APESAR do grande embate de
opiniões políticas, filosóficas e religiosas que se operou entre nós nos
fins do século XIX e princípios do século XX, a história e o culto da
Princesa-Infanta-Santa em Aveiro mereceram sempre a atenção, a deferência e o respeito das camadas populares,
das pessoas ilustradas e das mais divergentes políticas.
Depois da morte da última professa do convento de
Jesus, em 1874, correu este convento o perigo de ser fechado
e de ser posto em almoeda o seu recheio, mas, a pedido de muitos
aveirenses, o governo manteve a unidade da antiga instalação monástica e
concedeu o edifício a uma congregação de Terceiras de S. Domingos que ali abriu o Real Colégio de St.ª Joana, para educação de meninas, entregando-se
a igreja e suas alfaias à Irmandade de St.ª Joana que para tal fim se
erigiu e ainda permanece.
Após a proclamação da República em 1910 e da consequente extinção das
Ordens religiosas, ainda a pedido de alguns aveirenses ilustrados, e com
o geral consenso, o Governo Provisório, sob propostas do governador
civil, Dr. Rodrigo Rodrigues, criou o Museu Regional, destinando-lhe o
edifício do antigo convento de Jesus e colégio de St.ª Joana,
ficando-lhe anexa a igreja das Carmelitas, sem, contudo, se obstar ao
culto nos locais a ele afectos.
Um dos principais obreiros da fundação do Museu e maiores propugnadores
da conservação daquilo que no convento de Jesus já era monumento
nacional, e da incorporação do seu recheio artístico no Museu Regional,
foi o dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS, distintíssimo aveirense, e histórico
democrata, que dirigiu ao Ministro da Justiça do
Governo Provisório, dr. Afonso Costa, uma extensa petição,
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larga e brilhantemente justificada em que enumerava as principais peças
de arte que urgia preservar e expor.
Entre elas
avultavam todas as que se relacionavam com a vida, morte e culto da
Princesa e Infanta St.ª Joana, filha de D. Afonso V e irmã de D. João
II, que em 1472 deu entrada no humilde
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mosteiro fundado por D. Brites Leitão, em cuja igreja o Rei lançara a
primeira pedra em 1462.
Desta forma se acautelaram todos os objectos de arte
pertencentes ao culto da Santa, e todas as suas recordações
existentes no antigo convento de Jesus, o que constitui,
ainda hoje, um fundo riquíssimo pelo seu valor histórico e
artístico, fundo esse de que Aveiro se ufana e que os visitantes
admiram e os fiéis veneram no Museu Regional e na
igreja de Jesus e suas dependências, onde História, Religião
e Arte se têm dado as mãos para se manter íntegro o valioso e venerando
património. Este facto é tão importante e impressionante e foi tão profícuo e feliz, que o falecido escritor portuense e
crítico de Arte, Dr. PEDRO VITORINO, o considerou como um grande milagre
da própria St.ª Joana.
A verdade é que tem havido, aqui, em todas as crises e emergências, bom
senso e respeito, zelo e carinho por essa herança, preciosa no material
e no moral, o que permitiu que na hora solene em que se comemorou o
quinto centenário do nascimento da Princesa e Infanta Santa, todos nós,
crentes, devotos ou meros admiradores da sua memória, das suas relíquias e do seu culto, tivéssemos a consolação do dever
cumprido para com
a História, a Arte, a Crença e os superiores interesses da cidade.
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Santa Joana nasceu princesa real em Fevereiro de 1452,
passou a infanta pelo nascimento do príncipe D. João em 1455,
ano em que perdeu sua mãe a rainha D Isabel, e veio a falecer, no
convento de Jesus de Aveiro, em 12 de Maio de 1490, com 38 anos de
idade, 18 dos quais ali passou em religião e voluntária clausura, dando
exemplos contínuos de bondade,
isenção, humildade e virtude que lhe granjearam fama de
santa e mereceram à Igreja, com a sua beatificação, a honra dos altares.
No Museu Regional de Aveiro guardam-se e expõem-se num cofre e numa
âmbula de cristal e prata, ao gosto do fim do século XVII, um anel do
seu cabelo e o hábito, rosário e cinto com que morreu na Casa do Lavor,
para onde fora transferida na sua doença, por ser a mais soalheira e
saudável do convento.
A Casa do Lavor, também conhecida pela cela ou casa da Santa, é, de há
muito, monumento nacional, porque foi revestida de riquíssima talha
dourada e transformada em capela ou oratório em 1737.
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Vários painéis alusivos à vida e morte de St.ª Joana ornamentam as
paredes, sendo a maior composição pictórica o curioso quadro do passamento, tal como o triste transe nos
é descrito no Memorial do Códice 872, atribuído a D. MARGARIDA PINHEIRO
que conviveu com a Infanta e ali mesmo recebeu o seu último suspiro.
O pintor colocou nos braços da moribunda o mesmo crucifixo gótico que se
vê hoje no altar do oratória e imaginou
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boca como um hálito e aguardada pelos bem aventurados na corte divina.
Noutros quadros laterais descrevem-se, como se ocorressem no princípio
do século XVIII, as cenas da recepção do Rei e do Príncipe vindos da
campanha de Arzila; da entrada da Infanta no convento; da saída de
Aveiro, por ordem real, quando da grande pestilência que assolou a vila;
da lenda ou visão do anjo em Alcobaça, dizendo-lhe que era já morto o
rei de Inglaterra com quem seu irmão D. João II a queria casar; da
tempestuosa vinda a Aveiro de D. João II com o arcebispo de Évora, D.
Garcia de Meneses, a dissuadi-la da profissão; do rei de França,
ajoelhando diante do seu retrato, e do seu funeral.
No mesmo oratório se expõe a sua imagem que, juntamente com a de S.
Domingos, sai na procissão da sua festa nos anos em que esta se realiza,
com hábitos de gorgorão de seda recamados de bordados de oiro.
Na igreja, que é toda revestida de talhas douradas dos séculos XVI,
XVII e XVIII, notabilíssimas pela sua beleza e
riqueza, há vários painéis a óleo e em azuleio, alusivos à vida
da Santa, sendo esses painéis do século XVIII, interessantes, mas sem
merecimento artístico excepcional.
Num altar do lado do Evangelho, no corpo da igreja, foi colocada uma
imagem de St.ª Joana, em madeira estofada e dourada, ostentando os seus
atributos de religião – a cruz e a coroa de espinhos da paixão de Jesus
Cristo que ela tomara por empresa ou por emblemas da sua heráldica, em
vez do brasão que de direito lhe pertencia.
No antigo coro de baixo, contíguo à igreja, ricamente
guarnecido de mármores e talhas, está o seu túmulo, todo
em mármores embutidos de excelente desenho e agradável combinação,
túmulo que é um dos mais belos monumentos fúnebres existentes no mundo e
sem rival no seu género de trabalho de embrechado.
Consta de uma arca quadrangular assente sobre um bloco de mármore de
Carrara, onde se esculpiu uma Fénix ardente e inconsútil, mas parece
sustentado por quatro querubins que, de mãos erguidas, se vêem, um a
cada canto.
Sobre a arca ossuária, outros quatro anjos ostentam o
escudo das armas do reino, encimado pela coroa real, entre volutas.
O trabalho artístico é de primeira ordem e apesar de haver muitos outros
lavores de embutidos no País, não se
reconhece obra mais delicada e perfeita do que a deste maravilhoso sarcófago de estilo barroco equilibrado, sóbrio e muito
digno na sua traça geral.
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O projecto deve-se ao arquitecto João Antunes, a quem
foi encomendado por D. Pedro II no fim do século XVII, mas
os mármores e a execução devem ser italianos, como MARQUES GOMES afirma.
A trasladação dos ossos de St.ª Joana para o precioso sepulcro, em
1711,
reinando já D. João V, foi objecto de
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grandes solenidades de que existe um circunstanciado relato com os autos
respectivos.
Na secção de tecidos e paramentos do Museu, guardam-se a bandeira da
Irmandade, de seda branca, tendo bordada a ouro uma lisonja partida ao
meio, com as armas reais de um lado e a coroa de espinhos do outro, sob
uma coroa de princesa; o pavilhão do sacrário e o paramento da festa,
tudo em lhama de seda e prata com bordados a ouro, de finíssimo gosto e
ponto delicadíssimo.
Na sala dos Primitivos, ou da pintura dos séculos
XV e XVI, no segundo
andar do edifício, entre dois riquíssimos reposteiros ou panos de armar,
de brocatel, do século XVI, tecidos em prata e ouro sobre fundo de seda
amarela e vermelha, vê-se o célebre Retrato de St.ª Joana em trajo de
côrte, tábua preciosa da segunda metade do século XV, pintada a óleo
sobre intonaco, que é um documento iconográfico inestimável e um dos
grandes valores da nossa pintura antiga.
O eminente crítico de Arte, JOAQUIM DE VASCONCELOS, não hesitou em
declarar que só por si esta obra justificava uma viagem a Aveiro.
Apesar de certos antigos retoques lhe terem alterado a expressão
original, o retrato dá-nos uma perfeita ideia do vulto da Princesa e dos
seus atavios, tais como a viu o artista que a retratou e que foi
minucioso e escrupuloso.
Mesmo que seja cópia de um retrato tirado por Nuno
Gonçalves, como, discutivelmente, opinou o dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, é
uma obra fidedigna, correspondendo à descrição de D. MARGARIDA PINHEIRO
no Memorial do Códice 872, códice que se guarda nos reservados do Museu
e felizmente dado à publicidade em 1939 pela benemérita iniciativa e
consciencioso estudo de dois dedicados aveirenses
(1).
É flagrante a semelhança fisionómica do modelo com certas figuras dos
Painéis de S. Vicente, do Museu Nacional de Arte Antiga, tidas como seu
irmão, o Príncipe, sua mãe a Rainha, e o próprio Santo a que os
personagens retratados prestam veneração.
Os olhos verdes e o anel de rubi asseguram-nos da veracidade de que hoje
não é lícito duvidar-se.
Há anos, quando da grande polémica sobre os famosos painéis do Museu
das Janelas- Verdes, eu perguntei se não será a própria Princesa Santa
Joana a figura feminina que se vê ajoelhada ao canto esquerdo do painel
do Infante e que
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veste um corpete impressionantemente decotado como o do retrato do nosso
Museu.
Suas mãos são igualmente esguias e finas, e seu olhar
nostálgico parece traduzir o mesmo estado de espírito e
revelar o mesmo carácter; alma entristecida e desiludida do
mundo, certamente pesarosa do sangue vertido na tragédia
da sua gloriosa família e ansiosa da contemplação e da paz
de Deus.
Nada explica, na verdade, que Nuno Gonçalves, ou fosse quem fosse que
pintasse os célebres painéis, se esquecesse
de retratar neles a filha estremecida do Rei, se, de facto, é
o Rei D. Afonso V a figura masculina que ajoelha em frente
do Santo, objecto da adoração.
Mas esteja ou não retratada nesse painel a excelsa filha
de D. Afonso V, do que nos não resta dúvida é de que o
quadro do Museu de Aveiro a representa veridicamente e de que a tábua
quatrocentista da nossa galeria é um documento
não só inestimável no património da cidade, mas na própria
história da Família de Avis e da Arte Nacional.
Outras representações históricas de Santa Joana existem
em Portugal, e o Museu de Aveiro possui mais dois pseudo-retratos. Nenhum deles, porém, pode ser tomado como
verídico, não passando de meras idealizações dos pintores,
sem corresponderem à realidade.
Mas o conjunto de todas estas relíquias, documentos e
objectos ligados à vida, morte e culto de St.ª Joana, é da mais alta
valia e constitui um tesouro de que todos somos
e devemos ser ciosos e briosos.
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Quis um dia o grande poeta AUGUSTO GIL, quando Director Geral de Belas-Artes, em 1925, que eu sucedesse ao
dr. José Pereira Tavares na direcção do Museu Regional
de Aveiro, fundado pela República em 1911 e organizado
pelo erudito historiador e arqueólogo JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES.
Coube-me, assim, sem o pedir e sem o esperar, a honra
de velar pela conservação e dignidade da sagrada e riquíssima herança
que, vai em cinco séculos, o destino entregou à nossa terra – a dos despojos da Princesa e Infanta-Santa e
a das suas enternecedoras recordações e tradições e religioso
culto.
Tenho a consciência de ter cumprido o honroso encargo
com um sentimento perene de veneração e respeito, harmonizando sempre o critério artístico, indispensável à boa ordenação
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96 / e conservação das espécies, com a espiritualidade da
destinação originária e do pensamento religioso e litúrgico
que não poderia alhear-se da expressão material embelezada
pela Arte.
Neste ano festivo da comemoração do 5.º centenário do
nascimento da ínclita Princesa, Beata da Igreja e Santa dos
altares, glória e lustre desta Aveiro que ela escolheu para seu
refúgio do mundo e sua mansão derradeira, o espírito aveirense que vive
dentro de mim sente o júbilo da solenidade
e compraz-se na contemplação das venerandas relíquias e no
culto das tradições inerentes que sempre foram apanágio e
honra da cidade e que esta apresenta íntegras, como há meio
século as recebeu das gerações anteriores.
ALBERTO SOUTO |