyvraria cõ que poderees tomar cõssollaçõ e prazer spiritual». Memorial cit., págs. 119 e 160. 

(3) − «E a Senhora lfante cõ muita humildade Respõdeo: A misericor dia de deus e a vossa...»
..."Nom he necessario Senhora fazer pregũtas. nẽ declarar asperezas, pois somos certas que nõ posso dizer Cousa de virtude e da ordẽ que muito milhor vos a sabees e entẽdees...,  etc. Memorial, pág. 114.

(4)«Na clausura dum humilde mosteiro dominicano da antiga vila de Aveiro, face a Deus e longe do rumor do mundo, a filha de Afonso V de Portugal voluntariamente sepultou e deixou apagar aquela radiosa mocidade em flor que da tábua quatrocentista do museu transparece ainda hoje, cinco longos séculos volvidos»... ROCHA MADAHIL; do brilhante prefácio da Crónica e Memorial cit.
«Derramava sse largamente e crecia a grãde ffama desta mũy fremosa e ẽ todo perfeyta Senhora Iffante»... Memorial, pág. 85.
 

(5)A mãe da Princesa faleceu em 1455. «Tomou maes syngular afeycã spiritual Com hũa molher que em sua Casa cõ as outras trazia que fora Criada des minynice da Rainha sua madre molher muito devota...» «E per esta maneyra ho fez a hũu criado da Raynha sua madre homẽ de Idade que cõ ella ficara e vivia prudẽte e avisado e muy fiel vassalo e os segredos ho qual el rrey posera por seu principal thesoureiro de toda sua fazẽda e Joyas. Mas a dita Senhora ho tomou E fez tesoureyro seu nas Cousas spirituaes.»... Memorial, pág. 81.  

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