A
Infanta pediu à madre prioresa, D. Maria de Ataíde, que entregasse a
Jorge da
Silva «o Espinho da coroa de Nosso Senhor o Jesus Christo que fôra da
Araynha dona Izabel sua madre que o ouve do ho Iffante dõ pedro seu
padre que
tão mau fim tivera».
(Crónica da Fundação da Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da lnfanta
Santa Joana, pág. 187).
CONTA-SE no Antigo Testamento que as árvores se lembraram de eleger um
rei.
Convidaram a oliveira, a figueira e a videira, mas elas recusaram o
trono.
Dirigiram-se, por fim, ao espinheiro e disseram-lhe:
– Vem e reina sobre nós. E ele respondeu:
– Se em verdade quereis que eu
reine
sobre vós, vinde e repousai à minha sombra; mas, se não quereis, saiam
dos
meus espinhos dardos de fogo, que devorem os cedros do Líbano.
Esta soberania do espinheiro no reino vegetal ficou sempre misteriosa
para a
humanidade antiga. Foi preciso que Deus viesse ao mundo, para que o
símbolo
e a figura se convertessem em realidade.
Na manhã de Sexta-feira Santa, estava Jesus a ser escarnecido no
pretório de
Pilatos. Para divertirem a multidão
que reclamava a sua morte, os soldados romanos cravaram
uma coroa de espinhos na cabeça do Senhor. Jesus percorreu a via
dolorosa e
agonizou no Calvário, coroado com esse diadema sangrento.
Então se verificou a soberania do espinheiro sobre as outras árvores. O
mesmo
cedro do Líbano foi vencido.
[Vol. XVIII -
N.º 70 - 1952]
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98 /
Jesus reina pregado na Cruz, mas são os espinhos que lhe escrevem na
fronte a carta de realeza, em letras de sangue.
Diz a tradição que essa coroa se não perdeu. Conservada por muito tempo
em
Jerusalém, passou depois ao
tesouro imperial de Bizâncio e no século XIII às mãos do
rei S. Luís. Dispersaram-se, porém, os espinhos, porque
não havia família real que não desejasse relíquia da coroa do Senhor.
Numa das suas viagens pelas «sete partidas» do mundo, o infante D.
Pedro,
filho de el-rei
D. João I, conseguiu trazer um dos espinhos para Portugal. Precisávamos
dessa
relíquia, quando pareciam abrir-se para nós todos os caminhos da glória.
A
nossa epopeia havia de custar sacrifícios que seriam incomportáveis sem
a
lembrança do sacrifício supremo da Redenção.
Todo o esplendor da segunda
dinastia, desde Aljubarrota a Alcácer Quibir, se esbate num fundo roxo
de
tragédia. Para termos a
glória imensa desses dois séculos,
quantas orações silenciosas, quantos martírios ignorados, quantas
lágrimas
contidas! A chama da glória
(1) humana alimenta-se de sangue, a alegria gera-se na dor.
Não tardaram a experimentá-lo os filhos de D. João
I. É D. Fernando, cativo em Tânger,
mártir em Fez. E D. Duarte e D. Henrique, amortalhados em tristeza desde
o
cativeiro do irmão. E esse próprio infante D. Pedro, morto tragicamente
na
várzea de Alfarrobeira.
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99 /
Continua a dinastia, continua a glória, e o martirológio continua.
Quem havia de herdar a relíquia do espinho? A rainha D. Isabel, filha de
D.
Pedro, casada com seu primo D. Afonso V. Que dramas se não passaram no
coração desta mulher! Para amar o marido, ter de esquecer o sangue do
pai e a
desgraça dos irmãos... Pouco nos diz a história, da meia dúzia de
anos que ela ainda viveu. Sabe-se que foi três vezes mãe: mãe de um
príncipe
que morreu menino, mãe de D. Joana que foi santa, mãe de D. João II que
foi «o
príncipe perfeito».
Com menos de quatro anos de idade, a princesa Joana ficava herdeira
daquele
sagrado espinho que lhe falava do sangue de Cristo e do sangue de um
avô, das
lágrimas de Nossa Senhora e das lágrimas de sua mãe. Onde o havia de
guardar? Cravou-o no coração. Nisto se resume a história da sua vida.
Como notou o papa Bento XIV na bula de canonização da Rainha Santa
Isabel, a
Providência divina quis distinguir a Nação portuguesa, dando-lhe na
família real mulheres de extremada virtude.
Umas têm os nomes inscritos nos álbuns da santidade. Outras, embora não
subissem à apoteose dos altares, foram modelo de educadoras ou espelho
de
governantes. E algumas parece que foram eleitas por Deus rainhas de
martírio e
colocadas no calvário da Pátria, como a Virgem Dolorosa junto à Cruz.
A Princesa D. Joana pertence à dinastia das Virgens,
Santas e Mártires da Pátria.
A sua vida decorre no período mais surpreendente da história dos
Descobrimentos. Nascida em 1452, quando as
ondas do Atlântico e o litoral africano começavam a revelar-nos os seus
segredos, morreu Santa Joana em 1490, quando a ideia do caminho marítimo
para a Índia já era mais do que um sonho. Pero da Covilhã e Afonso de
Paiva
andavam na sua viagem de aventura, e Bartolomeu Dias regressara a Lisboa
com a nova de ter dobrado o Cabo Tormentório – o Cabo da Boa Esperança!
Como é que, numa época em que o espírito dos portugueses andava
maravilhado com a narrativa de tamanhos feitos, pôde salvar-se do
esquecimento a figura duma princesa penitente, recolhida em mosteiro?
Pela
mesma razão por que o sol não faz esquecer as estrelas.
Se considerarmos atentamente a história, veremos que são tanto mais
densas
as sombras quanto mais vivas as claridades.
/
100 / Altos desígnios de Deus, que faz avultar os contrastes nas
épocas de
maior grandeza, para que os homens não esqueçam, um só momento, a
fragilidade da sua condição.
A segunda metade do século
XV, porque foi de enorme progresso, foi de
profunda miséria; porque foi de incomparáveis esperanças, foi de indizíveis receios. Como havia de raiar na
terra a
aurora de Quinhentos, sem as noites incertas veladas pelos nossos
marinheiros,
no dorso das caravelas, à rola das ondas? Como poderia a velha Lusitânia
dar ao mundo, sem dores, os novos mundos?
Santa Joana foi estrela dessas noites, a pedir às suas irmãs, estrelas
do
hemisfério austral, que revelassem a sua luz aos olhos dos nossos
navegadores.
Foi virgem que se ofereceu a martírio pela Pátria, para que esta não
sofresse
tanto na sua missão maternal.
Compreenderemos ainda melhor o lugar que ela ocupa entre os eleitos do
céu,
se alongarmos os olhos pela história da Igreja, que é ainda então a
história da
Europa.
Contava a nossa princesa pouco mais de um ano de idade, quando lá no
Mediterrâneo oriental sucedeu uma grande desventura.
Na antiga Bizâncio, mirando a Ásia, fundara o imperador Constantino uma
basílica dedicada à Sabedoria Divina – Haggia Sophia. Ampliou-a e
enriqueceu-a
o imperador Justiniano que, na festa da sua dedicação, exclamou, num
transporte de alegria: –« Glória a Deus, que me julgou digno de realizar esta obra.
Venci-te, Salomão!»
Foi Santa Sofia a igreja mais célebre de todo o Oriente, mas a sua
glória cristã
começou a empalidecer desde que saiu da cidade a coroa de espinhos.
Em 29 de Maio de 1453, os turcos apoderaram-se de Constantinopla. Maomé
II
entrou a cavalo na basílica, avançou até ao altar-mor, ajoelhou em cima dele e proclamou:
– «Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!». Clero e fiéis, ali
refugiados,
morreram a fio de espada. E o templo ficou, até hoje, consagrado ao
culto do
Islame.
Tomada Bizâncio, os turcos largaram à conquista da Europa cristã, com
uma
violência que só foi quebrada, ao fim de dois séculos, na batalha de Lepanto.
Roma tremia pela sorte do Ocidente. O papa Calisto III convidou os
príncipes
cristãos a organizarem nova Cruzada contra os infiéis, mas já iam
proliferando
os bacilos que desentranharam na peste protestante. Só o rei de Portugal
fez
preparativos sérios de Cruzada. Malograda a expedição contra os turcos,
passou à África e conquistou Alcácer Ceguer.
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101 /
Entretanto, diz o Memorial da vida da Princesa,
D. Joana crescia e
passava a
meninice na corte, criada e servida como rainha. Cresciam também os
projectos,
nem todos felizes, de D. Afonso V...
Enquanto os turcos iam
avançando lentamente na Europa, corriam velozes
as
nossas caravelas pela costa africana. Quem poderia então imaginar que a
ruína
do poderio muçulmano estava na dilatação do Império português? E que as
orações da menina Princesa, quando deixava os brinquedos e se recolhia
ao
seu oratório, acordavam com a voz dos mártires da igreja de Santa Sofia?
Os anos foram volvendo. Desabrochou a Infanta nas graças da mocidade.
Diz-se
que Luís XI, rei da França, ao ver o seu retrato, ajoelhou e «deu
graças e
louvores ao Senhor Deus» por ter criado beleza tão perfeita.
Ficou em Aveiro um retrato desse tempo: a Infanta
em trajo da corte, com seus adereços e precioso diadema. O rosto, quase
infantil, é sério e triste. Nem os lábios nem os olhos sabem sorrir. Se
ainda hoje
lhe dissermos, como
Miguel Ângelo ao «Moisés»: Fala! – aquela figura de mágoa e mistério
inclinará a cabeça, a aliviar-se do peso da coroa,
e responderá em doce murmúrio: – Quem me dera num convento!
Ora o convento, o seu convento, que não podia ter outro
nome senão o de Convento de Jesus, estava a erguer-se em Aveiro. Não
era só
a fundadora, D. Beatriz Leitão, quem tinha pressa em o concluir. As
obras
andavam tão rápidas que, segundo a voz do povo, «os oficiais lavravam de
dia e os anjos de noite.»
No paço, a vida de D. Joana era já uma espécie de noviciado. Debaixo dos
vestidos principescos, ricos colares e firmais de pedraria e oiro, trazia
grosseira estamenha e ásperos cilícios. Em meio das festas da corte,
recolhia-se ao oratório em preces e penitências. Enquanto lhe
preparavam
régios casamentos, andava ela, noiva de Cristo misericordioso, a cuidar
de
pobres e enfermos. Enfim, já escolhera o seu brasão – a coroa de espinhos
– que
bordou com as próprias mãos em todas as peças de vestuário e mandou
esmaltar nas jóias e gravar na baixela.
A muitos se afigurava que este ideal martirizante
podia pôr em risco o trono de
Portugal. Mas a Infanta sabia muito bem o que fazia. É preciso que
alguém
sofra, para que os outros triunfem. Facilmente se perdem coroas de oiro,
quando
lhes falta o suporte da coroa de espinhos.
O ano de 1471 foi o mais glorioso do reinado de
D. Afonso V. Passando a Marrocos com o príncipe D. João,
/
102 / el-rei impôs o domínio português em Arzila e Tânger. Anda
a memória dessa expedição nos versos de Camões:
Maravilhas em armas, estremadas
E de escritura dignas elegante,
Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Mais afinando a fama portuguesa.»
Quando voltou a Lisboa, o monarca podia intitular-se «rei de Portugal e
dos
Algarves, daquém e dalém mar em África».
D. Joana vestiu-se da cor da esperança para receber
o pai e o irmão. Também ela sonhava com um novo título, que fosse no
império
da humildade a réplica dos do império da grandeza. Já subira de Princesa a Infanta. Ascenderia
mais uns degraus: de Infanta de Portugal a freira de convento, de
freira ao nada,
do nada a Deus...
O Africano, que via o mundo com outros olhos e o media por outra escala,
não
compreendia semelhantes ascensões. Todavia, para não contrariar, em tal
momento, a única filha
que tinha, abraçou-a a chorar e concordou: – Pois sim, minha
filha. Serás o que Deus quiser...
O príncipe e os grandes da corte não se conformaram com esta resolução.
Levantaram obstáculos, imaginaram novas propostas de casamento. Temendo
pelo seu sonho, a Infanta deixou o paço e foi recolher-se ao mosteiro de
Odivelas. Mas o seu lugar não era ali...
No mês de Março de 1472, começou
a aparecer sobre o
pequenino convento de Aveiro um misterioso sinal no céu.
Brilhava mais que as estrelas e projectava intenso feixe de luz em
determinados
pontos da casa. Acendia-se ao descair da noite e apagava-se subitamente
ao
romper da alvorada.
As freiras viam-no sempre, por mais velada que estivesse a atmosfera e
as
nuvens encobrissem a luz dos astros. Como interpretar aquela maravilha,
que a
todas causava temor e espanto?
A 4 de Agosto, chegou ao mosteiro a Infanta D. Joana, acompanhada do
pai e
do irmão. Ouviu missa na igreja de Jesus e incorporou-se logo nos actos
da
comunidade.
A partir da noite desse dia, ninguém mais viu sobre o claustro o meteoro
luminoso. Era ele o mensageiro celeste precursor da Infanta. Era ela a
nova e
maravilhosa luz deste convento.
Deixemos agora a Infanta naquele recolhimento de espírito e abstracção
do
mundo, que era o ideal da sua alma e que, para martírio seu, lhe não
consentiram
em vida.
/
103 /
Toda a gente de Aveiro sabe que está no convento de Jesus a única filha
do rei
de Portugal. Por que teria ela escolhido aquele lugar? Os mais velhos
lembram
que
D. João I, quando voltou da jornada de Ceuta, doou a vila de Aveiro ao
infante
D. Pedro.
– Grande homem, o Senhor Infante. Foi ele quem mandou erguer os muros
desta vila, em que ainda trabalham operários...
– Há vinte e tantos anos que o mataram na batalha de Alfarrobeira. Era o
pai da
Rainha que Deus tem, mas não
chegou a conhecer esta netinha...
– Que saberá ela das desavenças entre o pai e o avô?
– Os maus
conselheiros é
que envenenaram tudo.
D. Pedro não queria tirar a el-rei D. Afonso o trono de
Portugal...
– Finou-se, talvez de desgosto, a rainha D. Isabel. E agora aí temos a
Infanta nossa Senhora, tão linda, mas com um sorriso de amargura...
A vila de Aveiro parecia-se nesse tempo com a Infanta
– linda e triste!
Casas
baixas, dominadas pelos torreões da muralha e pelos campanários das
igrejas.
Não chegaria a contar 5.000 habitantes. Muitos homens andavam por longe,
mareantes e mercadores. Outros ocupavam-se na faina da pesca, no amanho
do
sal e na construção de navios.
Às vezes, chegava uma notícia alegre, como quando
João
Afonso descobriu o reino de Benim; mas, no geral, vivia-se em cuidados.
Luto e
lágrimas, por tantos que morriam em
naufrágio. Tremuras e febres, por causa da pestilência que varria
periodicamente a nossa beira-mar.
Deus, que criara tão azul este céu, tão viçosos estes campos, tão
cristalinas as
águas da lagoa, impunha pesado tributo aos olhos a quem ofertara esta
opulência de cores na sinfonia da luz.
D. Joana gostava de Aveiro, a que chamava a sua «Lisboa pequena», e
amava
aquele convento, «alma da sua alma». Deixemo-la, porém, à sombra do
claustro,
na obscuridade e no esquecimento em que desejaria ter vivido.
. . . . . . . . . . . . . .
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Tinha a Infanta vinte anos quando bateu à porta do mosteiro. Estava no
esplendor
da juventude, realçado em graça angélica pela pureza e elevação do sonho
interior.
Dezoito anos já passaram. Ei-la agora às portas da eternidade: rosto
emaciado
e pálido, olhos ainda refulgentes de esmeralda mas a afogarem-se nas
órbitas.
Não passam em vão o tempo e a dor...
A 11 de Maio, no momento em que outrora se acendia sobre o claustro o
meteoro
luminoso, estavam as freiras de
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104 /
Jesus ajoelhadas em prece ao redor do leito da moribunda. Com uma
lucidez em
que já brilhavam claridades do além, era ela quem ia indicando, em voz
flébil, a
ordem das orações.
À meia noite, vendo-a exausta, a madre prioresa, D. Maria
de Ataíde, aproximou-lhe dos lábios um pouco de cordial.
– Madre, murmurou a Santa, já não é tempo. Lede a
Paixão do Senhor...
Começa a leitura evangélica, segundo o texto de S. João. Jesus é preso
no
Jardim das Oliveiras e levado à presença de Anás, que o interroga sobre
a sua
doutrina.
Responde Jesus: – Eu falei publicamente ao mundo; pergunta às pessoas que
me
ouviram! A estas palavras, um dos guardas dá-lhe uma bofetada, dizendo:
– É
assim que tu respondes ao pontífice?!
Santa Joana pede que lhe levantem o braço e, estendendo a mão, bate no
próprio rosto: – Ó Senhor, que por meus pecados tanto quisestes padecer,
perdoai-me e salvai-me!
As religiosas mal podem conter a comoção. A prioresa passa-lhes o missal
e vai
avisar os bispos do Porto e de Coimbra, chamados nos últimos dias a Aveiro,
de que a Santa não tarda a morrer.
A Paixão continua. Na manhã de Sexta-feira Santa, Jesus é conduzido ao
pretório de Pilatos. O governador romano não lhe encontra crime algum;
mas,
para agradar aos judeus, manda-o flagelar. É então que os soldados
entretecem
a coroa de espinhos e a põem na cabeça do Senhor.
Santa Joana solta um profundo gemido e lembra-se do
relicário que pertenceu à mãe e ao avô...
– Salve, rei dos judeus! – dizem os soldados, escarnecendo de Jesus.
... E ela, contemplando aquele espinho que também escrevera com sangue
divino a carta de realeza na fronte do Senhor, exclama: – Ave, espinho,
remédio
da dor!
Jesus, condenado à morte, vai agora a caminho do Calvário. Já o pregam na Cruz e começa a dolorosa agonia...
De pé, junto à Cruz, está a Virgem Santíssima e o apóstolo S. João.
Jesus,
esquecendo a sua dor para consolar os que choram, diz ao discípulo: –
Eis a tua
Mãe!
A Santa acrescenta: – Senhora, mostrai que sois minha
Mãe!
Jesus pronuncia as últimas palavras:
– «Tudo está consumado!». Inclina a cabeça e morre.
A Santa sobrevive à morte do Senhor, põe os olhos no crucifixo, junta
as mãos
e move os lábios em palavras que só Deus ouve. Correm-lhe da cabeça e do
rosto grossas bagas de suor...
/
105 /
Num instante, porém, demudam-se-lhe as feições, anima-se a face, alegra-se o olhar, e ela refulge de esplendente
beleza, como se lhe batesse em cheio a luz da eternidade.
– Digam a ladainha! – suplica enfim.
Um sacerdote começa a invocar a Santíssima Trindade,
a Virgem Maria, os Anjos e Arcanjos, os Patriarcas e os
Profetas, os Apóstolos e os Evangelistas, e chega às palavras: – Omnes Sancti Innocentes...
Neste momento, diz o Memorial, «se abaixaram e caíram suas formosas mãos
que até aquele passo levantadas tinha ante a Cruz, e assim subitamente
se cerraram seus formosos olhos, e assim se tirou aquela claridade de
todo o
rosto». Os sacerdotes ergueram as mãos ao céu e exclamaram: – «Com os
Santos Inocentes se foi!»
A saudade que a Santa deixou no seu mosteiro foi logo compensada pela crença de que ela trocara a vida penitente pela vida
gloriosa.
No dia do enterro, viu-se como as
plantas, tomando à letra o apólogo do Antigo Testamento,
reconheceram a soberania da coroa de espinhos do seu brasão.
Na cerca do convento tinha a Infanta
o seu pomar e jardim, onde em horas vagas lhe aprazia descansar em conversa com as freiras. Conheciam-na as árvores e as ervas, que ela mesma
regava
com extremos de carinho. Naquela primavera, todas se vestiram de folhas
e
toucaram de flores à espera da Infanta, mas ela não apareceu. Por um dia
de
Maio, começou a desfilar entre os canteiros um solene e estranho
cortejo. Em breve compreenderam tudo. Era a Santa que
passava, a caminho da sepultura. Nunca mais a tornariam
a ver. Que homenagem lhe haviam de prestar? Caíram as folhas e formaram
tapete pelo chão. Soltaram-se as pétalas das flores e espargiram-se sobre a urna funerária. E as árvores e
ervas
secaram, para nunca mais darem fruto nem flor. O seu novo jardim era o
céu.
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Mais de quatro séculos e meio se desfiaram, desde que o corpo da
Princesa
Santa ficou depositado no coro baixo da igreja de Jesus. Nem tanto era
preciso
para que ele se confundisse na poeira a que todos volvem, e este nome de
Joana fosse pétala morta entre as páginas do «livro de horas»
da Pátria.
Com o perpassar do tempo, afogam-se na cinza do esquecimento as mais
altas
memórias humanas. Lá o disse
VIEIRA: – «Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta,
tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto
mais
a corações de cera!»
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106 /
Atreveu-se o tempo a fechar as portas daquela casa, a emudecer o salmear
das
freiras, a derruir o trono de Portugal.
Dormem D. Afonso V e D. João II no mosteiro da
Batalha, menos vivos para a gratidão do seu povo do que
o próprio «soldado desconhecido». Quantos heróis, quantas
glórias nossas, não cobre a asa do tempo no panteão da
História, que raros visitam!
D. Joana é celebrada entre luzes e cânticos e flores.
Desceu do paço à penumbra do mosteiro, mas subiu do
túmulo à glória dos altares.
Mesmo para o tempo, vale alguma coisa ser santo. Não
se rasga nas urzes da terra o manto com que Deus veste no
céu a escrava ou a princesa. Dissolvem-se no pó as coroas de oiro, mas
floresce em rosas a coroa de espinhos.
Só porque foi Santa, D. Joana é luzeiro sempre aceso no
firmamento da Pátria, a indicar aos portugueses, até ao fim dos
tempos, o caminho por onde se sobe do nada, a Deus.
P.e MIGUEL DE
OLIVEIRA |