CONVÉM
acentuar, antes de mais, que se não pretendeu, com este trabalho,
apresentar uma obra de investigação, aliás desnecessária. em face da
publicação da curiosíssima Crónica e Memorial da Infanta, onde pode
ler-se, reproduzido na íntegra, e doutamente prefaciado e revisto por um
ilustre escritor do nosso Distrito – a quem a cultura nacional já tanto
deve – o precioso códice quinhentista que sempre se guardou
cuidadosamente no Mosteiro de Jesus, e ao qual os numerosos escritores
que no decorrer dos tempos biografaram a Santa Princesa foram colher os
elementos para isso necessários, amoldando-os e ajeitando-os a seu gosto
e estilo; o que vai ler-se, tudo foi ainda sugerido na leitura da
Crónica referida, a que os séculos, sobre ela já dobrados, não conseguiram apagar o perfume, de suave e enternecedor encanto,
que de suas linhas venerandas se desprende.
Procurou-se unicamente aproveitar e pôr em cena a natural teatralidade
existente em alguns dos acontecimentos passados no Convento de Jesus com
a Infanta, historicamente comprovados, e que, por assim dizer,
consubstanciam o impressionante drama que foi a sua vida, mística paixão
e morte.
Focámos em especial a
chegada de D. Afonso V e da Infanta ao Convento, a
comovedora cena da tomada de hábito, e com isso e pouco mais se
preencheu a 1.ª parte do Auto, que, por comodidade de expressão, se
rotulou de 1.º acto; no 2.º apresenta-se ao público o violento conflito
entre a Infanta e o Príncipe seu irmão, vigorosamente contado na
Crónica, e a doença e subsequente morte da Santa.
É, pois, mera série de quadros históricos, e em rigor assim se lhe devia
chamar; isto se declara em devido tempo, para desagravo do classicismo
da técnica teatral, que de forma alguma pretendemos atingir com este
nosso simples e desataviado Auto...
Quanto à forma rimada que se lhe deu, afigurou-se-nos condizer melhor
com a solenidade do tema. O leitor tudo perdoará.
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108 /
1452 |
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1952 |
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PERSONAGENS |
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INFANTA |
REI D. AFONSO V |
PRÍNCIPE D. JOÃO |
D. BRITES LEITOA |
MARGARIDA PINHEIRO |
BISPO DE COIMBRA |
IRMÃ CATARINA |
IRMÃ PORTEIRA |
BISPO DE ÉVORA |
IRMÃ VIOLANTE |
IRMÃ SACRISTÃ |
AIO DA INFANTA |
IRMÃ
INÊS |
FREI JOÃO DIAS
(Confessor
da Infanta) |
|
E AINDA
O FÍSICO-MOR DE AVEIRO – D. MECIA DE ALVARENGA –
D. FILIPA (tia da Infanta); estas, personagens mudas.
Coros de freiras de S. Domingos – Fidalgos – Pajens – Escudeiros
– Clérigos – Damas de Honor da INFANTA, etc., etc.
EM AVEIRO – SÉC. XV
PRÓLOGO
Batidas as três pancadas do estilo e corrido o pano, começam a ouvir-se, entre bastidores, coro de freiras e órgão, por breves
momentos. MARGARIDA PINHEIRO – a delicada cronista do Convento de Jesus
e da Infanta, lerá. sentida e pausadamente, junto a uma cortina de fundo, o trecho da Crónica em que se descreve a
entrada da Princesa no Mosteiro e a vinda do Príncipe D. JOÃO a Aveiro,
com o fim de a retirar dali
(1).
A freira dominicana está sentada num tamborete, junto de mesa baixa,
coberta com sanefa verde; vai lendo devagar, e pontuando, com pena de
pato – como se na própria ocasião redigisse a narrativa. Em cima da mesa
um Cristo, devocionários, um tinteiro antigo, de estanho, etc. Luz
frouxa, irradiando da candeia junto à mesa.
/
109 /
«Aos quatro dias do mes de agosto do ãno do Senhor de Myl quatrocentos e
setenta e dous . Entrou a dita Senhora princesa a Senhora Iffante dona Johana nossa Senhora neste moesteiro de Jhesu nosso Senhor . Entrãdo cõ
ella dentro . Ellrey seu padre. E o princepe seu Irmãao
e a Senhora dona ffelypa sua tya . E a monja dona micia
dalvarẽga que a dita Senhora trouvera cõ licẽca de sua
abadesa do moesteiro de udivellas. Stavã Ja prestes pera
Receber a dita Senhora Ifante . a madre prioressa britiz
leytoa . e a madre Maria datayde . e outras madres das
mais antiiguas cõ muita devaçõ e lagrimas de alegria e
gozo divinal . misturado cõ themor de deus . por veerẽ uma tam grande e
nõ costumada obra sua nõ vista nẽ ouvida ẽ nossos tẽpos . As outras
Religiosas todas cõ
grãde prazer stavã no Coro e devotas oracoẽs Recolheytas, dando muitos louvores ao Senhor deus . Entrou a
dita Senhora per a manhãa acabãdo de ouvir myssa na
Capella e Igreja de Jhesu . vespera de nossa Senhora das neves E de
nosso padre sã domingos»...
Entretanto, ouve-se o toque da sineta conventual, chamando
para o coro, erguendo-se então a freira do seu lugar e saindo
com presteza, juntando, antes, as folhas de pergaminho em que escrevia.
Pega na candeia e leva-a, ficando a cena às escuras. Afastada
entretanto a cortina de fundo, aparece logo a cena seguinte:
Sala do Capítulo no Mosteiro de Jesus, de Aveiro. Preparativos para ali ser recebido el-Rei D. Afonso V, acompanhado da sua comitiva régia, de que fazem parte a INFANTA
DONA JOANA e seu Irmão o PRÍNCIPE D. JOÃO e outras
figuras da Corte. Mobiliário e adornos da época, num ambiente
sóbrio, modesto, mas austero, solene. Algumas freiras, que se vêem
distribuídas pela sala, andam açodadas no seu arranjo,
limpando, arrumando e ajeitando as coisas. Caminham ligeiras, febrilmente, de um lado para o outro, com visíveis mostras da grande
alegria que lhes inunda a alma. Vêem-se dois tronos: um ao fundo, mais alto; outro com menos degraus, à direita.
No primeiro, que será ocupado pelo Rei, há dois cadeirões, ficando
um deles vazio, e sendo o outro ocupado por D. AFONSO V.
No trono mais baixo ficará a INFANTA, ladeada pela Monja
D. Mecia de Alvarenga, que veio de Odivelas, e por D. Filipa,
tia de Dona Joana.
/
110 /
IRMÃ VIOLANTE
(Erguendo-se do chão, onde assentava uma esteira. Para
a outra IRMÃ:)
Esta vinda assim... de el-Rei e da Senhora INFANTA
Que logo pela
manhãzinha nos foi anunciada,
É que a todas – tão vivamente! – nos encanta! ...
É já alta
recompensa, p'lo Divino Mestre dada,
As muitas boas obras da santa
Madre Superiora;
(Olhando para o alto, modo evocativo)
Que com tantas fadigas! ... e com tamanha devoção!...
Fundou este
Mosteiro... e p'ra ele escolheu – numa feliz hora,
O nome de JESUS – que a preceito lhe ficou, por santa invocação!...
(Retoma o trabalho, mas ouve primeiro o princípio da
réplica da companheira)
IRMÃ CATARINA
(Pára de trabalhar, dizendo, em resposta)
Não há pois que haver temor... nem mesmo qualquer receio...
Tudo é... certamente... determinação de Deus,
Como vós dizeis... e eu muito bem o creio...
Hemos só que elevar a alma, com gratidão, aos céus!...
DONA BRITES LEITOA
(Entra pelo fundo, E. Apressada, nervosa, sem parar, demonstrando viva
satisfação. Para as Irmãs presentes)
Apressai-vos, boas Irmãs, não pode haver demora...
A régia comitiva está perto, vem mesmo aí a chegar:
Pelo que dizem, já se avista na estrada, lá de fora!
Vieram ali agora, tocar à portaria, p'ra nos avisar...
(Muda de tom, com afabilidade)
Não esmoreçais, pois, nesta devota canseira,
Que é serviço de Deus e desta nossa Casa...
Tenho de ir ao coro, mas volto já... numa carreira...
/
111 /
(Com ar muito alegre, voltada para o alto)
Senhor!... Todo o meu
coração... de amor se abrasa!...
(Sai apressadamente)
IRMÃ CATARINA
(Acenando com a cabeça em modo de confirmação)
Não pode, na verdade, ter tudo isto outro sentido!...
É sobrenatural Graça: prémio generoso e santo
Para o Mosteiro; que a todos... foi assim preferido...
E a que a Princesa, – de há muito! – queria tanto...
(Retoma a sua tarefa, benzendo-se)
DONA BRITES LEITOA
(Que volta. Sempre apressada. Aponta para a parede, e
sem parar um instante, atravessa a sala, observando tudo,
parando aqui e além, etc.)
Mas não puseram ainda... além... o reposteiro!...
São talvez poucos
bancos... Acho bem ali os cadeirais.
(Mirando de longe)
O trono vê-se melhor... Está assim mais sobranceiro...
(Falando para todas as irmãs)
É preciso ver, se falta alguma coisa mais!...
IRMÃ VIOLANTE
(Curvando-se, em respeitosa vénia, depois, de mãos dadas,
aproximando-se um pouco da Superiora)
Dizei, Reverenda Madre, tudo o que é mister
Pois só aguardamos vosso
justo mandado...
IRMÃ CATARINA
(Com atitude idêntica à da outra Irmã)
Faremos tudo... tudo quanto vos aprouver...
E que o nosso Divino Salvador seja louvado!...
/
112 /
DONA BRITES LEITOA
(Põe a mão na testa, como querendo despertar a memória.
Dá novo relance de olhos para tudo)
Não sei agora... se El-rei concederá audiência...
Mas creio que desta
vez não virá pr'a demorar...
O Clero e Nobreza devem prestar-lhe
reverência:
Com todas estas coisas... teremos de contar!...
Além disso,
algumas Damas da Vila, e Donzelas,
Querem vir aí saudar a INFANTE,
senhora nossa;
Havemos de ter aqui lugar para todas elas...
(Numa atitude de súplica, para o alto)
Ajudai-nos, Senhor: Que, a tudo, prover se possa!...
IRMÃ VIOLANTE
(Solicitamente, dando uma ideia)
Podiam vir mesmo dali... daquela Sacristia,
Os dois bancos maiores... não serão precisos mais...
DONA BRITES LEITOA
(Concordando com o que foi lembrado)
Sim... forram-se de qualquer tapeçaria...
E ficarão melhor; no tamanho, até, são quase iguais...
(As duas freiras saem, não esperando qualquer ordem para
ir buscar os bancos, fazendo reverência à Madre Superiora. D. Brites
Leitoa dá uma última vista de olhos a tudo, parando
aqui e ali, mudando ou ajeitando qualquer móvel ou adorno,
sendo entretanto surpreendida pela irmã Porteira que surge,
repentinamente)
IRMÃ PORTEIRA
(Traz molho de chaves, tilintante, pendente da cintura.
Atitude alegre, ainda que perturbada; faz vénia à Superiora, declamando
com entusiasmo)
Reverenda Madre!. .. EI-rei é já chegado!...
Aguarda no Claustro, onde
ficou a repousar,
Pois que, desta jornada, ele é bem fatigado.
Convosco, porém, se queria, desde já, avistar...
/
113 /
[Vol. XVIlI - N.º 70 - 1952]
DONA BRITES LEITOA
(Que exterioriza grande satisfação. Ansiedade nas perguntas, transparecendo o pensamento que tem fixo na INFANTA.
Aproxima-se mais da Irmã Porteira)
E traz com ele grande
acompanhamento?...
Não vísteis também a Senhora INFANTE?!...
IRMÃ PORTEIRA
(Com manifesto alvoroço. Muda de tom; ar de evocação)
Até há pouco, não dei que entrasse no Convento...
E o que vi... foi a correr; num rápido instante...
Mas!... grande séquito é! Fidalgos, Pajens, Escudeiros!...
E mais
pessoal lá da Corte!... Até homens armados!...
E um grupo numeroso, de
aprumados Cavaleiros!...
Muita gente!... Muita gente mais, que nem sei quem seja!...
Se me não
engano, estavam juntamente dois Prelados!...
DONA BRITES LEITOA
(Que sentiu mágoa por a irmã não lhe dar conta de ter visto a Infanta,
fala em ar de conformação, e depois, com acento mais decisivo)
Então... Irmãs... Talvez que a Senhora Princesa,
Se dirigisse, em
primeiro lugar... à nossa igreja...
Vou ter com El-rei... (em àparte) Foi rezar... com certeza!...
(A Irmã Porteira sai, logo que D. Brites Leitoa lhe diz ir falar com o
Rei, fazendo vénia. A Superiora dá ainda uma rápida vista de olhos a
tudo que a rodeia, parando depois, a meio da cena, olhando para o
Crucifixo que está sobre a porta, na parede. Tom exclamativo)
Perdoai-me, Senhor!... É um pensamento errado!...
Mas parece que até
receio... de crer em tudo isto!
A Princesa real, dar aqui entrada?!... Viver a nosso lado?
Fazer-se,
como nós... Uma pobre IRMÃ DE CRISTO?!!...
(Erguendo os braços, arrebatadamente)
Que grande alegria!... E que alentadora esperança!...
E para este
Convento?... Que risonho porvir...
/
114 /
Rejeitou os ceptros da Inglaterra e da França,
(2)
E só a Vós, Senhor!... Ela quer amar... e quer seguir!...
(Cena deserta, por momentos, até que surgem duas freiras que
transportam um dos bancos grandes, seguidas por outras duas
que conduzem outro; vem ainda outra Irmã que traz de braçado
o reposteiro que vai colocar no varal próprio, por detrás dos
cadeirões régios. As irmãs, que trouxeram os bancos, entregam-se, afanosamente, ao trabalho de os forrar com as sanefas que uma outra
irmã veio trazer, pouco depois)
IRMÃ CATARINA
(Sobre um pequeno escadote, estendendo o reposteiro, examinando-o e
procurando acertá-lo com o vão. Para a irmã
Inês)
Vêde vós, minha Irmã... que sois aí mais perto:
Ficará bem assim?... Não
pende para este lado?...
Reparai, se em baixo, junto do chão, está bem
certo,
Ou se é preciso puxá-lo... Parece-me engelhado...
IRMÃ INÊS
(Que suspende o trabalho em que estava ocupada, aproximando-se mais,
para melhor examinar)
Não vejo nada... nada... que tenhais de alterar:
A meu ver... está todo ele mui bem ajustado...
Foi Nosso Senhor quem nos aqui veio ajudar...
Por isso... agora... nada há que ser modificado.
IRMÃ VIOLANTE
(Que acabou de pôr as sanefas e que se havia afastado da cena alguns
momentos, aparece, a correr, com visível alegria,
aproximando-se das companheiras que a vão cercando, para
ouvi-la. Com gesto rápido, falando nervosamente)
Retiremos, boas Irmãs: estão muito aproximados;
Como agora mesmo, ali,
daquela varanda observei,
Vem as Damas e os Pajens, todos agrupados...
/
115 /
(Com mais expressivo tom de alegria)
E à frente... a nossa Santa Madre com EI-Rei!!!...
(Saem todas, a passo ligeiro)
Chegada do Rei D. Afonso V e da sua comitiva â Sala do
Capítulo, a cuja entrada é saudado pela Prioresa do Convento.
DONA BRITES LEITOA
(Com ar solene, Mas acento de humildade, mal transpõe a
entrada da cena)
Real Senhor!... Que em boa hora deis aqui entrada,
Com vossa excelsa
Filha: a Senhora INFANTE!...
Tal vinda é, – para todas nós – uma radiosa alvorada
De ventura: para
muito sacrifício, galardão bastante!...
(Atitude humilde, suplicante, olhando À volta)
Perdoai esta simplicidade... toda esta pobreza...
Bem quereria antes... agora... neste lugar,
Receber-vos, com aquele brilho e grandeza
Que mereceis. Mas disto... não podemos nós passar!...
D. AFONSO V
(Ar imponente, ao mesmo tempo que fala em voz afável.
Palavras bem marcadas, pausadamente)
Nesta casa de Deus... sagrado templo de oração,
(Aponta para o alto, curvando a cabeça)
Só Ele – hoje e sempre – é verdadeiro REI...
Mas por vossa respeitosa, e tão elevada, saudação,
Vos ficamos gratos: é do fundo d'alma... bem o sei!...
(Curva a cabeça ligeiramente, e todos tomam os seus lugares, que D. Brites Leitoa indicara, coadjuvada por outra
IRMÃ. Depois de todos sentados, o REI continuará a fala, voltado agora para a
INFANTA. Expressivo sentimento)
Filha minha... mui querida... do meu coração!...
Esperei sempre que a
doce e viva luz do teu olhar,
/
116 /
Fosse para mim radioso sol... um brilhante clarão,
A guiar-me, neste
percurso qu'inda tenho p'ra trilhar
Na estrada da vida... onde os meus
passos arrastados,
(Muito pausadamente, viva emoção)
De incerto andar, vão seguindo
– já tão vacilantes
Duros e ásperos
caminhos... e, embora demorados,
Me avizinham da velhice e da morte...
não distantes...
(Com mais acentuado sentimento)
E nesta esperança... suave enlevo... eu fui vivendo,
Julgando ver-te
sempre, a meu lado, p'la vida fora...
Para os meus desgostos, tal
pensamento ia sendo,
Um bálsamo salutar... Mas a tenção que heis tomado agora,
De te
acolheres a este santo, mas tão desviado Mosteiro,
Faz-me viver hoje uma
triste... bem amargurada hora...
Pois vou regressar à Corte... e
deixo-te em Aveiro!...
(Evocando, numa recordação grata)
Bem diferente foi... cheio de alegria, aquele momento,
Que há anos
nesta terra, e aqui também, então passei:
Ao lançar a primeira pedra na igreja deste Convento...
(3)
Nesse dia –
entre vivas saudações – nesta Vila entrei!
(Conformado, mas com acento de magoada expressão)
Mas... se a minh'alma foi invadida p'la maior desolação,
Por vós – tudo
eu aceito – e, afinal, me resigno a sofrer:
Já que me afirmais lograr
íntima, espiritual consolação
Em tomar este retiro... e algum tempo aqui
viver!...
(O Rei curva ligeiramente a cabeça, em discreta vénia, sinal de que
acabou o que tinha a dizer)
INFANTA
(Apresenta-se com as vestes reais da época. Desloca-se do grupo das suas
Damas de Honor, que, em vestes de gala, estão à sua roda sentadas nos
degraus do trono, onde, ladeando-a, em mochos, se vêem também a Infanta
D. Filipa sua tia, e a Monja D. Mecia de Alvarenga, que veio com a
Princesa do Mosteiro de Odivelas. Encaminha-se, a passo lento, até junto
/
117 / do REI, a quem toma as mãos, beijando-lhas. Declamação vagarosa; muito
sentimento)
Grata vos beijo as mãos, Senhor!... Meu Pai amado!...
Porque a tão vivo
desejo meu, não pusestes impedimento:
Grande mercê foi, esta... que ora
me heis outorgado...
Ficarei então aqui... neste piedoso e são
Recolhimento.
A protecção divina vos ampare, até ao alento derradeiro,
Dilatando-vos
Deus a vossa tão preciosa e tão útil vida,
Assim como ao Príncipe meu Irmão, da Coroa herdeiro,
Para expansão da
nossa Fé, e lustre desta terra querida...
(Com vénia respeitosa ao Rei, termina a fala, indo logo ocupar o seu lugar, em passo lento, cadenciado)
D AFONSO V
(Com visível e carinhoso sentimento, logo que a lnfanta se senta no seu
cadeirão)
Que esses carinhosos votos, sejam por Deus ouvidos!...
Pois sem a
celeste ajuda... não serei eu capaz,
– Com tantos anos e trabalhos sobre mim volvidos
De vencer a mágoa que este afastamento traz...
INFANTA
(Com acento de crescente animação)
Jamais, Senhor... de tal acção, tereis arrependimento:
Pois tudo quanto por nós é feito, para dar glória a Deus,
E se alicerça em delicado e verdadeiro sentimento,
Atrai sempre as mais abundantes graças, lá dos Céus!...
(Com expressiva humildade e o maior sentimento, após uns momentos de
reflexão)
E... em verdade. .. eu já não quero agora ser mais nada,
Do que
desvaliosa oferta... inda que de Vós mui querida,
Que, pela protecção
divina... tão largamente dispensada,
Ofereceis ao Criador, em nome
desta Pátria agradecida...
D. AFONSO V
(Tristemente, em palavras terminantes)
Imperando em vós esse místico anseio... como vejo,
Nada mais acrescento; guie Deus, sempre, vossos passos:
E agora... só me resta pedir-vos... é o meu último desejo...
Que do
filial amor vosso, não afrouxem, nunca, os laços!...
/
118 /
(Palavras repassadas do mais vivo sentimento)
E então... como isso assim vivamente vos apraz
Ide... desde já... até
junto dessas boas Irmãs
Buscar contentamento... a felicidade... e a paz,
Que brotam das suas almas... tão simples... tão sãs!...
(A lnfanta beija novamente as mãos do Rei e sai, juntando-se-lhe a Madre
Prioresa, as freiras e o resto da sua comitiva. O Mordomo-mor e dois
Pajens vão acompanhar até ao fundo)
D. AFONSO V
(Para o Clero e Nobreza, com expressão repassada de melancolia,
buscando-os, a todos, com o olhar)
A vossa presença, neste lugar... junto de mim...
Agora, que sinto a alma ansiosa, atribulada,
– Envolta numa tristeza que só comigo terá fim –...
Tornou-a mais confiante... calma... resignada!...
A todos... antes de partir... eu quero assinalar
Meu reconhecimento: uma profunda gratidão,
Pelo carinhoso preito que vindes de me prestar;
E me prendeu – tão estreitamente – o coração...
(Curva levemente a cabeça, dando por finda a audiência.
O Mordomo-mor adianta-se logo e indica para saírem: em
primeiro lugar, Pajens, Escudeiro, Fidalgos; por fim o Clero. O Rei,
mantém-se de pé e todos lhe fazem reverência ao passar em frente do
trono)
PRÍNCIPE
(Que assoma pelo fundo, olhando em volta, caminhando a passo largo,
desordenadamente, sustando a saída do Rei, já nos últimos degraus do
trono. Atitude de manifesto desassossego, agreste, falando alto, nervosamente)
Senhor! Tenho estado só!...
oculto... a reflectir,
No procedimento havido... que foi tão desacertado!...
Acabando ambos, afinal... por vir assim a consentir
Que a Infanta saísse de Lisboa e
tivesse aqui entrado!...
Esta longa distância... um tão grande
afastamento...
Tudo o mais que depois disto se poderá desenrolar...
Sairá jamais, deste acanhado e impróprio Convento?...
Quem nos assegura
que não virá, nele, a professar?!...
/
119 /
(Mudando de tom, aproximando-se mais, moderando gesto e voz)
Não lhe prometestes vós edificar um mosteiro novo,
Onde lhe aprouvesse?... Escolheria até o seu lugar...
Faria assim
vossa vontade... a minha... e a do povo...
Evitando sérios danos que,
dum acto desses, podem resultar!...
Bem ficaria em Coimbra... no
Mosteiro de Santa Clara,
Como era de todos nós avisada e mui segura
opinião...
Ali floresceram tantas e tantas almas de virtude rara...
Como
aquela Santa Rainha – Dona Isabel de Aragão!
(Moderado de principio, para terminar em tom exaltado)
Mas a Infanta – em meu parecer
– é de nós bem despegada:
Para Ela... como
diz – só existe agora a Lei de Cristo.
Reino, Corte, Pai, Irmão... Tudo... tudo isso é nada!!!
Como já, por
mais de uma vez – magoado tenho visto!...
(Dá alguns passos, agitadamente, até que pára, atraído pela
réplica paterna)
D. AFONSO V
(Que tem ouvido o Príncipe com espanto, pelo inesperado modo como se
apresentou e se lhe dirigiu, procura, afinal, sossegar-lhe o espírito,
falando-lhe com brando acento)
Não será bem assim... Aquietai o vosso pensamento...
Se... como
creio... a voz de Deus foi ouvida pela Infanta,
Respeitemos, todos, esse
divino, sagrado chamamento...
Reis cristãos... hemos de acatar uma coisa
que é bem santa!...
Ficar para sempre... aí?... Não será talvez o seu
intento...
(Divagando, e procurando convencer, voz suave)
Não seriam os seus rogos... porfiadas, e devotas orações
Tocadas do
vivo amor, em que andava já enlevada,
Que tanto nos ajudaram nas
africanas expedições?...
Vê de o que foi a nossa última e gloriosa
jornada!...
Entreguemos isso, por agora, à Divina Providência:
Deixemo-la seguir esta sua tão pura inclinação...
Se Deus sempre usou connosco da maior indulgência,
Estorvar tal passo... devereis convir... é ingratidão...
PRÍNCIPE
(Que ficou de longe, ouvindo a fala do Rei, misto de espanto
e interrogação, parecendo não alcançar o significado de tal atitude.
/
120 / Aproxima-se mais do trono real, a passo lento, ar meditativo, para, de súbito, exclamar, em crescente arrebatamento)
Assim será!... Mas, à fé de quem sou, eu vos garanto
Que, se a Infanta,
algum dia, o hábito aí tomar,
Poderá surgir-me em frente, desfeita em pranto,
Mas o meu ímpeto – não conseguirá ela embargar!...
(Fora de si, violento, desvairadamente)
E perante uma acção dessas... arrojada... e tão estranha!
– Se o Reino, em minha vida, de ela precisar
Aqui virei buscá-la!... Nem que para isso eu tenha
De todas essas toscas e férreas grades arrombar!...
Sai, abruptamente, ficando o Rei, acompanhado dos Pajens,
em atitude extática, olhando-se mutuamente em ar de interrogação.
Pano rápido
INTERVALO
►►►
SOARES DA GRAÇA |