F. Ferreira Neves, Referência aos mexilhões de Aveiro, Vol. XVIII, pp. 45-47.

UMA REFERÊNCIA AOS

MEXILHÕES DE AVEIRO

NO SÉCULO XVII

O MEXILHÃO é um molusco de duas conchas que vive sobre rochas ou sobre estacas de madeira, às quais se fixa tenazmente por um feixe de filamentos que constituem o byssus, resistindo assim ao choque das ondas ou à força das correntes marítimas.

Instala-se onde há um forte fluxo e refluxo de água do mar, na região da praia que fica temporariamente a descoberto, podendo também, raramente, por virtude de certas circunstâncias, ficar sempre debaixo da água. Demora quatro a cinco anos a tornar-se adulto.

O mexilhão dá-se melhor nos mares setentrionais da Europa, mas adapta-se também a mares interiores com fraco grau de salinidade, como o Báltico. As costas do mar Mediterrâneo também são propícias ao seu desenvolvimento.

Os mexilhões constituem um alimento muito apreciado. Em Itália fazem-se grandes culturas de mexilhão, especialmente em Tarento, onde se cultivam as duas principais espécies: a azul comum chamada cozze nere, e a barbuda (modiola barbata) chamada cozze pelose. Em todos os mercados da Itália se encontram os mexilhões de Tarento.

Os mexilhões também vivem nas costas de Portugal, e são uma das especialidades da cidade de Aveiro. Ora esta especialidade já não é recente, é, pelo contrário, bem antiga, como se prova pelo soneto que publicamos aqui e data do meado do século XVII.

É autor deste soneto JOÃO SUCCARELLO CLARAMONTE, que Filipe III de Portugal autorizou a fazer cirurgia por carta de 17 de Junho de 1638. Nesta se indica que JOÃO SUCCARELLO era natural de Mesão Frio, do bispado do Porto, e filho de António Sucarello Claramonte, médico de grande fama. / 46 /

JOÃO SUCCARELLO foi nomeado cirurgião-mor do exército do Alentejo por carta de 18 de Dezembro de 1650, na qual lhe era atribuído o grau de licenciado. Neste mesmo ano estava regendo uma cadeira na Universidade de Coimbra.

Sucedia que JOÃO SUCCARELLO aliava ao exercício da medicina e cirurgia o cultivo da poesia, e com tal êxito que BARBOSA MACHADO, na Biblioteca Lusitana, chamou-lhe «excelente poeta, principalmente no estilo joco-sério, em que levou a palma a todos os mais célebres professores da divina arte».

SOUSA VITERBO concorda em que SUCCARELLO tenha bastante merecimento poético, mas não lhe reconhece o valor que lhe atribui BARBOSA MACHADO.

As suas composições, com excepção de duas, ficaram todas inéditas por serem, em regra, satíricas ou obscenas.

Na Biblioteca Municipal do Porto existe uma colecção de poesias de JOÃO SUCCARELLO, entre as quais um soneto com uma referência aos mexilhões de Aveiro, que transcrevemos do Arq. Hist. Port., voI. VI, pág. 195. Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra existem igualmente muitas produções poéticas suas, manuscritas.

                      SONETO

Que mandou às Freyras de Monchique vindo
            de Coimbra a hua sua festa

Guardadoras do gado deste outeiro,
Ó nunca foreis, não, tão guardadoras,
As q'ajuntando estais todas as horas,
Mals do q'enthesourou Pero Pinheiro.


Parte-se à vossa festa hum cavalleiro,
Tingindo em sangue as rodas das esporas,
Cuida q'ha de comer: não faz demoras,
Nem sequer prova dos mexilhões de Aveiro.


Fazeis Sarapatel, juntais panellas,
Ha festifolgas, todo o frade come,
Elle fica em gejum vendo as estrellas.


Já vos conhecem, já vos sabem o nome
Sois igualmente míseras e belas
Pois, q'matais de Amor e mais de fome.

/ 47 /

Por aqui se vê que JOÃO SUCCARELLO perdeu o tempo quando se deslocou de Coimbra para o Porto, pois não se banqueteou com o sarrabulho da festa do convento de Monchique(1), e para cúmulo de infelicidade, nem sequer passou por Aveiro para provar os mexilhões, tal era a pressa com que vinha para chegar à festa das freiras.

Aveiro, Março de 1952

FRANCISCO FERREIRA NEVES

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(1) O convento de Monchique estava situado na freguesia de Miragaia, do Porto. Era da invocação da Madre de Deus, e de religiosas de São Francisco, observantes. Foi fundado em 1575 por D. Pedro da Cunha e sua mulher D. Beatriz de Vilhena.

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