Soares da Graça, Auto da Infanta Dona Joana, Vol. XVIII, pp. 107-158.

AUTO DA INFANTA DONA JOANA, FILHA DO REI «AFRICANO»

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ACTO II

Antes de abrir a cortina do fundo, e como já se observou na abertura do 1º Acto, a IRMÃ MARGARIDA PINHEIRO lerá, novamente, outro trecho da Crónica – agora – o que se refere à vinda do Príncipe D. João a Aveiro, com o fim de retirar a Princesa do Convento. Leitura muito vagarosa, pontuando a freira as passagens na altura devida, dando assim ao espectador a impressão de que, no momento, escreve aquele Memorial. Leitura feita com transparente emoção. Quando dá por findo o trabalho, levanta-se repentinamente, saindo apressada, sem esconder o sentimento que lhe domina a alma. Luz frouxa.

«Como ho principe seu Irmãao da dita Senhora Iffante nossa Senhora soube que ella tinha tomado ho havyto da santa Religiã. Como lyam Ruginte se assanhou fortemẽte. Cobryndo sse de doo e barba. FalIou asperamẽte cõ elI rrey seu padre dizedo nõ sse devia tal cousa cõsentyr. E que se sua alteza o cõtrayro nõ mãdasse e per sy ho nã fezesse. elIe lhe viinria tirar os avytos. que nõ fora sua viinda a tal vylla e moesteiro pera sua Irmãa tomar avyto de Religiã. Mas pera ẽ elIe star Recolheyta por sua cõsolIaçõ por algũu tẽpo. por ho tãto tomar e vontade. e estar assy atee que o Reyno e elIes starem ẽ desposyçã pera averẽ de casar como era Razam. Partyo sse logo e veyo sse a esta vylla trazẽdo cõssygo poucos e assynados Senhores e fidalgos e algũus bispos. Antre os quaaes foy ho byspo devora dõ garcia de meneses ffilho do muy Illustre Conde dom duarte. O qual bispo sobre todos era forte e duro cõtra a Senhora Iffante tomar avyto de Religyã. Veyo, ho dito Senhor princepe seu Irmãao. E entrãdo dentro neste moesteiro. e cõ elle algũus poocos, e assy o dito bispo e sua cõpanhya. Ho princepe furybũdo e muy descõtente se demostrou aa madre prioressa brityz leytoa do que presumira assy fazer aa Iffante sua Irmãa. a qual el rrey seu padre nẽ elle nõ queriã nem cõsentiam elIa aver de levar adiante Cousa tã errada como esta fora e seria. E outras muitas Razões semelhãtes. que seriiã longas de contar. escrever. / 133 / As quaaes a devota madre cõ poucas e muy humildosas pallavras Respõdeo dizẽdo. ella E todas as rrelligiosas desta Casa a tiinhã e lhe obedeciã e serviã. como a propria sua Sanhora. Como de feyto era. E assy ho confessavã. que acerca do avyto obedecera e fezera o que a dita Senhora ordenara e mandara»...

   
ACTO II

QUADRO I

   

       (Pátio de entrada no Convento de Jesus, comunicando directamente com a portaria. Esta, de pesadas ferragens, mostra, bem visível da parte de dentro, a mola que se liga à sineta. A um lado, a Roda; do outro, um nicho grande com a imagem de S. Domingos. Alumiando-o, está uma candeia de azeite, suspensa da parede; madrugada. Pelos vitrais da fresta, entra, timidamente ainda, a luz matutina, ouvindo-se ao longe o cantochão de matinas, antes de abrir o pano. A sineta repercute desordenadamente, ao mesmo tempo que se pressente o ruído de forte vozearia, que vem de fora).

IRMÃ PORTEIRA

        (Que aparece alvoroçada, atraída pelo toque repetido da sineta, com um lampião aceso; do rebate da porta, voltada para o nicho de S. Domingos.)

Senhor!... Senhor!... Quem é que a esta hora,
Vem à portaria, tocar assim!... o sino?!...
Grande caso... decerto... aconteceu lá fora!...
Espera-nos desgraça?... Ou é forte desatino?...

IRMÃ SACRISTÃ

        (Que surge logo em seguida, mal tem acabado a fala precedente, ajoelhando no lajedo, voltada para a imagem de S. Domingos, apertando as mãos, em súplica)

VaIei-nos...Oh! Santas Chagas de Cristo!...
Que a maldade não pára... e vai assim... àvante...
Oh! meu Padre São Domingos: o que é isto?...
Nem respeitam a nossa Irmã SOROR INFANTE?!...
(1)  / 134 /

DONA BRITES LEITOA

        (Que acorre sem demora, atraída pelo sobressalto manifestado. Atitude imponente, de imperturbável serenidade; marcada altivez, voz clara, bem alto)

Mas quem se arroja perturbar a clausura,
A uma hora destas?!... E noite escura... cerrada...
Oh! que louca e despropositada aventura!...
Mal se vê ainda... Não clareou a madrugada!...
 

        (Calou-se o coro de vozes e órgão, próprio das orações da manhã; sente-se o tilintar de espadas, chegam mais freiras, estabelecendo-se certa confusão. Sem se saber como, a portaria abre-se e entra um grupo de Cavaleiros, desordenadamente. A Madre Abadessa, sem perder o seu aprumo, fala-lhes então em voz forte, transparecendo a sua emoção, sendo ouvida com respeito).

Em que lei vos firmastes?.. Com que fundamento,
Nos viestes causar, assim, tão grande turbação,
Desrespeitando, de taI forma, o nosso encerramento,
E quebrando o silêncio que é devido à oração?!...

CAVALEIRO

        (Com respeitoso acento, fazendo leve reverência à Madre Prioresa)

Creio que sereis vós. Senhora... certamente,
A Madre Superiora, Abadessa do Convento?!...

DONA BRITES LEITOA

Decerto, indina o serei... mas para isso... realmente,
De Deus houve benévolo, generoso assentimento...

CAVALEIRO

        (Aproximando-se mais de D. BRITES LElTOA, e já com mais reverente aparência)

Não há razão para que... tanto vos perturbeis;
Que em vós se dissipe... de vez, esse terror...
Não está aqui... nenhum bando de infiéis:
Desapareça, sem demora, todo, e qualquer temor!...
O que nos trouxe cá foi uma causa justa e santa!  
/ 135 /

         (Mais animado)

E não sairemos já, desta remota Vila de Aveiro
Sem ir também connosco a Senhora Infanta...
Hemos de livrá-l'A, deste apertado cativeiro!...

        (Faz menção de sair, no que é acompanhado pelos outros Cavaleiros, sendo-lhes os passos sustados pela fala da Prioresa)

DONA BRITES LEITOA

        (Com energia, desassombradamente)

Blasfemais! Sois injusto! Não estranheis que o diga!
Pois se a real Princesa, e Senhora mui nossa
– Como era fervente desejo seu, e tenção bem antiga
Aqui entrou... Quem há aí, que censurá-l'A possa?...
Para isso, de el-Rei seu Pai, houve consentimento...

        (Muda de tom, com carinhoso acento)

E só carinho... o mais respeitoso e o mais vivo amor
Ela achou aqui... logo, desde o primeiro momento!...
Que tudo vos perdoe, pois... Deus Nosso Senhor!
Falastes de forma bem imprópria... desarrazoada...
E um gesto desses... não merece... a ninguém... louvor. . .

CAVALEIRO

Sinto, Reverenda Madre... ter de aqui... vos dizer,
– E avalio bem a mágoa que vos isso vai causar
A Senhora Infante não pode aqui permanecer,
E a opinião em que está... de vez, tem de abandonar:
Ao Pai... ao Irmão... e não a vós... Ela deve obedecer!...

         (Voz mais animada)

Para a Corte, sem demora... haverá então de voltar...

DONA BRITES LEITOA

        (Com a mesma atitude. Confiante, e segura de si)

Altos e santos... são sempre os divinos Decretos
E quando Deus por seu poder, determina... lá do Alto,
Por desígnios seus... misteriosos... e secretos...
Morre em nós a dúvida... desaparece o sobressalto!...
Só o Supremo Juiz essas coisas... a julgar virá,
Cumprindo-nos, somente, seus mandados acatar...  
/ 136 /

        (Mudando de tom, em complemento duma ideia)

E será também a Senhora Princesa, quem resolverá
Se há-de sair desta Casa... Ou se há-de cá ficar...

CAVALEIRO

        (Aproximando-se ainda mais da freira, em voz moderada, como que subjugado, ante a forma decidida e peremptória como ela lhe falou. Entrega-lhe um pergaminho enrolado, que ela recebe)

Como quer que seja... Dignai-vos dar imediata conta
Desta ordem, que escrita por El-rei, aqui trazemos:
Para que a Senhora Infanta em breve esteja pronta;
E todos – sem embaraço... à Corte regressemos...

DONA BRITES LEITOA

        (Tomando o rolo que o Cavaleiro lhe dá. Atitude resignada, humildemente)

Como serva... tão pobre e humilde, tenho de cumprir...
E partirei neste momento... sem haver mais detença,
A executar a missão que vindes de me incumbir...
Dentro de momentos... estarei em sua real presença.

        (Sai, a passos ligeiros)

PAJEM

        (Surge em cena, com modo apressado. Faz vénia ao Cavaleiro)

Sua Alteza, o Príncipe Dom João, é já chegado!...

CAVALEIRO

Parto, sem demora, ao seu encontro: podeis-lhe anunciar
Que à Senhora Abadessa entreguei já o seu recado;
E que a Senhora Infante, sabedora dele deve estar...


        O Pajem sai, fazendo vénia, e logo após sai também o Cavaleiro, em marcha cadenciada.  Sobe outra cortina de fundo para se passar ao quadro seguinte.  
/ 137 /

   
ACTO II

QUADRO II

   

        Arcada gótica, no Mosteiro de Jesus. Após ligeiros momentos em que a cena está deserta, ouve-se o som de vozes, em diálogo, aparecendo depois o PRÍNCIPE D. JOÃO e a MADRE BRITES LEITOA.

PRÍNCIPE

        (Aspecto grave; veste de negro, em sinal de dó; barba de dias, manifestando o mesmo também; fala pausadamente, em continuação do que já vinha expondo)

Mas... errada coisa, foi, Senhora... esta... que fizestes!...
Por isso, eu agora, bem pesaroso e anojado estou...

        (Voz forte, tom repreensivo)

Como fostes... sem nos ouvir... impor as religiosas vestes
À Infanta?!... El-rei é triste... e a Corte assim ficou...
E também o Clero... todas as Ordens e a Nobreza,
Reprovam – mui rija e asperamente – uma tal acção!
Se logo após o Baptismo, o Reino a jurou Princesa,
Em tempo algum, poderá tomar o estado de Religião...
Tamanho desacerto não havemos nós de permitir!...
E antes – de toda a forma – temos de tal decisão contrariar:

        (Enérgico, peremptoriamente)

A Senhora Infante, terá de, comigo, hoje mesmo seguir,
Pondo de lado o errado propósito de aqui continuar...

        (Em progressiva elevação de voz, para terminar agrestemente)

E se todos esses povos, em seus protestos magoados,
– E tão justos! – se continuarem a levantar
(2)
Nem que aqueles muros tenham de ser 'scalados
Aqui entrarei a qualquer hora!... Para comigo a levar!!!...
/ 138 /

DONA BRITES LEITOA

        (Palavras e atitude da mais completa humildade; mas segura nas suas afirmações e procedimento havido)

Sabeis bem, Senhor, que já naquela... tão afastada era,
Em que à saudosa Madre vossa servi, e à Senhora Infante,
Obediência lhes prestava: Só fiz agora... o que então fizera...
Em cumprir seus mandados... nunca hesitei um instante;
E como eu... procedem as Irmãs desta humilde Casa,
Que muito lhe querem... e a respeitam mui inteiramente!...

        (Com mais acentuado sentimento)

Ela é... para todas nós... seguro Norte... protectora asa...
Sempre o seu conselho ouvimos... sábio... tão prudente!...

        (Mudando de tom, a modo de explicação)

E foi apenas por o haver em muita vontade e gosto,
E por mais de uma vez mo haver assim ordenado,
Que o santo hábito dominicano eu lhe hei imposto;
E Ela – com viva consolação de espírito – o há tomado!...
/ 139 /

PRÍNCIPE

        (Sempre de aspecto brusco, sacudido, dando passos agitados)

Mas nem a tudo há que obedecer dessa forma... cegamente...
E para tal acto vosso não devo ocultar minha censura:
Hemos, agora, que remediar o mal feito... Certamente,
– Nisso convenho – a intenção, foi... talvez... pura...

        (Torna a alterar-se, para falar mais agrestemente)

Um caso assim... Negócio de tão alevantada monta,
Que ao próprio Reino riscos graves poderá acarretar,
Bem o devíeis ter tomado em mais ponderada conta...
A tanto, o vosso ânimo... não se deveria aventurar!...
Mas não podem as palavras... tal caso, agora... resolver...
E nem é coisa, afinal, que convosco se haja de tratar...
É com a Senhora Infante que terei de me entender:
Por mercê, ireis dizer-lhe que a'stou aqui a aguardar...

        (D. Brites Leitoa sai logo, fazendo discreta vénia)

PAJEM

        (Que momentos antes esperava ao fundo que o Príncipe acabasse de falar. Dirige-se a ele, com reverência)

O senhor Bispo de Évora, que ora saiu da igreja
Está à disposição de Vossa Alteza, para vos falar:
Poderá vir a qualquer hora; mesmo que noite seja...
E pediu-me que, dada vossa ordem, o fosse logo avisar.

PRÍNCIPE

        (Com o mesmo aspecto severo, procurando entretanto mostrar agrado pela notícia)

Levareis, desde já, ao Reverendíssimo Prelado,
Com o meu agradecimento, o mais vivo saudar:
Que muito o louvo por não ter hoje aqui faltado.
E que, dentro de momentos, o estarei a esperar...
Que de tudo, na ocasião própria, será avisado.

        (Vai ao encontro da Infanta, cuja próxima chegada pressente. Como anteriormente, vem Ela acompanhada da Madre Brites Leitoa e de quatro freiras. Fica atónito, / 140 / em atitude de ansiosa expectativa, mal a encara; de súbito, aproxima-se dela, beijando-lhe as mãos, o que Ela lhe faz também (3). Recua uns passos para, após breve pausa, que ele aproveita para com mais demora a fixar, declamar então, com sentida emoção)

Como vos desconheço!... Mas que estranho aspecto!!!
Tão outra estais... Inteiramente desassemelhada!...
Oh!... Se não fosse este íntimo sentir do meu afecto,
Não creria que fosseis vós... assim... amortalhada!...
Como pudestes então... minha Irmã... dessa maneira,
Ocultar o airoso porte... envolver o rosto, cheio de frescura,
Nessa vil roupagem... tão dura... e tão grosseira?!...

        (Depois duma pausa, sentidamente)

Fazendo dela, pr'a vossa mocidade... mesquinha sepultura!...

        Leva as mãos à cabeça e, em desalentado aspecto, encosta os cotovelos à coluna do Claustro.

INFANTA

        (Com acento de muita humildade. Voz suave, pausadamente)

Bem vindo sejais, meu Irmão, de mim muito prezado;
Grandes louvores ergo ao Senhor, por aqui vos ver:
Mas sinto que desta vinda me não tenhais avisado,
Para, de melhor forma, neste lugar, vos receber...
Contente da vossa presença... O mais, ponho de lado...

        (Com mais animada entoação)

E se é tão vivo o gosto de vos ver aqui junto de mim,
Pesa-me bem, que ao vosso desejo... não possa aceder,
Saindo deste Mosteiro... Foi decerto esse, o assinado fim
Que vos trouxe a Aveiro... Começo-me agora a convencer.  
/ 141 /

        (Com segurança íntima, ainda que com emoção)

Esse pensamento... Senhor... seja por vós abandonado!...

       (Animando-se, numa exaltação de fé e sentimento)

Há muito tempo, que a mim mesma eu não pertenço,
Por juramento que fiz!... bem firme!... Eterno!... Sagrado!...
Em servir a Deus... em adorá-l'O... agora eu só penso!...

PRÍNCIPE

        (Com magoado acento, procurando convencer)

Dessa forma... mui o nosso Reino ireis prejudicar... (4)
E nele devíeis ter pensado: era isso, do dever, satisfação...

        (Em mais animado tom)

Esta terra de Heróis, anseia novas Glórias alcançar:
Não quer dar por finda sua tão alta e nobre missão!...

        (Com patriótico entusiasmo)

Rasgar novos mares... mais infiéis chamar pr'a Deus!...
É minha, e de nosso bom Padre, suprema aspiração!...

INFANTA

        (Em réplica imediata, com viveza)

Tudo isso eu bem sei!... Para que m'o lembrar, Senhor?...
Crede: fundo e vivo respeito me merece o vosso intento:
Vai para vós a minha admiração e o meu justo louvor...
Mas ficando eu aqui neste santo e pobre Recolhimento,
Que mal é que ao Reino poderei eu, assim, causar?...
Por mercê de Deus, el-Rei nosso Padre, vivo inda está,
E, por Misericórdia divina, a vida se lhe há-de dilatar...  
/ 142 /

PRÍNCIPE

        (Dando o mais vivo sentimento à declamação)

Mas, se a vossa Fé pura, e devoção quereis satisfazer,
Toda a nossa terra é um altar, que para o céu se eleva;
E em qualquer parte, a Deus, louvores podereis erguer...
Lá fora... no mundo... há também luz... não é só treva,
E à Fonte do Amor Divino, quantas almas vão beber?!...

        (Em heróica evocação)

Logo no seu começo, para Deus... o Reino ergueu as mãos,
Ajoelhado neste solo p'lo sangue d'Heróis regado;
Rei, povo e vassalos, sempre... sempre foram Cristãos...
E com o martírio de Santos, foi este chão sagrado!

        (Com funda emoção, Vibrante)

Sobre as vagas do mar... alterosas... ou serenas,
As velhas naus levaram sempre em suas velas
– Como num alvo trono de marfínias açucenas
A sanguínea Cruz de Cristo, no alto, a esvoaçar!...
Sacudida, branda... levemente... ao sabor d'aragem,
Para que ao romper do dia... logo ao despontar,
Os bravos capitães seus e toda a sua marinhagem,
A saudassem reverentes, num primeiro olhar!...
Era assim que procedia, sempre, este bom povo...
E com o que ora digo... não deixareis de concordar:
Por isso... este gesto vosso... inda mais reprovo...

INFANTA

        (Mantendo a mesma serenidade, mas com certa animação na sua fala)

E quem ousou, algum dia... de tal coisa duvidar?...
Dessa acrisolada fé... da heróica e provada valentia
De tantos soldados que correram o mundo a batalhar,
Trazendo ao Reino tanta honra e glória... dia a dia?...

        (Com afabilidade, num repto de brando acento)

E porque não sereis vós o continuador dos outros Reis,
Que a tantos povos – por seus feitos – causaram inveja?!...
Por direita e justa lei, não sois vós que depois sucedereis,
A nosso Padre?... Inda que, por Deus – bem tarde seja?... 
 / 143 /

PRÍNCIPE

        (Com modos persuasivos; manifesta emoção)

E não poderemos ser nós pelo inimigo atraiçoados,
Se ambos tivermos de por nossa terra nos bater?...
Ficando nos campos de batalha... mortos... destroçados...
Quem no Reino... depois... nos haverá de suceder?...

        (Ainda que triste, mudando para agreste atitude, para no final retomar o tom sentimental, tocado de tristeza)

Pois bem, Senhora... esse passo... tão mal avisado!...
Vejo que teimais em não o querer, desde já, remediar:
Mas... não será definitiva a tenção que heis tomado...
Praza antes a Deus que bem cedo a venhais a alterar...
E não repareis que eu... assim de luto e dó trajado,
Ante vós me apresente: não o faço... por menos amor...
É antes um sinal vivo... do quanto me há penalizado
Este vosso gesto... praticado em inteiro desfavor...
Meu e do Reino... quando... de vós... mui havia a esperar!...

        (Em palavras concludentes, acento magoado)

Podereis então retirar-vos... desde já... se vos aprouver...
Não devo a Sua Reverendíssima, agora, demorar.
E sobre este caso... farei decerto o que ele me disser...
Seu conselho amigo... e autorizado... bem é de acatar...

        (Após uma pequena pausa, ar de conselho)

E o mesmo vos cumprirá a vós, também, fazer...
Ouvindo o douto Prelado... conselheiro prudente;
Como serva de Deus... que vós dizeis agora ser,
Não podereis... por nada... proceder diferentemente!...

        (A INFANTA faz vénia, afasta-se discretamente com as irmãs, enquanto o Príncipe se volta para o Pajem que está postado junto dum ângulo da quadra)

Uma vez ainda, vós ireis manifestar ao ilustre Prelado,
– Com perdão, pela demora – o meu reconhecimento:
Dizendo-lhe que, neste lugar, por mim é já esperado
A partir de agora... deste preciso momento...   
/ 144 /

        (Caminha alguns passos, para loho se dirigir à entrada do Claustro, de encontro ao Prelado, que entretanto chegou, e ao qual beija o anel imediatamente, manifestando regozijo com a sua presença e falando-lhe logo)

Prelado bem digno da minha estima: mui assinado amigo:
De todos, sois para mim, muito estimado e principal...
Grato vos fico, por mais uma vez, terdes vindo ter comigo
Nesta hora triste... Talvez que nunca... eu tivesse outra igual!...

BISPO DE ÉVORA

        (Aspecto e atitudes solenes, dando seguro tom de convicção à fala)

É confiar em Deus... no seu grande, imenso poder...
Embora da Senhora Infanta seja afincada opinião


Não sair deste Mosteiro... poderá... afinal... reconhecer
Que não deverá... ao menos agora... entrar em Religião...
Guardo comigo o vosso extenso e claro memorial.
Mais uma vez lhe vou falar... e sem mais detença.
Conto que minha acção e propósito ela não julgue mal...
Permitireis – que me encaminhe já, à sua presença...

        (Despede-se do Príncipe, com funda vénia. Este, beija-lhe novamente o anel e vai acompanhá-lo até à saída. Depois percorre silenciosamente a cena, até que se senta num arquibanco, apoiando a cabeça entre as mãos. Atitude pensativa. Fala só)

PRÍNCIPE

Sobre que duros escolhos... incertezas... quanta dor?...
O trono dos Reis tem sempre o seu assento!...
E quanta mais glória o doira... e se ergue ao seu redor,
Parece que tanto maior é para eles o tormento!...
Como eu me sinto hoje!... abatido... amarfanhado,
Sob o peso, esmagador, duma tão funda amargura!...

        (Ergue-se repentinamente, num repto de grande exaltação de espírito)

Senhor!... Se o meu procedimento tem sido errado,
Que se abra já!.. – e aqui mesmo! – a minha sepultura I...

        (Dá alguns passos mais, agitadamente)      / 145 / [ Vol. XVIII - N.º 70 - 1952]

BISPO DE ÉVORA

        (Que ouviu ainda as últimas palavras do Príncipe)

Senhor!... Senhor!... O que é isso?... Que dizeis?!...

PRÍNCIPE

        (Pára, subitamente, para logo correr ao encontro do Bispo, a quem fala com afabilidade)

Ah!... Sois já vós... tão depressa... Dom Garcia de Meneses?
Que novas há?... Melhores notícias agora me trazeis?...

BISPO

        (Quase a medo. Falando compassadamente)

São tão boas... real Senhor. .. como das outras vezes!...

PRÍNCIPE

        (Que ao ouvir o Prelado procura dominar-se, fala com acentuada calma, em tom de resignada conformação)

Não há que ver... tinha de ser assim... hei que o aceitar!...
Estava isso já... no livro do meu destino assinalado...
Não tenho... pois... agora... nada que estranhar...
Que inglória resultasse a missão que hei tomado!...

          (Solícita, afavelmente)

É chegada então para vós... a hora de partir...
O vosso rebanho anseia pelo abnegado pastor,
Afastado dele estes dias, por terdes de aqui vir:
Perdoai este sacrifício, de que eu fui causador...
Eu vos confirmo – nesta hora – o meu apreço,
Por favores de que continuo a ser-vos devedor,
E provas de afecto... que, decerto, não mereço!...

        (Faz vénia, como significando que findou a fala, e acompanha o Bispo, que, a esta indicação, logo se retira. Para o Pajem que ali está postado com outros)

Ide vós, novamente... junto da Madre Prioresa;
Anunciai-lhe que espero aqui a Senhora Infante:
Que lhe rogo a sua vinda, com a maior presteza,
E que a demorarei junto de mim um breve instante...   
/ 146 /

        (Fica pensativo, andando de um lado para o outro, em cena muda, até que a Infanta assoma após breves instantes; como sempre, acompanhada da Madre Prioresa e das quatro, freiras. Antes, porém, dá ordens referentes aos preparativos da jornada, ao outro Pajem)

E vós, de meu mando, ireis também determinar
Que as andas e os corcéis, tudo seja aprontado:
Pois quero sair enquanto a noite não baixar,
E, da minha missão, breve serei descarregado!...

        (Para a Infanta, que já ao fundo aguardava que acabasse a fala ao Pajem)

Forçou-me o coração a que, ind'antes de me retirar,
Vos pedisse – uma vez mais – que mudásseis de tenção;
Para, na Corte, o lugar que vos é dado, irdes ocupar,
Dando, assim, a nosso Padre e ao Reino grã satisfação!...

INFANTA

        (Humildemente, ainda que segura na sua resolução)

Despedi-me de vez... Senhor... de tudo que é mundano!
E só aquelas leis divinas, que por Deus são ditadas,
Com sentido de vida eterna, sublime, sobrehumano,
Serão por mim – doravante – seguidas, acatadas...

        (Suplicante, erguendo as mãos, animando-se para o final da fala)

Por isso, não me embaraceis mais estes caminhos...
Quando eu transpus os umbrais do Mosteiro de Jesus,
Foi para cingir a fronte... com a coroa de espinhos,
E só quero para meu ceptro... uma singela cruz!...
(5)

PRÍNCIPE

        (Fora de si. Atitude de perfeito desvairamento; cresce impetuoso para a Infanta, para logo recuar, enquanto as freiras a rodeiam, sendo nessa altura abraçada pela Madre D. Brites Leitoa. Voltado na direcção delas, violento)

Pois que se saiba então aí... e até no mundo inteiro,
Do meu gesto!!! Não importa, sequer, que alguém mo vá 'stranhar!...
/ 147 /
Mas eu... não sairei já desta deserta Vila de Aveiro
Sem, aos pedaços, essas mesquinhas vestes vos rasgar!...
(6)

        (Aproxima-se mais da lnfanta, parando de súbito e olhando em roda, enquanto, discretamente, a lnfanta e as freiras saem pelo fundo. O Príncipe dá mais alguns passos, desordenadamente, para, a meia cena, declamar em lance rápido, exaltadamente)

Oh! heróis antigos!... cujo sonho de aventura,
Vos impeliu a lances tão duros e arriscados:
Ajudai-me a suportar hoje esta grande tortura;
Escutai os meus sentidos... angustiosos brados...
Intrépidos lutadores!... Oh! bravos marinheiros,
Em mil perigos e lutas, sempre bem provados!...
Oh! Cruzados santos... Destemidos guerreiros,
Soldados de Portugal!... Por Ele... sacrificados...
Gente que arrostou o mar, nas frágeis caravelas:
Que vos norteie, mais uma vez – o mesmo Ideal;
Enfrentai – novamente – as vagas e as procelas,
Ainda por amor desta nossa Pátria bela, e imortal!...
Rasgai de novo o mar... Tomai pr'aqui o rumo...
E quer chegueis de noite... ou pelo entardecer,
Quando dos casais se desprende o primeiro fumo;
Ou já pelo dealbar... o sol afogueado a romper
Beijando docemente o casario desta marinha terra...
– E recordando as mais heróicas e longínquas façanhas,
Que em suas páginas a nossa História encerra...

        (Com bem marcado sentimento, evocando)

Fomes... sedes... cativeiros... Acções tamanhas!
Aportai então aqui... É outra Cruzada santa...
Hemos que, por Deus, pela Fé e pela Pátria triunfar:
Entrai nestas sombrias quadras, para falar à Infanta:
E o que Ela esqueceu... Vinde-lh'o vós lembrar!!!

Pano rápido

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SOARES DA GRAÇA

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(1) Assim era tratada no Convento. Memorial, pág. 117.

(2)«... ho princepe furybũdo e muy descõtente se demostrou aa madre prioressa...» Memorial, pág. 123. O Protesto foi em 1471. 

(3) − «E beyjãdo as mãos a el rrey seu padre e ao princepe seu Irmãao... Memorial, pág. 97.

(4)«Dizia-lhe antre outras pallavras mostrãdo sse muito agravado, que a dita Senhora sua Irmãa lhe era cõtrayra e como treedor»... MemoriaI, pág. 128. 

(5)...«nõ tomees mais trabalho, nẽ ho dees a my...» «nõ curasse de tentar ẽ a rrequerer pera casamento cõ nehũu mortal homẽ». Memorial, pág. 135. 

(6) «Tornou outra vez ho princepe de novo aa Senhora Ifante que leixasse o avyto e se tyrase de aquella openyam... vierõ a dizer cõ ynpeto e sanha que determinadamẽte lhe Rõperyã hos avytos que vestidos tiinha...» Memorial cit., pág. 124.

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