Eduardo Cerqueira, Centenário do "Campeão do Vouga", Vol. XVIII, pp. 25-44.

O CENTENÁRIO DO

«CAMPEÃO DO VOUGA»

NOTAS DE RECORDAÇÃO
DO PRIMEIRO JORNAL AVEIRENSE

NA história da imprensa periódica aveirense, sem dúvida das mais ricas e significativas das pequenas cidades nacionais – e bem digna de um estudo de conjunto ainda por efectuar – ocupa um lugar destacado o "Campeão das Províncias", inicialmente chamado "Campeão do Vouga", de cuja fundação passou agora o primeiro centenário. O papel preponderante que esse jornal desempenhou durante largas décadas da vida pública de Aveiro, quer no ponto de vista da doutrinação e acção política, quer na propaganda e defesa dos problemas .regionais ou na divulgação dos seus motivos de prestígio e das suas glórias, na revelação dos seus valores intelectuais e espirituais ou nas iniciativas que tomou e preconizou, constituem motivo sobejo para que a data, embora por pena discreta, seja recordada e assinalada nesta oportunidade.

Por três quartos de século, através da vivacidade das pugnas partidárias e das aziumadas divergências entre os influentes locais e seus adeptos, perpassaram nas colunas do importante jornal os acontecimentos, as aspirações, os regozijos e os desaires, as simples anotações ou registos de factos ocasionais e rotineiros e, em todos os casos, uma constante afirmação de férvido aveirismo, um propósito e um sentimento permanentes de valorização do património moral e material da cidade e do seu alfoz.

Numa época em que a imprensa periódica constituía muito menos do que hoje um objectivo elemento de informação e bastante mais do que presentemente se apresentava como um intensivo foco de controvérsias ideológicas ou pessoais, estimuladora e agitadora dos espíritos e das opiniões, / 26 / o Campeão foi, sem dúvida um repositório e um testemunho dos acontecimentos locais, mas teve ainda mais acentuada relevância como actor, figurante de primeira plano, directo e activo, na cena pública da cidade e do distrito.

Nasceu de gente nova, com os intemeratos entusiasmos e as ilusões generosas próprias da idade, eivada de novas ideias, vogando nas águas do romantismo e do liberalismo.

O consulado cabralista findara e abriam-se novos horizontes aos moços irrequietos e inconformistas. De Avanca, onde dissentindo já das paternas predilecções absolutistas, exercera antigamente as funções de regedor, Manuel Firmino de Almeida Maia, regressara à sua terra natal, cheio de confiança nas suas pujantes qualidades e decidido a patenteá-las e fazê-las vingar. Tivera já ocasião de medir, no escalão em que se marcava a envergadura dos dirigentes políticos, o vigor da sua vontade, a sua arte de manejar os homens indecisos e de contactar com os mais poderosos, os seus dotes de aliciação pessoal, a clareza do seu sagaz discernimento na apreciação dos negócios da administração. Sabia-se capaz; tomou consigo a deliberação e o íntimo compromisso de demonstrá-lo.

A imprensa, soltas as peias do malquisto cabralismo, era o campo propício para um jovem, compenetrado dos seus méritos, audaz e voluntarioso, provar e exercitar as faculdades iniludíveis que aguardavam o ensejo e o quadro de acção para se manifestarem e convencerem. O jornal seria o veículo das suas doutrinas, dos seus critérios de julgamento e conduta, do poder de irradiação da sua inteligência e da sua vontade, o instrumento de que se serviria para persuadir das suas verdades e refutar as contrárias, para levar o seu nome a um círculo cada vez mais largo de leitores, quiçá, de admiradores e correligionários, para lançar mais um avantajado passo na conquista da evidência, da popularidade e das posições de onde se comanda e onde se constrói.

Havia que lançar um jornal em Aveiro, apesar das enormes dificuldades que se antepunham à empresa. O país não contava, então, mais de uma vintena de folhas periódicas, editadas, apenas, em Lisboa, Porto, Coimbra, e em Aveiro, que é como quem diz, em todo o distrito, só até essa altura se publicara o "Boletim de Notícias". Este, porém, surgiu, com um carácter muito especial, pela força das circunstâncias de ocasião, e desapareceu com elas, num curto trecho de tempo(1). Era, com efeito, aquilo que, com rigorosa / 27 / propriedade, se pode chamar um boletim, cingido a sucintas resenhas dos sucessos políticos e militares e aos comunicados e proclamações oficiais do primeiro magistrado do distrito, Custódio Rebelo de Carvalho, a cuja iniciativa se ficou devendo a publicação. Imprimia-se no prelo existente no Governo Civil, diariamente, apenas numa página, para trazer o público ao corrente da marcha das forças «patuleias», e manter sem desalento o moral da população, exortando-a a conservar-se confiante no êxito das providências tomadas pelas autoridades, que representavam aquela corrente e procuravam sustê-la na governação do país contra o recente golpe de estado dos mesmos cabralistas que meses antes haviam apeado do poder. Não era pois um jornal no sentido que corrente e mais ajustadamente costumamos dar à palavra.

Manuel Firmino estava na plenitude dos seus vinte e sete anos, robustos e desembaraçados. Apoiado, se não instigado, pelo conselho acalentador da dedicada esposa – cultivada senhora que frequentava as musas com inspirada elevação – lança a ideia do jornal por meados de 1851.

A primeira adesão à iniciativa, porventura a mais decisiva e valiosa, encontrou-a num adolescente que encetava os passos de uma carreira política de contínuos triunfos – o aluno de direito José Luciano de Castro Pereira Corte Real.

Em casa do pai, o Morgado de Oliveirinha, tomara contacto com a prometedora precocidade do jovem estudante, colaborador já nesse tempo do "Observador", de Coimbra, onde os seus dezassete anos não desluziam em confronto com os colaboradores consagrados, transmite-lhe o seu entusiasmo, conquista-o para o empreendimento, torna-o inseparável companheiro dos trabalhos preliminares para essa sedutora ousadia.

Em fins de Agosto distribui-se o prospecto anunciando a saída do "Campeão do Vouga" – Jornal literário e político – e indicando como redactores José Luciano, António Nogueira Valente e Bernardo Xavier de Magalhães – outro aveirense ilustre que deixou apreciadas produções poéticas. Contava este, na ocasião, vinte anos, e frequentava também o curso de direito que, por espírito aventuroso abandonou, tempos mais tarde, para ir tentar fortuna na Austrália.

O prospecto-circular é concebido nos seguintes termos, de empolada retórica(2):

«Um novo jornal vai aparecer neste canto de Portugal, um novo soldado vem tomar a cruz, e marchar / 28 / para a santa cruzada da emancipação do pensamento! Um novo operário vem cimentar com o seu sangue as colunas do grande edifício da civilização e da literatura.

Vai pois surgir em Aveiro, nessa pequena cidade levantada sobre as ruínas da antiga Talábriga, um jornal literário e político, uma atalaia do pensamento e do bem público. Não lhe pergunteis pelas cicatrizes que recebeu no campo de batalha, quando encarou o inimigo, não lhe peçais que desenrole a vossos olhos o límpido manto das glórias passadas, não, porque nada disso tem o "Campeão do Vouga"; é um gladiador que vem ao anfiteatro recrear o povo, é um atleta, que, mirando-se na doce corrente do Vouga, e nascido ao brando sussurro das suas cristalinas águas, vem enristar a lança, e defender passo a passo as suas encantadoras margens.

O Campeão do Vouga será um jornal literário em cujas colunas terão um honroso lugar a história, biografia, descrições, a poesia, a tradução de alguns trechos mais importantes, etc. Como jornal político apresentará em folhetins, para isso destinados, a crítica dos defeitos e ilegalidades praticadas em qualquer das terras do distrito, e que cheguem ao nosso conhecimento, publicará correspondências, etc. Com relação à política geral buscaremos e preconizaremos o melhor onde o encontrarmos, estigmatizando os erros seja qual for a parcialidade de onde partam, indicando convenientemente o caminho a seguir.

A nossa divisa, o nosso timbre será – O Amor da Pátria, a que morreremos abraçados.

Conhecemos a arduidade da matéria, mas não trepidamos, não recuamos ante ela. Oxalá que uma estrela propícia nos sirva de farol, na alpestre vereda por onde caminhamos.

Para realizar esta empresa imploramos o auxílio de toda a imprensa, especialmente literária, e de todos os nossos conterrâneos.

– Publica-se uma vez por semana. Assina-se em Aveiro, no Escritório da Redacção. Preço da assinatura: Por ano, 2.000 reis; por semestre, 1.100 reis; por trimestre, 550 reis.»

A iniciativa tinha sido trazida ao conhecimento público e agora seria desprimoroso, se não impossível para o brio dos pundonorosos promotores da empresa, anunciá-la e não a efectivar. Todavia, por cada dificuldade vencida, surgia novo obstáculo a galgar. Adquirida uma larga parcela do material pertencente à modesta tipografia de Joaquim Maria Plácido – única que existia além da do Governo Civil / 29 / recorrera-se à habilidade do ensamblador José Pereira para executar um imprescindível prelo de madeira. Escasseavam, porém, os profissionais gráficos para trabalho de tamanha monta e responsabilidade; faltavam os recursos financeiros para lançar a publicação e sustentá-la com normalidade; possivelmente o público olhava a iniciativa – talvez não constituísse maior aventura lançar hoje em Aveiro um diário com incredulidade; e os próprios colaboradores eventuais hesitavam, porventura. em tomar compromissos de alimentar a glutonaria da folha, sempre ávida de frescos linguados de prosa, com produção regular ou, ao menos, assídua.

Mas não estava na índole perseverante de Manuel Firmino desistir a meia encosta, nem José Luciano o deixaria desacompanhado a enfrentar os contratempos e embaraços; as atitudes negativas dos cépticos, as emulações daqueles que tomam como uma usurpação o realizar de uma ideia que o seu arguto engenho poderia ter concebido mais perfeita e mais pronta... mas lhes não ocorreu em tempo oportuno. Conseguiram tipógrafos, embora em condições precárias, ganharam a confiança dos irresolutos e dos menos crédulos e, graças à generosidade afectuosa da mãe do segundo, desvanecida com os sucessivos êxitos do filho, em que se revia orgulhosa e com a possibilidade de abrir-lhe nova senda aos caminhos, da glória que lhe ambicionava, também foi / 30 / solucionada a questão económica. A bondosa senhora cedeu, para as despesas iniciais do jornal, um valioso cordão de oiro, pelo qual um capitalista adiantou as precisas e suficientes quinze moedas.

O "Campeão do Vouga" veio, assim, a publicar o primeiro número em 14 de Fevereiro de 1852 – completou-se agora um século –, subintitulando-se de «Jornal político, literário e comercial». A política e a literatura, ao concretizar-se a iniciativa, trocaram a ordem, dando primazia à primeira, a qual, aliás, seria pelo tempo adiante a razão dominante do periódico, e alargou-se ao âmbito das actividades mercantes.

Não correspondem também os nomes que figuram na cabeça com os do prospecto anunciador. Procurara-se, entretanto, para o cargo de redactor principal um nome mais decisivamente conceituado, com maior prestígio literário e político, mais seguro garante do nível e dos propósitos que animavam a folha. Encontrava-se em Aveiro, afastado das suas funções de delegado do Procurador Régio, o dr. José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, filho do principal maquinador e orientador do movimento liberal de 16 de Maio de 1828, o íntegro e denodado conselheiro Joaquim José de Queirós e Almeida, que deixara veneranda memória entre os seus conterrâneos. Era ainda novo, se bem que passante já dos trinta anos, dera iniludíveis provas na política da sua fidelidade aos princípios que animariam o jornal, e granjeara uma lisonjeira reputação entre os românticos cultores das letras dos seus tempos de Coimbra. O seu poema Castelo do Lago, considerado «de extenso fôlego scoteano», na apreciação de CAMILO, obtivera uma auspiciosa acolhida e constituiu o digno coroamento «dos versos irisados e subjectivamente petrarquistas», publicados enquanto académico coimbrão na "Crónica Literária da Nova Academia Dramática", – onde igualmente fizera sair alguns artigos com os seus conceitos sobre o teatro e a novela histórica O Mosteiro de Santa Maria de Tamarães – e no Ramalhete. Personalidade já acreditada, o dr. TEIXEIRA DE QUEIRÓS – progenitor do grande EÇA DE QUEIRÓS que, por essa ocasião, vivia pelos lados de Aveiro com a família paterna e, naturalmente, com o próprio pai – foi o escolhido para a direcção política do jornal.

Como editor figurava o bacharel João Gonçalves Meireles Monteiro, muito conhecido no meio aveirense e, finalmente, o lugar de administrador pertencia a Manuel Firmino.

Ficava ao leme da barca que gizara e lançara nas águas tumultuosas e incertas da publicidade, enfrentando as borrascas e os baldões e conduzindo-a com pulso vigoroso e seguro para os destinos que antevia dilatados.

José Luciano e Bernardo de Magalhães não apareciam como redactores efectivos ou responsáveis da publicação, mas / 31 / conservavam-se fiéis à sua sorte. Seriam colaboradores permanentes, ou quase, assinariam as suas produç6es, mas, talvez em consideração da idade e da inexperiência, deixavam os lugares de comando aos companheiros mais idosos.

O jornal foi impresso na Tipografia de Manuel Firmino de Almeida Maia, na rua Larga (hoje rua de José Estêvão), n.º 16, e tinha a redacção na rua dos Ferradores (actual rua de Domingos Carrancho), n.º 3 (3).

Os preços da assinatura são mais elevados do que os mencionados no prospecto atrás transcrito: por ano, 3$000 reis; por semestre, 1$500 reis; e por trimestre, $750 reis(4). Não houve, porém, propriamente um encarecimento. Ao contrário, cada número tornou-se mais barato, pois em lugar de publicar-se uma vez por semana, como era a intenção inicial, saiu como bissemanário, com uma edição aos domingos e outra às quintas-feiras.

Estranhar-se-á, acaso, que em meados do século passado se sustentasse um bissemanário em Aveiro, quando os jornais de hoje fazem uma só tiragem semanal. Considere-se, porém que os diários chegam poucas horas depois de publicados no Porto e em Lisboa e satisfazem, assim, rapidamente, a curiosidade dos leitores com o relato dos acontecimentos nacionais e estrangeiros.

Mas vejamos, resumidamente, do que constava o primeiro número de "O Campeão do Vouga". O artigo politico de apresentação, que seguia a uma nota justificativa da demora involuntária do aparecimento do jornal e oferecia as suas colunas «a todas as capacidades do distrito que queiram concorrer connosco para o fim útil, e exclusivíssimo do jornal – o bem público –, na acepção mais lata da palavra», era com as maiores probabilidades, da lavra do redactor principal, a quem competia traçar a orientação ideológica.

Substituindo alguns termos e mudando de pontos de vista doutrinários, sem relutância de maior o suporíamos actual: «Estamos entrados no ano de 1852, em que vão talvez decidir-se os destinos da Europa, e escrever-se o Evangelho politico, pelo qual há-de definitivamente ser governada. Está eminente uma luta de morte entre a reacção e a revolução liberal». (Ponhamos o oriente e a civilização ocidental, e parece de agora). «A força está armada contra as ideias, / 32 / o braço contra a inteligência, a escravidão contra a nacionalidade». E, logo acrescenta: «É por isso que neste ano todas as forças da inteligência devem convergir ao ponto onde as chama o estandarte da regeneração europeia». Não falaria outra linguagem, neste ensejo em que se pretende congregar as nações ocidentais numa frente comum, qualquer «leader» das assembleias internacionais.

A posição que tomava, porém, era no campo das ideias liberais que «caminhavam ao passo que a ilustração ia chegando a todas as classes, e que a razão e a inteligência do povo se desenvolve e engrandece». Vincava resolutamente essa posição: «Pertencemos ao grande partido liberal. Temos uma crença firme no progresso do espírito humano; e é dela que esperamos a aurora da redenção». O estilo é romântico, certas palavras puíram-se com o abuso, mas ressumam nos ecos vagos, a nobreza e generosidade de intenções. Aliás, não desprendiam os pés do solo, nem, ponderadamente, desprezavam as lições dos factos. «É necessário – concluía o artigo – que sejamos revolucionários, mas nas ideias, e não nas praças. Têm-nos alcunhado de anarquistas e demagogos; talvez porque não sabem apreciar a sensatez do nosso juízo, a elevação das nossas ideias, a prudência das nossas aspirações; talvez porque querem indispor-nos com a nação, e com a Europa. (Aqui se referia, é evidente, a todos os adeptos dos mesmos princípios e não ao jornal. Indispor este com o país seria já excessiva presunção; mas com toda a Europa ultrapassaria as raias do bom senso). Ou é um erro ou uma deslealdade. Não renegamos as nossas crenças, nem encobrimos as cores da nossa bandeira: mas temos bastante prudência para não comprometer o futuro com as nossas leviandades. O convénio de Gramido deixou-nos amargas recordações. Somos altamente revolucionários nas reformas internas do país. Dêem-nos um governo que atenda às necessidades públicas, que promova o crédito, a viação, a educação popular, a organização do trabalho, e todas as mais reformas económicas e administrativas de que o país carece, e seremos eminentemente conservadores». (E quem o não seria, obtidas todas as reformas necessárias?).

O número propunha-se, naturalmente, dar a conhecer o que seria o jornal no futuro: «O Campeão do Vouga – lia-se já na página imediata – é um periódico de verdade, de justiça, de tolerância e de independência. Havemos de apresentar os actos da administração pública à sua verdadeira luz, apreciá-los sem ódio, nem afeição de partido.» Não apoiaria o ministério em todos os actos governativos, só por afeição aos membros que o compunham, nem o combateria acintosa e apaixonadamente só porque não pertencesse à mesma facção política, e apontaria os erros para deles se tirar / 33 / [Vol. XVIII - N.º 69 - 1952] lição em empreendimentos futuros. «Mas havemos de julgar os actos, e não os homens. E, se porventura uns e outros estiverem de tal modo identificados que na apreciação daqueles possamos ferir algumas susceptibilidades, desde já declaramos sinceramente que nos leva a isso a suprema lei da utilidade pública, que, para nós, é omnipotente, e superior a todas as considerações pessoais».

Entra depois, numa local solta, a ventilar um momentoso assunto de interesse local. Contra o distrito de Aveiro esboçava-se uma ameaça de supressão, dado que o governo estava autorizado a reduzir a doze as existentes no continente. Mas, sentenciava o comentador, «reformar não é destruir». «É fácil compreender a dificuldade de assentar em outro distrito – adiantava – as molas em que, no de Aveiro, roda a gerência administrativa: e quando se trate de as assentar é que hão-de sobrevir os grandes obstáculos, e o resultado há-de ser uma negação absoluta das inculcadas conveniências». Oitenta anos mais tarde haveriam de utilizar-se idênticos e não menos judiciosos argumentos, embora com menor felicidade de êxito, quando da extinção da Junta Geral do Distrito.

No «Folhetim» poético, o nonagenário FRANCISCO JOAQUIM BINGRE, o venerando e desafortunado «Cisne do Vouga», «Francélio Vouguense», da Nova Arcádia(5) –, «baldo a forças viris, caduco e anoso», com seus dedos trémulos e anquilosados, extrai da velha lira um soneto de louvor ao

«Corajoso Campeão do Vouga amigo,
De uma heróica cruzada liberal:
Que as nuvens desfazer de Portugal
Pretendes imitando o Hispano Brigo!...»

Bernardo de Magalhães, que dera o seu apoio nos trabalhos preliminares da fundação do periódico, está presente no mesmo rodapé. Colabora com o poema em verso solto «Invocação», hino que o «bardo novel» ergue à terra natal – «e ai do descrente que diz: é minha pátria o globo inteiro!» –, canto de saudação e louvor que remata em tom de comovida endecha:

«Quero em prémio que a terra do meu berço
Me cerre os olhos, quero que o viandante,
Quando passar nos devolvendos séculos,
Leia no meu sepulcro: aqui descansa,
Abraçado c'o a mãe, um dos seus filhos.»

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E os seus ardentes desejos da mocidade, apesar das aventurosas viagens – que se admite haverem origem em desenganos amorosos –, e de três penosos anos na longínqua Austrália, onde não encontrou os lendários filões de ouro, vieram a cumprir-se – a terra que lhe fora berço serviu-lhe também de sepultura(6).

José Luciano, o mais pronto e prestimoso companheiro do fundador, não podia faltar. Subscreve uma «Introdução literária» e aí proclama convictamente: «O espírito é o rei do futuro, livre e independente levanta a bandeira da ressurreição social, desdenha a ignorância e a superstição sentado no seu trono de diamantes.» Enfeita o estilo com todas as riquezas de expressão de que dispõe, defende com ardor a liberdade do pensamento, num ou outro passo lança afirmações de nítida heterodoxia católica, para terminar: «Fortalecidos com a fé em Deus e no progresso social, e submissos nesse campo glorioso, em que inteligências mais fortes já se têm estreado – nós vimos, com a mão no coração escrever algumas páginas de instrução para esse povo que desfalece à míngua – e que marcha com os olhos vendados pela neblina da ignorância, no caminho das gerações. Se nos enganarmos, oxalá que Deus e o futuro nos perdoem.» Falava a sinceridade, muito longe ainda das responsabilidades do poder e das contingências da acção. Talvez se enganasse nalgum ponto enunciado, por falta de experiência e de conhecimento das realidades; como, porventura, se afastaria das suas próprias verdades, ao sacrificar alguma vez, ante os casos concretos e constrangentes, os puros princípios e os valores do espírito. O misericordioso Deus, decerto, lhe perdoou as ilusões e os deslizes, e o futuro, que já somos os de agora, propende mais a Julgar pelas qualidades positivas do que pelas transigências aos ideais.

Um último artigo doutrinário – «O Jornal e o distrito» – vem assinado por Francisco Maria de Sousa Brandão(7), que haveria de distinguir-se como propulsionador de organizações proletárias e na fundação do Partido Republicano Português, de cujo directório fez parte em algumas ocasiões. É um elogio ditirâmbico da imprensa pois «tem formado uma ciência pública que, pela sua força e extensão tem exautorado as ciências antigas das universidades, e democratizado / 35 / as suas doutrinas mais elevadas». Aponta com clarividência incontestável a influente acção do jornal na ilustração das diversas classes de leitores, quer expondo as conquistas da ciência ou o decorrer dos factos, pretéritos e presentes, «à lareira do lavrador, na tenda do vendilhão, na loja do operário, como na banca do advogado e no bufete do ministro do Estado», quer no despertar e incentivar as correntes de opinião: «Quando às nossas mãos chegavam as folhas em que líamos as revoluções de um país vizinho, era como se tocássemos o excitador eléctrico, que nos comunicava o mesmo estremecimento que eles sentiam». E no calor dos encómios, esse homem que manteve sempre acesa a chama das suas convicções, vai aos exageros retóricos, para exalçar o seu ideal, escolhendo uma imagem que não pode deixar de provocar, ao menos, um sorriso indulgente: «A democracia vive nos tipos, tem um corpo de chumbo e zinco.»

As restantes colunas do jornal eram preenchidas com uma correspondência de Ílhavo, notícias, uma tabela dos preços de alguns géneros (500 reis, 6 alqueire do trigo; 360, o do milho branco; 450, em média, o do feijão) e uma nota do movimento do porto de Aveiro.

O "Campeão do Vouga", como o nome aliás inculcava, vinha com seus assomos de ardoroso defensor de um ideal e de uma região, e vinha para prosseguir intrepidamente a sua missão orientadora e informativa. Mas a tarefa era espinhosa e os escolhos do caminho não haviam sido de todo aplanados, e as contingências da vida ora fixam os homens numa terra, ora os obrigam a deslocar-se, unem-nos ou separam-nos, no espaço e nos laços do afecto.

Logo a 17 de Abril, apenas decorridos dois meses sobre a saída do periódico, o dr. TEIXEIRA DE QUEIRÓS abandona o seu lugar de redactor principal. Ia regressar às suas funções oficiais e residir no Porto. «Assim, não posso continuar na redacção do Campeão do Vouga; pois entendo que não se pode redigir bem um jornal, a não ser na própria terra em que se publica». Deixava, «muito a seu pesar», a redacção do jornal e deseja-lhe longa e próspera duração. As convicções eram firmemente as mesmas: «Os meus princípios políticos não mudaram. Posso dizer afoitamente que não mudarão; porque são filhos de uma convicção profunda, e da experiência que tenho dos homens e das causas. Apesar dos meus poucos anos, politicamente tenho vivido muito. Assim vai caminhando este nosso século; que hoje, em política, vive-se mais em um dia que os nossos antepassados viveram em muitos anos» (8). / 36 /

No ano imediato voltou a Aveiro, para aqui exercer durante algum tempo o seu cargo de delegado do Ministério Público, mas, porque a natureza do lugar não lho permitia, não só permaneceu afastado do posto que ocupara no jornal como se julgou inibido de lhe prestar qualquer colaboração de relevo.

A direcção política do periódico foi assumida – íamos dizer naturalmente – por José Luciano de Castro, que não se conservará na efectividade do lugar por mais de dois meses (19 de Abril a 21 de Junho). O jornal estava no início, desejava singrar e criar raízes, necessitava de usar, para esse fim, de uma cauta moderação, de captar e não desagradar.

O jovem estudante, nos seus arrebatamentos moços estaria de algum modo a comprometer-lhe o futuro: – «os meus artigos eram sujeitos à censura de pessoas que estavam bem longe de o poderem fazer.», «Via-se obrigado a quebrar a pena de escritor severo e independente e a mergulhá-la na urna da lisonja.» Queria antes desagradar do que degradá-la e, assim, despedia-se, aproveitando uma suspensão do jornal, a que adiante nos referiremos, com as susceptibilidades magoadas, mas «fazendo votos pela duração do Campeão do Vouga, cuja existência, se receber alguma animação, pode ainda ser de alguma utilidade para a terra que o viu nascer.»

Com alternativas várias mudaria, no decorrer do tempo a disposição do jornal em relação a José Luciano, com quem sustentou em certo período uma luta extremamente agreste, através de uma campanha de descomedida violência, cujos ecos se ouviram no parlamento, mas que noutras circunstâncias lhe mereceu as referências mais elogiosas.

A causa do afastamento do jovem e imaleável redactor político parece devida mais a intervenções estranhas do que propriamente a desinteligências com Manuel Firmino, ou qualquer dos companheiros do jornal. Este ver-se-ia forçado a transigir perante as necessidades, para não ver malograda a obra a que se devotara com tanto empenho, mas acabou também reagindo contra as pressões que se vinham exercendo, Um suplemento ao n.º 37, de 22 de Junho, anunciava a suspensão a que atrás aludimos, e justificava-a: «Os compositores do jornal eram, até agora, cumulativamente empregados do governo civil; já se vê por esta circunstância / 37 / que nem o jornal podia ser imparcial, como há-de ser infalivelmente; nem ser publicado com a regularidade necessária, visto que aqueles empregados têm no governo civil obrigações diárias a que satisfazer.»

Passou a exercer a direcção política do jornal José Maria de Sousa Lobo, que ano e meio antes ocupara o cargo de / 38 / governador civil do distrito. Mas já Manuel Firmino, sempre zeloso a velar pelo êxito e pelo futuro do que era fundamentalmente obra sua e em cuja redacção colaborara permanentemente, tomara o comando da táctica política a adoptar e na orientação geral a ministrar-lhe.

Em consequência de uma campanha implacável contra o governador civil da altura, Antero Albano da Silveira Pinto, o Campeão (já antes, de 9 a 23 de Agosto, forçado a crismar-se com o nome de Aveirense, em consequência de Mendes Leite, que dera origem à acerada polémica haver, entretanto, transigido e deixado de ser o fiador do jornal, que persistia na sua atitude) sofreu uma suspensão por sentença judicial, acerbamente criticada por diversos órgãos da imprensa. O jornal passara a hostilizar o governo que sustentava o malquisto governador civil e veio a sofrer as consequências da sua intransigência.

O cargo de redactor político passara então a ser exercido por José Eduardo de Almeida Vilhena, que seria o articulista mais fecundo e representativo do bissemanário, prestando-lhe apreciáveis serviços durante dezenas de anos e deixando nas suas colunas centenas de artigos, nos quais revelou qualidades de verdadeiro jornalista, e numerosas produções poéticas.

Todavia, desde Março de 1853, na cabeça do jornal figurava apenas um nome, o de Manuel Firmino de Almeida Maia, na tripla qualidade de proprietário, redactor e responsável. Dera, pouco antes, publicidade à seguinte declaração: «Dispensamo-nos de hoje para o futuro de assinar os nossos artigos. Gerente único, proprietário exclusivo deste jornal, queremos e devemos tomar sobre nós toda a responsabilidade da sua doutrina. Ninguém mais, por conseguinte, a partilhará – caber-nos-á toda. M. F. A. Maia».

O Campeão, em boa verdade, não era só sua propriedade, mas construção sua, desde os alicerces levantada pelo seu esforço infatigável e pela sua vontade. Deixava de ser partilhado por outras inteligências, ganhava unidade e tomava a feição definitiva. Era e permaneceria a tribuna de Manuel Firmino, o seu potente porta-voz, o instrumento que, principalmente, utilizaria para tentar e alcançar a sua ascensão contínua na vida social e pública – mais propriamente o seu órgão pessoal do que um jornal partidário. Alargava-se cada vez mais o círculo de influência do já radicado periódico, tornava-se maior a audiência das opiniões que expendia e, por conseguinte, mais saliente o prestígio do seu director. A defesa dos problemas locais e dos mais honrosos títulos da cidade atrai-lhe simpatias entre os conterrâneos; a posição que toma na política do distrito eleva-o no conceito das populações dos vários concelhos; a crítica e a intervenção no mais largo âmbito dos assuntos de importância nacional / 39 / revelam-no como um valor útil aos mentores da governação. Em 1860, a sua primeira eleição para presidente do município aveirense, onde tão prestimosos serviços iria prestar à sua terra natal, acontece como um facto natural e lógico, numa evidente relação de causa e efeito.

Subira o primeiro degrau como regedor de Avanca, vencera um segundo, que lhe trouxera os galões de tenente-ajudante do batalhão nacional de Estarreja, nas lutas contra o cabralismo. Avançava outro, mais sobranceiro e dificultoso de atingir, assumindo durante quatro biénios consecutivos a gerência da Câmara Municipal da sua terra e iniciando um dos surtos de progresso da vida de Aveiro. Hábil, sabia ladear os obstáculos; inteligente, tinha a visão dos problemas e propunha-lhe as soluções convenientes; contumaz, sabia perseverar nas suas resoluções. E era lhano e afável, dispunha da capacidade de querer, e saber querer, e de incansável energia. Capaz de sacrificar os seus próprios interesses em favor dos que necessitavam dos seus ofícios, não regateava a sua influência, o seu empenho e até a sua bolsa, como não fugia à luta se as circunstâncias o obrigavam a degladiar com os antagonistas de ocasião, nem se confinava à rotina, mesmo quando parecesse demais ousado. Tinha o vício inveterado e a virtude da política, amigos lealíssimos e irreconciliáveis inimigos, como é condição dos que sobressaem da mediania estéril e se votam à acção. Ao lado de serviços prestantemente benéficos, cometeu erros, e a par com as críticas pertinentes, foi alvo de ataques sem justo fundamento. Mostrou, decerto, fraquezas, mas foi essencialmente uma personalidade forte, diligente, operosa e profícua. Teve, sem dúvida defeitos, mas talvez os defeitos necessários para demonstrar as suas qualidades e torná-las benfazejas. Era bondoso e prestável, soube pelo seu espírito empreendedor granjear fortuna e morreu pobre. Alguém que o conheceu e sabia avaliar, e não mostrava inteira concordância com a sua acção administrativa, um dos homens de mais equilibrado e lúcido juízo crítico que até hoje conhecemos, admirámos e estimámos – o aveirense por muitos títulos ilustre que foi o saudoso Comandante Rocha e Cunha – referiu-nos um dia um episódio que bem o demonstra. Um marnoto ou pescador da Beira-Mar, ao entrar pela primeira vez em casa de Manuel Firmino, por ocasião do seu funeral, mirando o recheio da residência do patrício eminente, fizera este significante comentário: – «Muito rico seria o sr. conselheiro Manuel Firmino se não devesse quase tudo quanto tinha.» Na espontânea sinceridade de um homem rude, brotava o reconhecimento de que, dispondo não só do mando, mas da prosperidade material, não guardara para si só os meios de fortuna que lograra. Esquecia-se, em muitas / 40 / ocasiões, de si e dos seus, para acudir a precisões alheias. Os adversários apelidaram-no com irónicos intuitos, de «pai dos pobres», mas, diria o dr. Joaquim de Melo Freitas, junto ao seu ataúde, «mal pensavam que lhe faziam dest'arte o melhor dos elogios.»

Esse conjunto de qualidades e defeitos, em que as virtudes a estes sobrelevavam largamente, como é óbvio, abriu-lhe um caminho de sucessivos e sólidos triunfos, em escala sempre ascendente. Da presidência do município, onde mais tarde voltaria, foi subindo de cada vez a posição de maior destaque: deputado por Águeda, em 1861, e por Aveiro, em 1865, e noutras legislaturas; governador civil de Aveiro, em 1886-1890; carta de conselho em 1897; par do reino, em 1890. Iniciara a carreira pública, modesta e confiadamente, como mero regedor de Avanca, esse «self-mademam» que acabou ostentando os arminhos do pariato.

Estas notas não pretendem, porém, traçar uma biografia, mas comemorar a data da primeira publicação de um jornal, embora este em grande medida se identifique com a acção do seu fundador, e se entrelacem e confundam as histórias de ambos, em muitos passos. Reatemos, pois, a evocação do importante periódico aveirense.

Em 12 de Novembro de 1859 "O Campeão do Vouga" mudou o título para "Campeão das Províncias". Não era de qualquer modo um jornal novo – «não é um novo atleta da publicidade», dizia ele ao adoptar a segunda designação – era o mesmo denodado bissemanário, ao atingir uma expansão que excedia as regiões compreendidas no «pátrio Vouga». – «Esta substituição não personifica vontade individual. É o reflexo da aceitação que esta folha tem granjeado dentro e fora do país.» Quanto ao mais, não havia qualquer mudança: o seu orientador era Manuel Firmino, ele continuava a conduzi-lo e inspirá-lo consoante se lhe afigurava mais conveniente. Em política manteve-se inteiramente como dantes: «O Campeão das Províncias nem é oposição nem governamental. Representa uma ideia; e afervora o empenho de ser útil ao país, sem se prender com o modo de pensar dos ministros uma vez que os seus actos sejam proveitosos à causa pública». A própria numeração seguiu a do Campeão do Vouga e o aniversário do jornal foi sempre assinalado em 14 de Fevereiro e não a 12 de Novembro.

Em princípios de 1866, manifestando-se o periódico em aberta hostilidade ao chefe do distrito e ao governo, Almeida Vilhena, na melindrosa situação de empregado do governo civil, e não concordando os seus companheiros da imprensa que apresentasse a sua exoneração de funcionário público, afastou-se do lugar de redactor principal. Substituiu-o o ilhavense Manuel Tomás de Mendonça, articulista de / 41 / combate, vigoroso e agressivo que sustentara já algumas das mais ásperas campanhas do jornal, e permanece naquele cargo pouco mais de um ano, por não concordar com o tom de moderação adoptado na análise das medidas governativas. Surgiu, então no cabeçalho o nome de António Augusto de Sousa Maia, que começara tipógrafo, fora revisor, e agora, figurando como editor responsável, participava também na redacção. Mais tarde ligaria o seu nome como director e proprietário a "O Distrito de Aveiro" – um dos vários jornais fundados por José Estêvão – e mantê-lo-ia algumas dezenas de anos.

O reputado jornal aveirense foi singrando, ano após ano, criando e engrossando a corrente dos adeptos, rumando conforme as inclinações do seu pilar e mentor, ora pró ora contra os ventos dominantes. Em Outubro de 1872, toma uma iniciativa: que não pode deixar de considerar-se audaciosa, lançando uma edição quinzenal para o Brasil – onde, aliás, já possuía numerosos assinantes – que sustentou durante cinco anos. O propósito da edição consistia em levar «ao império do Brasil, duas vezes em cada mês, as notícias mais importantes de Portugal e da Europa, concorrendo quanto pudesse para estreitar cada vez mais os laços que prendem os dois continentes». E não seria vão o contributo dado para esse estreitamento por uma publicação que perdurou todo um lustro, e, sendo singular na época, revelava notável rasgo e visão.

Mas importa, sobretudo, o Campeão destinado a Aveiro e ao país. Esse prosseguiu até finais do primeiro quartel deste século, chegando a vangloriar-se de ser o decano dos jornais metropolitanos, do mesmo modo que em dado período se apresentou como o de maior formato. E continuou sendo bem redigido, lido com interesse por um considerável número de leitores, a ter influência pública, ligado aos seus, mas indesmentivelmente dedicado aos interesses locais e nacionais, e estimado como órgão informativo, de noticiário variado e abundante.

Por morte de Manuel Firmino, em 30 de Julho de 1897, seu filho, Firmino de Vilhena de Almeida Maia, ocupava a direcção do jornal que, tendo militado por muitos anos no partido progressista, veio a evolucionar no sentido da política republicana e a alinhar nas fileiras «democráticas».

O novo director, formado na escola de seu pai, mas menos propenso à acção, mantém o jornal num elevado nível, a par dos mais conceituados da província, com boa colaboração e uma ampla secção noticiosa na cidade e do distrito, que lhe infundem real interesse, ainda que já entrasse em declínio de influência. / 42 /

Firmino de Vilhena, além de inúmeros artigos e locais que, quase sempre anónimos, deixou no bissemanário – por fim apenas hebdomadário –, escreveu e publicou numerosas e apreciáveis produções poéticas e algumas obras teatrais, interessantes e bem tecidas, representadas com muito agrado por amadores aveirenses. Entre os seus trabalhos literários, citaremos: Crianças, poemeto a propósito das inundações da Andaluzia, 1885; Hespanholas, versos, 1885; Sombrios, versos, 1886; O Beijo, 1886; Perdão, drama em 3 actos, de colaboração com J. CUNHA E COSTA, 1886; Ao desamparo, poesia, 1892: Na mi-carême, versos, 1893; Noivos, comédia em verso, 1894; A Fábia em Aveiro, comédia em 3 actos, 1901; Renova do Catimbau, I acto, 1904; Fraquezas do nosso próximo, I acto em verso, 1906; Lutas de gigantes, quadras, 1907; Na festa da bandeira, poema, 1910; Amores no Campo, opereta de costumes, 1910; Mulheres da Cruz Vermelha, apropósito representativo, 1919; e Estio festivo, auto dramático em verso, 1922.

O último período do Campeão, contado a partir do falecimento de Firmino de Vilhena, a 5 de Outubro de 1922 (9), é a fase fugaz da direcção do dr. Manuel de Vilhena e não ultrapassa o ano seguinte. Dificuldades ocasionais não permitiram conservar aquela honrosa herança do avô e do pai ao derradeiro director, aliás dotado de invejáveis qualidades literárias (10) e que, apesar de mais inclinado a outras actividades intelectuais, imprimira ainda ao jornal uma feição mais moderna, e aparentemente de bons auspícios. Quebrado o impulso provindo do seu animoso iniciador, mudadas as circunstâncias e determinantes, o glorioso Campeão veio a extinguir-se com o n.º 6.879, de 26 de Janeiro de 1924. Em Manuel Firmino o jornal era uma necessidade, uma forma de se afirmar e de exercer a sua missão de homem público; no dr. Manuel de Vilhena representava o encargo de manter, uma tradição de família que, à margem das suas predilecções jurídicas, manteria por diletantismo(11). / 43/

O velho "Campeão das Províncias" cessou a publicação, mas deixou um nome vincado na imprensa nacional e, particularmente, na história do jornalismo aveirense, onde não ficou apenas como o periódico mais duradouro, mas, incontroversamente, como dos mais notáveis e representativos. As figuras a que aludimos nesta despretensiosa notícia evocativa do centenário, sobretudo o seu diligente criador, assinalaram-se como os principais obreiros dessa honrosa e memorável empresa. O jornal contou, porém, com colaboradores de elevada envergadura intelectual e política, entre eles, vultos das mais proeminentes, que muito contribuíram para a evidência que atingiu. Entre os mais notáveis, José Estêvão e Mendes Leite, fraternos companheiros nas lutas pelos princípios liberais, as duas maiores figuras aveirenses da época, deram-lhe valiosa cooperação nos primeiros anos, mas as vicissitudes da política vieram depois a inimizá-los com o períódico que muito haviam acarinhado. Honraram-lhe também as colunas o poeta Tomás Ribeiro; o famoso bispo de Viseu, D. António Alves Martins; o dr. Tomás de Carvalho, insigne figura de universitário e de homem de letras; o notável jurisconsulto Alexandre de Seabra; e os aveirenses Bento de Magalhães, Agostinho Pinheiro, Domingos Carrancho, Francisco de Resende Júnior, padre José Joaquim de Carvalho e Góis; o eminente jurista e parlamentar dr. José Maria Barbosa de Magalhães; o malogrado Fernando de Vilhena, os historiógrafos Rangel de Quadros e Marques Gomes – ao qual fomos na maior parte buscar os elementos recompilados nestas páginas de evocação – (12); / 44 / o dr. Joaquim de Melo Freitas, e vários outros dos mais destacados filhos da luminosa cidade da ria. Deve assinalar-se ainda o nome de D. Maria Arrábida de Vilhena de Almeida, a já citada esposa de Manuel Firmino. Nenhum amparo e nenhum incentivo influíram mais decisivamente para a publicação do jornal, ninguém com mais carinhoso desvelo o acompanhou nos passos incertos ou nas horas de êxito, nem lhe apeteceu uma carreira de maiores venturas. Delicado espírito de poetisa, dispondo de uma bagagem literária pouco vulgar na sua época, senhora que deixou uma recordação perdurável pela distinção, bondade e infatigável solicitude, foi a fada benfazeja do Campeão das Províncias e destinou-lhe numerosas poesias que caíram em injusto olvido. Foi das mais profícuas a sua discreta interferência e das mais estimáveis a sua efectiva colaboração.

Ao terminar este bosquejo da existência do Campeão das Províncias – que, vai para meio século, mereceu ao município ser inscrito nas designações toponímicas aveirenses – ocorre lembrar que há muito existe um busto de Manuel Firmino, que se destinava a perpetuar a sua memória numa praça pública. Agora que as paixões passaram e a distância permite sopesar com imparcial objectividade todos os aspectos da sua acção, corresponderia a menoscabo dos valores relevantes da obra construtiva que legou a Aveiro, a negligência e ingratidão não lhe prestar o preito que a outros presidentes, muito prestimosos e diligentes aliás, mas não mais arreigados no amor da sua terra nem de tão extensa projecção nacional, se dedicou.

EDUARDO CERQUEIRA

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(1)Publicou apenas uns quinze números, o primeiro dos quais em 11 de Outubro de 1846, e tinha como redactor o dr. José Pereira de Carvalho, e Silva, ao tempo secretário geral do Governo Civil, interino.

(2)O "Liberal do Mondego", n.º 40, de 20-9-1851. 

(3) − Em 1853 transferiu-se para a rua do Alfena (actualmente chamada rua do Tenente Resende), n.º 18, e no ano seguinte estabeleceu-se no largo da Vera-Cruz (agora denominado largo de Maia Magalhães), no prosseguimento da que ainda hoje se chama rua do «Campeão das Províncias». Na última fase teve a tipografia e a redacção na rua de Agostinho Pinheiro.

(4)O número avulso custava 40 reis e os anúncios tinham a seguinte tabela: por linha, 40 reis; sendo repetidos, 20 reis; e para os srs. assinantes, metade. 

(5)Vid. ÁLVARO FERNANDES, Francisco Joaquim Bingre, in "Arquivo do Distrito de Aveiro", vol. V, págs. 187 e 289; e Dr. JOSÉ TAVARES, Um inédito do poeta F. J. Bingre, vol. XIV, pág. 65 também do Arquivo.  

(6)Dr. JOSÉ TAVARES, Aventuras de um aveirense ilustre, in "Arquivo do Distrito de Aveiro", voI. XV, pág., 227. Publicou no Campeão diversas poesias, algumas das quais muito apreciadas e conhecidas. N. em 23-10-1830; m. em 14-4-1882.

(7)Nasceu em Mosteirô, concelho da Feira, em 11-3-1818, e morreu  quase octogenário, no posto de general de brigada. Foi engenheiro distinto, tendo frequentado o curso de pontes e calçadas em Paris, onde, em 1848, assistiu à proclamação da República.

(8)Admite-se que, tendo evolucionado para a forma republicana do Poder, o seu nome chegasse a ser designado para ministro da Justiça do Governo Provisório da República. Se porventura vingasse a revolução planeada pelo directório do Partido Republicano e a que o 31 de Janeiro tirou todas as viabilidades de preparação e êxito, Homem Cristo, que era figura dominante no directório, nunca das diversas vezes que me falou do dr. Teixeira de Queirós, aludiu a essa hipótese. Simples acaso? Ou ignoraria os propósitos dos seus colegas do directório? 

(9) O n.º 6.818, de 5 de Novembro de 1922 foi inteiramente consagrado a homenagear Firmino de Vilhena. Inseria colaboração de Marques Gomes, António Correia de Oliveira, dr. Jaime de Magalhães Lima, dr. António Emílio de Almeida Azevedo, dr. Joaquim de Melo Freitas, dr. Querubim Guimarães, Cónego Marques de Castilho, Padre Manuel Rodrigues Vieira, dr. E. Sanches da Gama, etc.  

(10) Escreveu para o teatro as seguintes peças, que ficaram inéditas: A Beira Ria, 1 acto, levado à cena pelos alunos da Escola Industrial e Comercial de Fernando Caldeira; O Amor Vence, 3 actos, com música também da sua autoria; e Mistérios da Sala Azul, 3 actos.

(11) Numa pequena local do último número liam-se as seguintes palavras: «Tendo o quadro tipográfico desta empresa pedido aumento de ordenado justificado pelo agravamento do custo de vida, mas incompatível com o nosso orçamento", vemo-nos forçados a suspender temporariamente a publicação do Campeão»... Não voltou a imprimir-se.

(12) MARQUES GOMES, Cinquenta anos de vida publica, Aveiro, 1899.

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