Alberto Souto, No 5.º Centenário da Princesa Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 88-96.

NO 5.º CENTENÁRIO DO

NASCIMENTO DA PRINCESA-

-INFANTA-SANTA JOANA

APESAR do grande embate de opiniões políticas, filosóficas e religiosas que se operou entre nós nos fins do século XIX e princípios do século XX, a história e o culto da Princesa-Infanta-Santa em Aveiro mereceram sempre a atenção, a deferência e o respeito das camadas populares, das pessoas ilustradas e das mais divergentes políticas.

Depois da morte da última professa do convento de Jesus, em 1874, correu este convento o perigo de ser fechado e de ser posto em almoeda o seu recheio, mas, a pedido de muitos aveirenses, o governo manteve a unidade da antiga instalação monástica e concedeu o edifício a uma congregação de Terceiras de S. Domingos que ali abriu o Real Colégio de St.ª Joana, para educação de meninas, entregando-se a igreja e suas alfaias à Irmandade de St.ª Joana que para tal fim se erigiu e ainda permanece.

Após a proclamação da República em 1910 e da consequente extinção das Ordens religiosas, ainda a pedido de alguns aveirenses ilustrados, e com o geral consenso, o Governo Provisório, sob propostas do governador civil, Dr. Rodrigo Rodrigues, criou o Museu Regional, destinando-lhe o edifício do antigo convento de Jesus e colégio de St.ª Joana, ficando-lhe anexa a igreja das Carmelitas, sem, contudo, se obstar ao culto nos locais a ele afectos.

Um dos principais obreiros da fundação do Museu e maiores propugnadores da conservação daquilo que no convento de Jesus já era monumento nacional, e da incorporação do seu recheio artístico no Museu Regional, foi o dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS, distintíssimo aveirense, e histórico democrata, que dirigiu ao Ministro da Justiça do Governo Provisório, dr. Afonso Costa, uma extensa petição, / 89 / larga e brilhantemente justificada em que enumerava as principais peças de arte que urgia preservar e expor.

Entre elas avultavam todas as que se relacionavam com a vida, morte e culto da Princesa e Infanta St.ª Joana, filha de D. Afonso V e irmã de D. João II, que em 1472 deu entrada no humilde / 90 / mosteiro fundado por D. Brites Leitão, em cuja igreja o Rei lançara a primeira pedra em 1462.

Desta forma se acautelaram todos os objectos de arte pertencentes ao culto da Santa, e todas as suas recordações existentes no antigo convento de Jesus, o que constitui, ainda hoje, um fundo riquíssimo pelo seu valor histórico e artístico, fundo esse de que Aveiro se ufana e que os visitantes admiram e os fiéis veneram no Museu Regional e na igreja de Jesus e suas dependências, onde História, Religião e Arte se têm dado as mãos para se manter íntegro o valioso e venerando património. Este facto é tão importante e impressionante e foi tão profícuo e feliz, que o falecido escritor portuense e crítico de Arte, Dr. PEDRO VITORINO, o considerou como um grande milagre da própria St.ª Joana.

A verdade é que tem havido, aqui, em todas as crises e emergências, bom senso e respeito, zelo e carinho por essa herança, preciosa no material e no moral, o que permitiu que na hora solene em que se comemorou o quinto centenário do nascimento da Princesa e Infanta Santa, todos nós, crentes, devotos ou meros admiradores da sua memória, das suas relíquias e do seu culto, tivéssemos a consolação do dever cumprido para com a História, a Arte, a Crença e os superiores interesses da cidade.

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Santa Joana nasceu princesa real em Fevereiro de 1452, passou a infanta pelo nascimento do príncipe D. João em 1455, ano em que perdeu sua mãe a rainha D Isabel, e veio a falecer, no convento de Jesus de Aveiro, em 12 de Maio de 1490, com 38 anos de idade, 18 dos quais ali passou em religião e voluntária clausura, dando exemplos contínuos de bondade, isenção, humildade e virtude que lhe granjearam fama de santa e mereceram à Igreja, com a sua beatificação, a honra dos altares.

No Museu Regional de Aveiro guardam-se e expõem-se num cofre e numa âmbula de cristal e prata, ao gosto do fim do século XVII, um anel do seu cabelo e o hábito, rosário e cinto com que morreu na Casa do Lavor, para onde fora transferida na sua doença, por ser a mais soalheira e saudável do convento.

A Casa do Lavor, também conhecida pela cela ou casa da Santa, é, de há muito, monumento nacional, porque foi revestida de riquíssima talha dourada e transformada em capela ou oratório em 1737. / 91 /

Vários painéis alusivos à vida e morte de St.ª Joana ornamentam as paredes, sendo a maior composição pictórica o curioso quadro do passamento, tal como o triste transe nos é descrito no Memorial do Códice 872, atribuído a D. MARGARIDA PINHEIRO que conviveu com a Infanta e ali mesmo recebeu o seu último suspiro.

O pintor colocou nos braços da moribunda o mesmo crucifixo gótico que se vê hoje no altar do oratória e imaginou / 92 / a subida ao céu da alma pura e cândida da morta, expelida da sua boca como um hálito e aguardada pelos bem aventurados na corte divina.

Noutros quadros laterais descrevem-se, como se ocorressem no princípio do século XVIII, as cenas da recepção do Rei e do Príncipe vindos da campanha de Arzila; da entrada da Infanta no convento; da saída de Aveiro, por ordem real, quando da grande pestilência que assolou a vila; da lenda ou visão do anjo em Alcobaça, dizendo-lhe que era já morto o rei de Inglaterra com quem seu irmão D. João II a queria casar; da tempestuosa vinda a Aveiro de D. João II com o arcebispo de Évora, D. Garcia de Meneses, a dissuadi-la da profissão; do rei de França, ajoelhando diante do seu retrato, e do seu funeral.

No mesmo oratório se expõe a sua imagem que, juntamente com a de S. Domingos, sai na procissão da sua festa nos anos em que esta se realiza, com hábitos de gorgorão de seda recamados de bordados de oiro.

Na igreja, que é toda revestida de talhas douradas dos séculos XVI, XVII e XVIII, notabilíssimas pela sua beleza e riqueza, há vários painéis a óleo e em azuleio, alusivos à vida da Santa, sendo esses painéis do século XVIII, interessantes, mas sem merecimento artístico excepcional.

Num altar do lado do Evangelho, no corpo da igreja, foi colocada uma imagem de St.ª Joana, em madeira estofada e dourada, ostentando os seus atributos de religião – a cruz e a coroa de espinhos da paixão de Jesus Cristo que ela tomara por empresa ou por emblemas da sua heráldica, em vez do brasão que de direito lhe pertencia.

No antigo coro de baixo, contíguo à igreja, ricamente guarnecido de mármores e talhas, está o seu túmulo, todo em mármores embutidos de excelente desenho e agradável combinação, túmulo que é um dos mais belos monumentos fúnebres existentes no mundo e sem rival no seu género de trabalho de embrechado.

Consta de uma arca quadrangular assente sobre um bloco de mármore de Carrara, onde se esculpiu uma Fénix ardente e inconsútil, mas parece sustentado por quatro querubins que, de mãos erguidas, se vêem, um a cada canto.

Sobre a arca ossuária, outros quatro anjos ostentam o escudo das armas do reino, encimado pela coroa real, entre volutas.

O trabalho artístico é de primeira ordem e apesar de haver muitos outros lavores de embutidos no País, não se reconhece obra mais delicada e perfeita do que a deste maravilhoso sarcófago de estilo barroco equilibrado, sóbrio e muito digno na sua traça geral.
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O projecto deve-se ao arquitecto João Antunes, a quem foi encomendado por D. Pedro II no fim do século XVII, mas os mármores e a execução devem ser italianos, como MARQUES GOMES afirma.

A trasladação dos ossos de St.ª Joana para o precioso sepulcro, em 1711, reinando já D. João V, foi objecto de / 94 / grandes solenidades de que existe um circunstanciado relato com os autos respectivos.

Na secção de tecidos e paramentos do Museu, guardam-se a bandeira da Irmandade, de seda branca, tendo bordada a ouro uma lisonja partida ao meio, com as armas reais de um lado e a coroa de espinhos do outro, sob uma coroa de princesa; o pavilhão do sacrário e o paramento da festa, tudo em lhama de seda e prata com bordados a ouro, de finíssimo gosto e ponto delicadíssimo.

Na sala dos Primitivos, ou da pintura dos séculos XV e XVI, no segundo andar do edifício, entre dois riquíssimos reposteiros ou panos de armar, de brocatel, do século XVI, tecidos em prata e ouro sobre fundo de seda amarela e vermelha, vê-se o célebre Retrato de St.ª Joana em trajo de côrte, tábua preciosa da segunda metade do século XV, pintada a óleo sobre intonaco, que é um documento iconográfico inestimável e um dos grandes valores da nossa pintura antiga.

O eminente crítico de Arte, JOAQUIM DE VASCONCELOS, não hesitou em declarar que só por si esta obra justificava uma viagem a Aveiro.

Apesar de certos antigos retoques lhe terem alterado a expressão original, o retrato dá-nos uma perfeita ideia do vulto da Princesa e dos seus atavios, tais como a viu o artista que a retratou e que foi minucioso e escrupuloso.

Mesmo que seja cópia de um retrato tirado por Nuno Gonçalves, como, discutivelmente, opinou o dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, é uma obra fidedigna, correspondendo à descrição de D. MARGARIDA PINHEIRO no Memorial do Códice 872, códice que se guarda nos reservados do Museu e felizmente dado à publicidade em 1939 pela benemérita iniciativa e consciencioso estudo de dois dedicados aveirenses (1).

É flagrante a semelhança fisionómica do modelo com certas figuras dos Painéis de S. Vicente, do Museu Nacional de Arte Antiga, tidas como seu irmão, o Príncipe, sua mãe a Rainha, e o próprio Santo a que os personagens retratados prestam veneração.

Os olhos verdes e o anel de rubi asseguram-nos da veracidade de que hoje não é lícito duvidar-se.

Há anos, quando da grande polémica sobre os famosos painéis do Museu das Janelas- Verdes, eu perguntei se não será a própria Princesa Santa Joana a figura feminina que se vê ajoelhada ao canto esquerdo do painel do Infante e que / 95 / veste um corpete impressionantemente decotado como o do retrato do nosso Museu.

Suas mãos são igualmente esguias e finas, e seu olhar nostálgico parece traduzir o mesmo estado de espírito e revelar o mesmo carácter; alma entristecida e desiludida do mundo, certamente pesarosa do sangue vertido na tragédia da sua gloriosa família e ansiosa da contemplação e da paz de Deus.

Nada explica, na verdade, que Nuno Gonçalves, ou fosse quem fosse que pintasse os célebres painéis, se esquecesse de retratar neles a filha estremecida do Rei, se, de facto, é o Rei D. Afonso V a figura masculina que ajoelha em frente do Santo, objecto da adoração.

Mas esteja ou não retratada nesse painel a excelsa filha de D. Afonso V, do que nos não resta dúvida é de que o quadro do Museu de Aveiro a representa veridicamente e de que a tábua quatrocentista da nossa galeria é um documento não só inestimável no património da cidade, mas na própria história da Família de Avis e da Arte Nacional.

Outras representações históricas de Santa Joana existem em Portugal, e o Museu de Aveiro possui mais dois pseudo-retratos. Nenhum deles, porém, pode ser tomado como verídico, não passando de meras idealizações dos pintores, sem corresponderem à realidade.

Mas o conjunto de todas estas relíquias, documentos e objectos ligados à vida, morte e culto de St.ª Joana, é da mais alta valia e constitui um tesouro de que todos somos e devemos ser ciosos e briosos.

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Quis um dia o grande poeta AUGUSTO GIL, quando Director Geral de Belas-Artes, em 1925, que eu sucedesse ao dr. José Pereira Tavares na direcção do Museu Regional de Aveiro, fundado pela República em 1911 e organizado pelo erudito historiador e arqueólogo JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES.

Coube-me, assim, sem o pedir e sem o esperar, a honra de velar pela conservação e dignidade da sagrada e riquíssima herança que, vai em cinco séculos, o destino entregou à nossa terra – a dos despojos da Princesa e Infanta-Santa e a das suas enternecedoras recordações e tradições e religioso culto.

Tenho a consciência de ter cumprido o honroso encargo com um sentimento perene de veneração e respeito, harmonizando sempre o critério artístico, indispensável à boa ordenação / 96 / e conservação das espécies, com a espiritualidade da destinação originária e do pensamento religioso e litúrgico que não poderia alhear-se da expressão material embelezada pela Arte.

Neste ano festivo da comemoração do 5.º centenário do nascimento da ínclita Princesa, Beata da Igreja e Santa dos altares, glória e lustre desta Aveiro que ela escolheu para seu refúgio do mundo e sua mansão derradeira, o espírito aveirense que vive dentro de mim sente o júbilo da solenidade e compraz-se na contemplação das venerandas relíquias e no culto das tradições inerentes que sempre foram apanágio e honra da cidade e que esta apresenta íntegras, como há meio século as recebeu das gerações anteriores.

ALBERTO SOUTO

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(1)O Prof. FRANCISCO FERREIRA NEVES, que subsidiou a edição, e o 1.º Conservador do Arquivo da Universidade de Coimbra, ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL, que prefaciou e estudou o Códice.

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