NA
história da imprensa periódica aveirense, sem dúvida das mais ricas e
significativas das pequenas cidades nacionais – e bem digna de um estudo
de conjunto ainda por efectuar – ocupa um lugar destacado o "Campeão das Províncias", inicialmente chamado
"Campeão do
Vouga", de cuja fundação passou agora o primeiro centenário. O papel
preponderante que esse jornal desempenhou durante largas décadas da vida
pública de Aveiro, quer no ponto de vista da doutrinação e acção
política, quer na propaganda e defesa dos problemas .regionais ou na
divulgação dos seus motivos de prestígio e das suas glórias, na
revelação dos seus valores intelectuais e espirituais ou nas iniciativas
que tomou e preconizou, constituem motivo sobejo para que a data, embora
por pena discreta, seja recordada e assinalada nesta oportunidade.
Por três quartos de século, através da vivacidade das pugnas partidárias
e das aziumadas divergências entre os influentes locais e seus adeptos,
perpassaram nas colunas do importante jornal os acontecimentos, as
aspirações, os regozijos e os desaires, as simples anotações ou registos
de factos ocasionais e rotineiros e, em todos os casos, uma
constante afirmação de férvido aveirismo, um propósito e um sentimento
permanentes de valorização do património moral e material da cidade e do
seu alfoz.
Numa época em que a imprensa periódica constituía muito menos do que
hoje um objectivo elemento de informação e bastante mais do que
presentemente se apresentava como um intensivo foco de controvérsias
ideológicas ou pessoais, estimuladora e agitadora dos espíritos e das
opiniões,
/
26 /
o Campeão foi, sem dúvida um repositório e um testemunho dos
acontecimentos locais, mas teve ainda mais acentuada relevância como
actor, figurante de primeira plano, directo e activo, na cena pública
da cidade e do distrito.
Nasceu de gente nova, com os intemeratos entusiasmos e as ilusões
generosas próprias da idade, eivada de novas ideias, vogando nas águas
do romantismo e do liberalismo.
O consulado cabralista findara e abriam-se novos horizontes aos moços
irrequietos e inconformistas. De Avanca, onde dissentindo já das
paternas predilecções absolutistas, exercera antigamente as funções de
regedor, Manuel Firmino
de Almeida Maia, regressara à sua terra natal, cheio de confiança nas
suas pujantes qualidades e decidido a patenteá-las e fazê-las vingar.
Tivera já ocasião de medir, no escalão
em que se marcava a envergadura dos dirigentes políticos, o vigor da sua
vontade, a sua arte de manejar os homens indecisos e de contactar com os
mais poderosos, os seus
dotes de aliciação pessoal, a clareza do seu sagaz discernimento na apreciação dos negócios da administração. Sabia-se capaz; tomou
consigo a deliberação e o íntimo compromisso de demonstrá-lo.
A imprensa, soltas as peias do malquisto cabralismo, era
o campo
propício para um jovem, compenetrado dos seus méritos, audaz e
voluntarioso, provar e exercitar as faculdades iniludíveis que
aguardavam o ensejo e o quadro de acção para se manifestarem e
convencerem. O jornal seria o veículo das suas doutrinas, dos seus
critérios de julgamento e conduta, do poder de irradiação da sua
inteligência e da sua vontade, o instrumento de que se serviria para
persuadir das suas verdades e refutar as contrárias, para levar
o seu nome a um círculo cada vez mais largo de leitores,
quiçá, de admiradores e correligionários, para lançar mais
um avantajado passo na conquista da evidência, da popularidade e das
posições de onde se comanda e onde se constrói.
Havia que lançar um jornal em
Aveiro, apesar das enormes dificuldades
que se antepunham à empresa. O país não contava, então, mais de uma
vintena de folhas periódicas, editadas, apenas, em Lisboa, Porto,
Coimbra, e em Aveiro,
que é como quem diz, em todo o distrito, só até essa altura se publicara
o "Boletim de Notícias". Este, porém, surgiu, com um carácter muito
especial, pela força das circunstâncias de ocasião, e desapareceu com
elas, num curto trecho de tempo(1). Era, com efeito,
aquilo que, com
rigorosa
/ 27 / propriedade, se pode chamar um boletim, cingido a sucintas
resenhas dos sucessos políticos e militares e aos comunicados e
proclamações oficiais do primeiro magistrado do distrito, Custódio
Rebelo de Carvalho, a cuja iniciativa se ficou devendo a publicação.
Imprimia-se no prelo existente no Governo Civil, diariamente, apenas
numa página, para trazer o público ao corrente da marcha das forças
«patuleias», e manter sem desalento o moral da população, exortando-a a
conservar-se confiante no êxito das providências tomadas
pelas autoridades, que representavam aquela corrente e procuravam
sustê-la na governação do país contra o recente golpe de estado dos
mesmos cabralistas que meses antes haviam apeado do poder. Não era pois
um jornal no sentido que corrente e mais ajustadamente costumamos dar à
palavra.
Manuel Firmino estava na plenitude dos seus vinte e
sete anos, robustos e desembaraçados. Apoiado, se não instigado, pelo
conselho acalentador da dedicada esposa – cultivada senhora que
frequentava as musas com inspirada elevação – lança a ideia do jornal
por meados de 1851.
A primeira adesão à iniciativa, porventura a mais decisiva
e valiosa, encontrou-a num adolescente que encetava os
passos de uma carreira política de contínuos triunfos – o
aluno de direito José Luciano de Castro Pereira Corte Real.
Em casa do pai, o Morgado de Oliveirinha, tomara contacto com a
prometedora precocidade do jovem estudante, colaborador já nesse tempo do
"Observador", de Coimbra, onde
os seus dezassete anos não desluziam em confronto com os colaboradores
consagrados, transmite-lhe o seu entusiasmo,
conquista-o para o empreendimento, torna-o inseparável
companheiro dos trabalhos preliminares para essa sedutora
ousadia.
Em fins de Agosto distribui-se o prospecto anunciando a saída do
"Campeão
do Vouga" – Jornal literário e político – e indicando como redactores José
Luciano, António Nogueira Valente e Bernardo Xavier de Magalhães – outro
aveirense
ilustre que deixou apreciadas produções poéticas. Contava
este, na ocasião, vinte anos, e frequentava também o curso de direito
que, por espírito aventuroso abandonou, tempos mais tarde, para ir
tentar fortuna na Austrália.
O prospecto-circular é concebido nos seguintes termos,
de empolada retórica(2):
«Um novo jornal vai aparecer neste canto de Portugal, um novo soldado vem tomar a cruz, e marchar
/
28 /
para a santa cruzada da emancipação do pensamento! Um novo operário vem
cimentar com o seu sangue as colunas do grande edifício da civilização e
da literatura.
Vai pois surgir em Aveiro, nessa pequena cidade
levantada sobre as ruínas da antiga Talábriga, um jornal literário e
político, uma atalaia do pensamento e do bem público. Não lhe pergunteis
pelas cicatrizes que recebeu no campo de batalha, quando encarou o
inimigo, não lhe peçais que desenrole a vossos olhos o límpido manto das
glórias passadas, não, porque nada disso tem o "Campeão do Vouga"; é um gladiador que vem ao anfiteatro recrear o povo, é um
atleta, que, mirando-se na doce corrente do Vouga, e nascido ao brando
sussurro das suas cristalinas águas, vem enristar a lança, e defender
passo a passo as suas encantadoras margens.
O Campeão do Vouga será um jornal literário em
cujas colunas terão um honroso lugar a história, biografia, descrições,
a poesia, a tradução de alguns trechos mais importantes, etc. Como
jornal político apresentará em folhetins, para isso destinados, a
crítica dos defeitos e ilegalidades praticadas em qualquer das
terras do distrito, e que cheguem ao nosso conhecimento,
publicará correspondências, etc. Com relação à política geral
buscaremos e preconizaremos o melhor onde o encontrarmos, estigmatizando
os erros seja qual for a parcialidade de onde partam, indicando
convenientemente o caminho a seguir.
A nossa divisa, o nosso timbre será
– O Amor da Pátria, a que morreremos
abraçados.
Conhecemos a arduidade da matéria, mas não trepidamos, não recuamos ante
ela. Oxalá que uma estrela propícia nos sirva de farol, na alpestre
vereda por onde caminhamos.
Para realizar esta empresa imploramos o auxílio de
toda a imprensa, especialmente literária, e de todos os nossos
conterrâneos.
– Publica-se uma vez por semana. Assina-se em
Aveiro, no Escritório da
Redacção. Preço da assinatura: Por ano, 2.000 reis; por semestre, 1.100
reis; por trimestre, 550 reis.»
A iniciativa tinha sido trazida ao conhecimento público
e agora seria desprimoroso, se não impossível para o brio dos pundonorosos promotores da empresa, anunciá-la e não
a efectivar. Todavia, por cada dificuldade vencida, surgia
novo obstáculo a galgar. Adquirida uma larga parcela do material
pertencente à modesta tipografia de Joaquim Maria
Plácido – única que existia além da do Governo Civil
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29 /
recorrera-se à habilidade do ensamblador José Pereira para executar um
imprescindível prelo de madeira. Escasseavam, porém, os profissionais
gráficos para trabalho de tamanha
monta e responsabilidade; faltavam os recursos financeiros para lançar a
publicação e sustentá-la com normalidade; possivelmente o público olhava
a iniciativa – talvez não constituísse maior aventura lançar hoje em
Aveiro um diário com incredulidade; e os próprios colaboradores eventuais
hesitavam, porventura. em tomar compromissos de alimentar a glutonaria
da folha, sempre ávida de frescos linguados
de prosa, com produção regular ou, ao menos, assídua.
|
Mas não estava na índole perseverante de Manuel Firmino desistir a meia
encosta, nem José Luciano o deixaria desacompanhado a enfrentar os
contratempos e embaraços; as atitudes negativas dos cépticos, as
emulações daqueles que tomam como uma usurpação o realizar de uma ideia
que
o seu arguto engenho poderia ter concebido mais perfeita e
mais pronta... mas lhes não ocorreu em tempo oportuno. Conseguiram
tipógrafos, embora em condições precárias, ganharam a confiança dos
irresolutos e dos menos crédulos e, graças à generosidade afectuosa da
mãe do segundo, desvanecida com os sucessivos êxitos do filho, em que se
revia orgulhosa e com a possibilidade de abrir-lhe nova senda aos
caminhos, da glória que lhe ambicionava, também foi
/ 30 / solucionada a questão económica. A bondosa senhora cedeu, para as despesas
iniciais do jornal, um valioso cordão de oiro, pelo qual um capitalista
adiantou as precisas e suficientes quinze moedas.
O "Campeão do Vouga" veio, assim, a publicar o primeiro
número em 14 de Fevereiro de 1852 – completou-se agora
um século –, subintitulando-se de «Jornal político, literário e
comercial».
A política e a literatura, ao concretizar-se a
iniciativa, trocaram a ordem, dando primazia à primeira,
a qual, aliás, seria pelo tempo adiante a razão dominante do periódico,
e alargou-se ao âmbito das actividades mercantes.
Não correspondem também os nomes que figuram na cabeça
com os do prospecto anunciador. Procurara-se, entretanto, para o cargo
de redactor principal um nome mais decisivamente conceituado, com maior
prestígio literário e político,
mais seguro garante do nível e dos propósitos que animavam a folha. Encontrava-se em
Aveiro, afastado das suas
funções de delegado do Procurador Régio, o dr. José Maria
de Almeida Teixeira de Queirós, filho do principal maquinador e orientador do movimento liberal de
16 de Maio
de 1828, o íntegro e denodado conselheiro Joaquim José de Queirós e Almeida, que deixara veneranda memória entre os seus
conterrâneos. Era ainda novo, se bem que passante
já dos trinta anos, dera iniludíveis provas na política da sua
fidelidade aos princípios que animariam o jornal, e granjeara
uma lisonjeira reputação entre os românticos cultores das letras dos
seus tempos de Coimbra. O seu poema Castelo do
Lago, considerado «de extenso fôlego scoteano», na apreciação de CAMILO, obtivera uma auspiciosa acolhida e constituiu
o digno coroamento «dos versos irisados e subjectivamente
petrarquistas», publicados enquanto académico coimbrão na "Crónica Literária da Nova Academia Dramática",
– onde igualmente fizera sair alguns artigos com os seus conceitos sobre o
teatro e a novela histórica O Mosteiro de Santa
Maria de Tamarães – e no Ramalhete. Personalidade já
acreditada, o dr. TEIXEIRA DE QUEIRÓS – progenitor do grande
EÇA DE QUEIRÓS que, por essa ocasião, vivia pelos lados de
Aveiro com a família paterna e, naturalmente, com o próprio pai – foi o
escolhido para a direcção política do jornal.
Como editor figurava o bacharel João Gonçalves Meireles
Monteiro, muito conhecido no meio aveirense e, finalmente, o lugar de administrador pertencia a Manuel Firmino.
Ficava ao leme da barca que gizara e lançara nas águas tumultuosas e incertas da publicidade, enfrentando as borrascas e
os baldões e conduzindo-a com pulso vigoroso e seguro para os destinos que antevia dilatados.
José Luciano e Bernardo de Magalhães não apareciam como redactores efectivos ou responsáveis da publicação, mas
/
31 / conservavam-se fiéis à sua sorte. Seriam colaboradores permanentes, ou
quase, assinariam as suas produç6es, mas, talvez em consideração da
idade e da inexperiência, deixavam os lugares de comando aos
companheiros mais idosos.
O jornal foi impresso na Tipografia de Manuel Firmino de Almeida Maia,
na rua Larga (hoje rua de José Estêvão), n.º 16, e tinha a redacção na
rua dos Ferradores (actual rua de Domingos Carrancho), n.º 3
(3).
Os preços da assinatura são mais elevados do
que os mencionados no
prospecto atrás transcrito: por ano, 3$000 reis;
por semestre, 1$500 reis; e por trimestre, $750 reis(4). Não
houve, porém, propriamente um encarecimento. Ao contrário, cada número
tornou-se mais barato, pois em lugar de publicar-se uma vez por semana,
como era a intenção inicial, saiu como bissemanário, com uma edição aos
domingos e outra às quintas-feiras.
Estranhar-se-á, acaso, que em meados do século passado se sustentasse um
bissemanário em Aveiro, quando os jornais de hoje fazem uma só tiragem
semanal. Considere-se, porém que os diários chegam poucas horas depois
de publicados no Porto e em Lisboa e satisfazem, assim, rapidamente, a
curiosidade dos leitores com o relato dos acontecimentos nacionais e
estrangeiros.
Mas vejamos, resumidamente, do que constava o primeiro número de
"O
Campeão do Vouga". O artigo politico de apresentação, que seguia a uma
nota justificativa da demora involuntária do aparecimento do jornal e
oferecia as suas colunas «a todas as capacidades do distrito que queiram
concorrer connosco para o fim útil, e exclusivíssimo do jornal – o bem
público –, na acepção mais lata da palavra», era com as maiores
probabilidades, da lavra do redactor principal, a quem competia traçar a
orientação ideológica.
Substituindo alguns termos e mudando de pontos de vista doutrinários,
sem relutância de maior o suporíamos actual: «Estamos entrados no ano de
1852, em que vão talvez decidir-se os destinos da Europa, e escrever-se
o Evangelho politico, pelo qual há-de definitivamente ser governada.
Está eminente uma luta de morte entre a reacção e a revolução liberal».
(Ponhamos o oriente e a civilização ocidental, e parece de agora). «A
força está armada contra as ideias,
/
32 /
o braço contra a inteligência, a escravidão contra a nacionalidade». E, logo acrescenta: «É por isso que neste ano todas
as forças da inteligência devem convergir ao ponto onde as
chama o estandarte da regeneração europeia». Não falaria
outra linguagem, neste ensejo em que se pretende congregar
as nações ocidentais numa frente comum, qualquer «leader»
das assembleias internacionais.
A posição que tomava, porém, era no campo das ideias
liberais que «caminhavam ao passo que a ilustração ia chegando a todas as classes, e que a razão e a inteligência do
povo se desenvolve e engrandece». Vincava resolutamente
essa posição: «Pertencemos ao grande partido liberal. Temos uma crença
firme no progresso do espírito humano; e é dela
que esperamos a aurora da redenção». O estilo é romântico,
certas palavras puíram-se com o abuso, mas ressumam nos
ecos vagos, a nobreza e generosidade de intenções. Aliás,
não desprendiam os pés do solo, nem, ponderadamente, desprezavam as
lições dos factos. «É necessário – concluía o
artigo – que sejamos revolucionários, mas nas ideias, e não
nas praças. Têm-nos alcunhado de anarquistas e demagogos;
talvez porque não sabem apreciar a sensatez do nosso juízo, a elevação
das nossas ideias, a prudência das nossas aspirações; talvez porque querem indispor-nos com a nação, e com
a Europa. (Aqui se referia, é evidente, a todos os adeptos
dos mesmos princípios e não ao jornal. Indispor este com
o país seria já excessiva presunção; mas com toda a Europa
ultrapassaria as raias do bom senso). Ou é um erro ou uma
deslealdade. Não renegamos as nossas crenças, nem encobrimos as cores da
nossa bandeira: mas temos bastante
prudência para não comprometer o futuro com as nossas
leviandades. O convénio de Gramido deixou-nos amargas
recordações. Somos altamente revolucionários nas reformas
internas do país. Dêem-nos um governo que atenda às necessidades públicas, que promova o crédito, a viação, a educação popular, a organização do trabalho, e todas as mais
reformas económicas e administrativas de que o país carece,
e seremos eminentemente conservadores». (E quem o não
seria, obtidas todas as reformas necessárias?).
O número propunha-se, naturalmente, dar a conhecer o
que seria o jornal no futuro: «O Campeão do Vouga – lia-se
já na página imediata – é um periódico de verdade, de justiça, de tolerância e de independência. Havemos de apresentar os actos da administração pública à sua verdadeira
luz, apreciá-los sem ódio, nem afeição de partido.» Não
apoiaria o ministério em todos os actos governativos, só por
afeição aos membros que o compunham, nem o combateria
acintosa e apaixonadamente só porque não pertencesse à
mesma facção política, e apontaria os erros para deles se tirar
/
33 /
[Vol. XVIII -
N.º 69 - 1952]
lição em empreendimentos futuros. «Mas havemos de julgar os actos, e não
os homens. E, se porventura uns e outros estiverem de tal modo
identificados que na apreciação daqueles possamos ferir algumas
susceptibilidades, desde já declaramos sinceramente que nos leva a isso
a suprema lei da utilidade pública, que, para nós, é omnipotente, e
superior a todas as considerações pessoais».
Entra depois, numa local solta, a ventilar um momentoso assunto de
interesse local. Contra o distrito de Aveiro esboçava-se uma ameaça de
supressão, dado que o governo estava autorizado a reduzir a doze as
existentes no continente. Mas, sentenciava o comentador, «reformar não é
destruir». «É fácil compreender a dificuldade de assentar em
outro distrito – adiantava – as molas em que, no de Aveiro, roda a
gerência administrativa: e quando se trate de as assentar é que hão-de
sobrevir os grandes obstáculos, e o resultado há-de ser uma negação
absoluta das inculcadas conveniências». Oitenta anos mais tarde haveriam
de utilizar-se idênticos e não menos judiciosos argumentos, embora com
menor felicidade de êxito, quando da extinção da Junta Geral do
Distrito.
No «Folhetim» poético, o nonagenário FRANCISCO JOAQUIM
BINGRE, o venerando e desafortunado «Cisne do Vouga», «Francélio
Vouguense», da Nova Arcádia(5)
–, «baldo a forças viris, caduco e anoso»,
com seus dedos trémulos e anquilosados, extrai da velha lira um soneto
de louvor ao
«Corajoso Campeão do Vouga amigo,
De uma heróica cruzada liberal:
Que as nuvens desfazer de Portugal
Pretendes imitando o Hispano Brigo!...»
Bernardo de Magalhães, que dera o seu apoio nos trabalhos preliminares
da fundação do periódico, está presente no mesmo rodapé. Colabora com o
poema em verso solto «Invocação», hino que o «bardo novel» ergue à terra natal
– «e ai do descrente que diz: é minha pátria o globo inteiro!» –,
canto de saudação e louvor que remata em tom de comovida endecha:
«Quero em prémio que a terra do meu berço
Me cerre os olhos, quero que o viandante,
Quando passar nos devolvendos séculos,
Leia no meu sepulcro: aqui descansa,
Abraçado c'o a mãe, um dos seus filhos.»
/
34 /
E os seus ardentes desejos da mocidade, apesar das aventurosas viagens
– que se admite haverem origem em desenganos amorosos –, e de três penosos anos na longínqua
Austrália, onde não encontrou os lendários filões de ouro,
vieram a cumprir-se – a terra que lhe fora berço serviu-lhe
também de sepultura(6).
José Luciano, o mais pronto e prestimoso companheiro
do fundador, não podia faltar. Subscreve uma «Introdução
literária» e aí proclama convictamente: «O espírito é o rei
do futuro, livre e independente levanta a bandeira da ressurreição social, desdenha a ignorância e a superstição sentado
no seu trono de diamantes.» Enfeita o estilo com todas as
riquezas de expressão de que dispõe, defende com ardor a
liberdade do pensamento, num ou outro passo lança afirmações de nítida heterodoxia católica, para terminar: «Fortalecidos com a fé em Deus e no progresso social, e submissos nesse campo
glorioso, em que inteligências mais fortes já se
têm estreado – nós vimos, com a mão no coração escrever
algumas páginas de instrução para esse povo que desfalece
à míngua – e que marcha com os olhos vendados pela neblina
da ignorância, no caminho das gerações. Se nos enganarmos,
oxalá que Deus e o futuro nos perdoem.» Falava a sinceridade, muito longe ainda das responsabilidades do poder e
das contingências da acção. Talvez se enganasse nalgum
ponto enunciado, por falta de experiência e de conhecimento
das realidades; como, porventura, se afastaria das suas próprias verdades, ao sacrificar alguma vez, ante os casos concretos e constrangentes, os puros princípios e os valores do
espírito. O misericordioso Deus, decerto, lhe perdoou as
ilusões e os deslizes, e o futuro, que já somos os de agora,
propende mais a Julgar pelas qualidades positivas do que
pelas transigências aos ideais.
Um último artigo doutrinário
– «O Jornal e o distrito» –
vem assinado por Francisco Maria de Sousa Brandão(7), que
haveria de distinguir-se como propulsionador de organizações proletárias e na fundação do Partido Republicano Português, de cujo directório fez parte em algumas ocasiões.
É um elogio ditirâmbico da imprensa pois «tem formado
uma ciência pública que, pela sua força e extensão tem exautorado as ciências antigas das universidades, e democratizado
/
35 / as suas doutrinas
mais elevadas». Aponta com clarividência
incontestável a influente acção do jornal na ilustração das diversas
classes de leitores, quer expondo as conquistas da ciência ou o
decorrer dos factos, pretéritos e presentes, «à lareira do lavrador, na
tenda do vendilhão, na loja do operário, como na banca do advogado e no
bufete do ministro do Estado», quer no despertar e incentivar as
correntes de opinião: «Quando às nossas mãos chegavam as folhas em que líamos as revoluções de um país vizinho, era como se tocássemos o
excitador eléctrico, que nos comunicava o mesmo estremecimento que eles
sentiam». E no calor dos encómios, esse homem que manteve sempre acesa a
chama das suas convicções, vai aos exageros retóricos, para exalçar o
seu ideal, escolhendo uma imagem que não pode deixar de
provocar, ao menos, um sorriso indulgente: «A democracia vive nos tipos, tem um corpo de chumbo e
zinco.»
As restantes colunas do jornal eram preenchidas com uma correspondência
de Ílhavo, notícias, uma tabela dos preços de alguns géneros (500 reis,
6 alqueire do trigo; 360, o do milho branco; 450, em média, o do feijão)
e uma nota do movimento do porto de Aveiro.
O "Campeão do Vouga", como o nome aliás inculcava, vinha com seus assomos
de ardoroso defensor de um ideal e de uma região, e vinha para
prosseguir intrepidamente a sua missão orientadora e informativa. Mas a
tarefa era espinhosa e os escolhos do caminho não haviam sido de todo
aplanados, e as contingências da vida ora fixam os homens numa terra,
ora os obrigam a deslocar-se, unem-nos ou separam-nos, no espaço e nos
laços do afecto.
Logo a 17 de Abril, apenas decorridos dois meses
sobre a saída do
periódico, o dr. TEIXEIRA DE QUEIRÓS abandona o seu lugar de redactor
principal. Ia regressar às suas funções oficiais e residir no Porto.
«Assim, não posso continuar na redacção do Campeão do Vouga; pois
entendo que não se pode redigir bem um jornal, a não ser na própria
terra em que se publica». Deixava, «muito a seu pesar», a redacção do
jornal e deseja-lhe longa e próspera duração. As convicções eram
firmemente as mesmas: «Os meus princípios políticos não mudaram. Posso
dizer afoitamente que não mudarão; porque são filhos de uma convicção
profunda, e da experiência que tenho dos homens e das causas. Apesar dos
meus poucos anos, politicamente tenho vivido muito. Assim vai caminhando
este nosso século; que hoje, em política, vive-se mais em um dia que os
nossos antepassados viveram em muitos anos»
(8).
/
36 /
No ano imediato voltou a Aveiro, para aqui exercer
durante algum tempo o seu cargo de delegado do Ministério Público, mas, porque a natureza do lugar não lho permitia,
não só permaneceu afastado do posto que ocupara no jornal como se julgou
inibido de lhe prestar qualquer colaboração de relevo.
A direcção política do
periódico foi assumida – íamos
dizer naturalmente – por José Luciano de Castro, que não
se conservará na efectividade do lugar por mais de dois
meses (19 de Abril a 21 de Junho). O jornal estava no início,
desejava singrar e criar raízes, necessitava de usar, para esse
fim, de uma cauta moderação, de captar e não desagradar.
O jovem estudante, nos seus arrebatamentos moços estaria
de algum modo a comprometer-lhe o futuro: – «os meus artigos eram
sujeitos à censura de pessoas que estavam bem
longe de o poderem fazer.», «Via-se obrigado a quebrar a pena
de escritor severo e independente e a mergulhá-la na urna
da lisonja.» Queria antes desagradar do que degradá-la e, assim,
despedia-se, aproveitando uma suspensão do jornal,
a que adiante nos referiremos, com as susceptibilidades
magoadas, mas «fazendo votos pela duração do Campeão
do Vouga, cuja existência, se receber alguma animação,
pode ainda ser de alguma utilidade para a terra que o viu nascer.»
Com alternativas várias mudaria, no decorrer do tempo
a disposição do jornal em relação a José Luciano, com quem sustentou em
certo período uma luta extremamente agreste,
através de uma campanha de descomedida violência, cujos
ecos se ouviram no parlamento, mas que noutras circunstâncias lhe
mereceu as referências mais elogiosas.
A causa do afastamento do jovem e imaleável redactor
político parece devida mais a intervenções estranhas do que
propriamente a desinteligências com Manuel Firmino, ou
qualquer dos companheiros do jornal. Este ver-se-ia forçado a transigir perante as necessidades, para não ver malograda a obra a que se devotara com tanto empenho, mas
acabou também reagindo contra as pressões que se vinham
exercendo, Um suplemento ao n.º 37, de 22 de Junho, anunciava a
suspensão a que atrás aludimos, e justificava-a: «Os
compositores do jornal eram, até agora, cumulativamente
empregados do governo civil; já se vê por esta circunstância
/
37 / que nem o
jornal podia ser imparcial, como há-de ser infalivelmente;
nem ser publicado com a regularidade necessária, visto que aqueles
empregados têm no governo civil obrigações diárias a que satisfazer.»
|
Passou a exercer a direcção política do jornal José Maria de Sousa Lobo,
que ano e meio antes ocupara o cargo de
/
38 /
governador civil do distrito. Mas já Manuel Firmino, sempre zeloso a
velar pelo êxito e pelo futuro do que era fundamentalmente obra sua e em
cuja redacção colaborara permanentemente, tomara o comando da táctica
política a adoptar e na orientação geral a ministrar-lhe.
Em consequência de uma campanha implacável contra o governador civil da
altura, Antero Albano da Silveira Pinto, o Campeão (já antes, de 9 a 23
de Agosto, forçado a crismar-se com o nome de Aveirense, em consequência
de
Mendes Leite, que dera origem à acerada polémica haver, entretanto,
transigido e deixado de ser o fiador do jornal,
que persistia na sua atitude) sofreu uma suspensão por sentença judicial, acerbamente criticada por diversos órgãos da imprensa. O
jornal passara a hostilizar o governo que sustentava o malquisto
governador civil e veio a sofrer as consequências da sua intransigência.
O cargo de redactor político passara então a ser exercido por José
Eduardo de Almeida Vilhena, que seria o articulista mais fecundo e
representativo do bissemanário, prestando-lhe apreciáveis serviços
durante dezenas de anos e deixando nas suas colunas centenas de
artigos, nos quais revelou qualidades de verdadeiro jornalista, e
numerosas produções poéticas.
Todavia, desde Março de 1853, na cabeça do jornal figurava
apenas um nome, o de Manuel Firmino de Almeida Maia,
na tripla qualidade de proprietário, redactor e responsável. Dera, pouco
antes, publicidade à seguinte declaração: «Dispensamo-nos de hoje para o
futuro de assinar os nossos artigos. Gerente único, proprietário
exclusivo deste jornal, queremos e devemos tomar sobre nós toda a
responsabilidade da sua doutrina. Ninguém mais, por conseguinte, a
partilhará – caber-nos-á toda. M. F. A. Maia».
O Campeão, em boa verdade, não era só sua propriedade, mas construção sua, desde os alicerces levantada pelo seu esforço
infatigável e pela sua vontade. Deixava de ser partilhado por outras
inteligências, ganhava unidade e tomava
a feição definitiva. Era e permaneceria a tribuna de Manuel
Firmino, o seu potente porta-voz, o instrumento que, principalmente,
utilizaria para tentar e alcançar a sua ascensão
contínua na vida social e pública – mais propriamente o seu
órgão pessoal do que um jornal partidário. Alargava-se cada
vez mais o círculo de influência do já radicado periódico, tornava-se
maior a audiência das opiniões que expendia e, por conseguinte, mais
saliente o prestígio do seu director. A defesa dos problemas locais e
dos mais honrosos títulos
da cidade atrai-lhe simpatias entre os conterrâneos; a posição que toma na política do distrito eleva-o no conceito das populações
dos vários concelhos; a crítica e a intervenção no mais largo âmbito dos
assuntos de importância nacional
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revelam-no como um valor útil aos mentores da governação. Em 1860, a sua
primeira eleição para presidente do município aveirense, onde tão
prestimosos serviços iria prestar à sua terra natal, acontece como um
facto natural e lógico, numa evidente relação de causa e efeito.
Subira o primeiro degrau como regedor de Avanca, vencera um segundo, que
lhe trouxera os galões de tenente-ajudante do batalhão nacional de
Estarreja, nas lutas contra o cabralismo. Avançava outro, mais
sobranceiro e dificultoso de atingir, assumindo durante quatro biénios
consecutivos a gerência da Câmara Municipal da sua terra e iniciando um
dos surtos de progresso da vida de Aveiro. Hábil, sabia ladear os
obstáculos; inteligente, tinha a visão dos problemas
e propunha-lhe as soluções convenientes; contumaz, sabia perseverar nas
suas resoluções. E era lhano e afável, dispunha da capacidade de querer,
e saber querer, e de incansável energia. Capaz de sacrificar os seus
próprios interesses em favor dos que necessitavam dos seus ofícios, não
regateava a sua influência, o seu empenho e até a sua bolsa, como não
fugia à luta se as circunstâncias o obrigavam a degladiar com os
antagonistas de ocasião, nem se confinava à rotina, mesmo quando
parecesse demais ousado. Tinha
o vício inveterado e a virtude da política, amigos lealíssimos
e irreconciliáveis inimigos, como é condição dos que sobressaem da
mediania estéril e se votam à acção. Ao lado de serviços prestantemente
benéficos, cometeu erros, e a par com as críticas pertinentes, foi alvo
de ataques sem justo fundamento. Mostrou, decerto, fraquezas, mas foi
essencialmente uma personalidade forte, diligente, operosa e profícua.
Teve, sem dúvida defeitos, mas talvez os defeitos necessários para
demonstrar as suas qualidades e torná-las benfazejas. Era bondoso e
prestável, soube pelo seu espírito empreendedor granjear fortuna e
morreu pobre. Alguém que o conheceu e sabia avaliar, e não mostrava
inteira concordância com a sua acção administrativa, um dos homens de
mais equilibrado e lúcido juízo crítico que até hoje conhecemos,
admirámos e estimámos – o aveirense por muitos títulos ilustre que foi o saudoso Comandante Rocha e
Cunha – referiu-nos um
dia um episódio que bem o demonstra. Um marnoto ou pescador da
Beira-Mar, ao entrar pela primeira vez em casa de Manuel Firmino, por
ocasião do seu funeral,
mirando o recheio da residência do patrício eminente, fizera este
significante comentário: – «Muito rico seria o sr. conselheiro Manuel
Firmino se não devesse quase tudo quanto tinha.» Na espontânea
sinceridade de um homem rude, brotava o reconhecimento de que, dispondo
não só do mando, mas da prosperidade material, não guardara para si só
os meios de fortuna que lograra. Esquecia-se, em muitas
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ocasiões, de si e dos seus, para acudir a precisões alheias. Os
adversários apelidaram-no com irónicos intuitos, de «pai dos
pobres», mas, diria o dr. Joaquim de Melo Freitas, junto ao
seu ataúde, «mal pensavam que lhe faziam dest'arte o melhor
dos elogios.»
Esse conjunto de qualidades e defeitos, em que as virtudes a estes sobrelevavam largamente, como é óbvio, abriu-lhe um caminho de sucessivos e sólidos triunfos, em escala
sempre ascendente. Da presidência do município, onde mais
tarde voltaria, foi subindo de cada vez a posição de maior
destaque: deputado por Águeda, em 1861, e por Aveiro, em 1865, e noutras legislaturas; governador civil de Aveiro,
em 1886-1890; carta de conselho em 1897; par do reino,
em 1890. Iniciara a carreira pública, modesta e confiadamente, como mero regedor de Avanca, esse «self-mademam»
que acabou ostentando os arminhos do pariato.
Estas notas não pretendem, porém, traçar uma biografia,
mas comemorar a data da primeira publicação de um jornal,
embora este em grande medida se identifique com a acção
do seu fundador, e se entrelacem e confundam as histórias
de ambos, em muitos passos. Reatemos, pois, a evocação
do importante periódico aveirense.
Em 12 de Novembro de 1859 "O Campeão do Vouga"
mudou o título para "Campeão das Províncias". Não era de
qualquer modo um jornal novo – «não é um novo atleta da
publicidade», dizia ele ao adoptar a segunda designação –
era o mesmo denodado bissemanário, ao atingir uma expansão que excedia as regiões compreendidas no «pátrio
Vouga». – «Esta substituição não personifica vontade individual. É o
reflexo da aceitação que esta folha tem granjeado dentro e
fora do país.» Quanto ao mais, não havia qualquer mudança:
o seu orientador era Manuel Firmino, ele continuava a conduzi-lo e inspirá-lo consoante se lhe afigurava mais conveniente. Em política manteve-se inteiramente como dantes:
«O Campeão das Províncias nem é oposição nem governamental. Representa uma ideia; e afervora o empenho de ser
útil ao país, sem se prender com o modo de pensar dos
ministros uma vez que os seus actos sejam proveitosos à
causa pública». A própria numeração seguiu a do Campeão
do Vouga e o aniversário do jornal foi sempre assinalado
em 14 de Fevereiro e não a 12 de Novembro.
Em princípios de 1866, manifestando-se o periódico em
aberta hostilidade ao chefe do distrito e ao governo, Almeida
Vilhena, na melindrosa situação de empregado do governo
civil, e não concordando os seus companheiros da imprensa
que apresentasse a sua exoneração de funcionário público,
afastou-se do lugar de redactor principal. Substituiu-o o ilhavense
Manuel Tomás de Mendonça, articulista de
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41 / combate, vigoroso e agressivo que sustentara já algumas das mais ásperas
campanhas do jornal, e permanece naquele cargo pouco mais de um ano, por
não concordar com o tom de moderação adoptado na análise das medidas
governativas. Surgiu, então no cabeçalho o nome de António Augusto de
Sousa Maia, que começara tipógrafo, fora revisor, e agora, figurando
como editor responsável, participava também na redacção. Mais tarde
ligaria o seu nome como director e proprietário a "O Distrito de Aveiro"
– um dos vários jornais fundados por José Estêvão – e mantê-lo-ia
algumas dezenas de anos.
O reputado jornal aveirense foi singrando, ano após ano, criando e
engrossando a corrente dos adeptos, rumando conforme as inclinações do
seu pilar e mentor, ora pró ora contra os ventos dominantes. Em Outubro
de 1872, toma uma iniciativa: que não pode deixar de considerar-se audaciosa, lançando uma edição quinzenal para o
Brasil – onde, aliás, já
possuía numerosos assinantes – que sustentou durante cinco anos. O
propósito da edição consistia em levar «ao império do Brasil, duas vezes
em cada mês, as notícias mais importantes de Portugal e da Europa,
concorrendo quanto pudesse para estreitar cada vez mais os laços que
prendem os dois continentes». E não seria vão o contributo dado para
esse estreitamento por uma publicação que perdurou todo um lustro, e,
sendo singular na época, revelava notável rasgo e visão.
Mas importa, sobretudo, o Campeão destinado a Aveiro e ao país. Esse prosseguiu até finais do primeiro quartel deste século,
chegando a vangloriar-se de ser o decano dos jornais metropolitanos, do
mesmo modo que em dado período se apresentou como o de maior formato. E
continuou sendo bem redigido, lido com interesse por um considerável
número de leitores, a ter influência pública, ligado aos seus, mas
indesmentivelmente dedicado aos interesses locais e nacionais, e
estimado como órgão informativo, de noticiário variado e abundante.
Por morte de Manuel Firmino, em 30 de Julho de 1897, seu filho, Firmino
de Vilhena de Almeida Maia, ocupava a direcção do jornal que, tendo
militado por muitos anos no partido progressista, veio a evolucionar no
sentido da política republicana e a alinhar nas fileiras «democráticas».
O novo director, formado na escola de seu pai, mas menos propenso à
acção, mantém o jornal num elevado nível, a par dos mais conceituados da
província, com boa colaboração e uma ampla secção noticiosa na cidade e
do distrito, que lhe infundem real interesse, ainda que já entrasse em
declínio de influência.
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42 /
Firmino de Vilhena, além de inúmeros artigos e locais
que, quase sempre anónimos, deixou no bissemanário – por fim apenas
hebdomadário –, escreveu e publicou numerosas
e apreciáveis produções poéticas e algumas obras teatrais,
interessantes e bem tecidas, representadas com muito agrado por amadores
aveirenses. Entre os seus trabalhos literários,
citaremos: Crianças, poemeto a propósito das inundações
da Andaluzia, 1885; Hespanholas, versos, 1885; Sombrios,
versos, 1886; O Beijo, 1886; Perdão, drama em 3 actos, de
colaboração com J. CUNHA E COSTA, 1886; Ao desamparo,
poesia, 1892: Na mi-carême, versos, 1893; Noivos, comédia
em verso, 1894; A Fábia em Aveiro, comédia em 3 actos,
1901; Renova do Catimbau, I acto, 1904; Fraquezas do nosso
próximo, I acto em verso, 1906; Lutas de gigantes, quadras, 1907;
Na
festa da bandeira, poema, 1910; Amores no Campo,
opereta de costumes, 1910; Mulheres da Cruz Vermelha, apropósito
representativo, 1919; e Estio festivo, auto dramático em verso, 1922.
O último período do Campeão, contado a partir do falecimento de Firmino de Vilhena, a 5 de Outubro de 1922
(9),
é a fase fugaz da direcção do dr. Manuel de Vilhena e não
ultrapassa o ano seguinte. Dificuldades ocasionais não permitiram conservar aquela honrosa herança do avô e do pai
ao derradeiro director, aliás dotado de invejáveis qualidades
literárias
(10) e que, apesar de mais inclinado a outras actividades intelectuais, imprimira ainda ao jornal uma feição mais
moderna, e aparentemente de bons auspícios. Quebrado o
impulso provindo do seu animoso iniciador, mudadas as circunstâncias e determinantes, o glorioso Campeão veio a
extinguir-se com o n.º 6.879, de 26 de Janeiro de 1924. Em
Manuel Firmino o jornal era uma necessidade, uma forma
de se afirmar e de exercer a sua missão de homem público;
no dr. Manuel de Vilhena representava o encargo de manter, uma
tradição de família que, à margem das suas predilecções
jurídicas, manteria por diletantismo(11).
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43/
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O velho "Campeão das Províncias" cessou a
publicação, mas deixou um nome
vincado na imprensa nacional e, particularmente, na história do
jornalismo aveirense, onde não ficou apenas como o periódico mais
duradouro, mas, incontroversamente, como dos mais notáveis e
representativos. As figuras a que aludimos nesta despretensiosa notícia
evocativa do centenário, sobretudo o seu diligente criador,
assinalaram-se como os principais obreiros dessa honrosa e memorável
empresa. O jornal contou, porém, com colaboradores de elevada
envergadura intelectual e política, entre eles, vultos das mais
proeminentes, que muito contribuíram para a evidência que atingiu. Entre
os mais notáveis, José Estêvão e Mendes Leite, fraternos companheiros
nas lutas pelos princípios liberais, as duas maiores figuras aveirenses
da época, deram-lhe valiosa cooperação nos primeiros anos, mas as
vicissitudes da política vieram depois a inimizá-los com o períódico que
muito haviam acarinhado. Honraram-lhe também as colunas o poeta Tomás
Ribeiro; o famoso bispo de Viseu, D. António Alves Martins; o dr. Tomás
de Carvalho, insigne figura de universitário e de homem de letras; o
notável jurisconsulto Alexandre de Seabra; e os aveirenses Bento de
Magalhães, Agostinho Pinheiro, Domingos Carrancho, Francisco de Resende
Júnior, padre José Joaquim de Carvalho e Góis; o eminente jurista e
parlamentar dr. José Maria Barbosa de Magalhães; o malogrado Fernando de
Vilhena, os historiógrafos Rangel de Quadros e Marques Gomes –
ao qual
fomos na maior parte buscar
os elementos recompilados nestas páginas de evocação –
(12);
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o dr. Joaquim de Melo Freitas, e vários outros dos mais destacados filhos da luminosa cidade da ria. Deve assinalar-se
ainda o nome de D. Maria Arrábida de Vilhena de Almeida,
a já citada esposa de Manuel Firmino. Nenhum amparo e
nenhum incentivo influíram mais decisivamente para a publicação do jornal, ninguém com mais carinhoso desvelo o acompanhou nos passos incertos ou nas horas de êxito, nem lhe
apeteceu uma carreira de maiores venturas. Delicado espírito de poetisa, dispondo de uma bagagem literária pouco
vulgar na sua época, senhora que deixou uma recordação
perdurável pela distinção, bondade e infatigável solicitude,
foi a fada benfazeja do Campeão das Províncias e destinou-lhe numerosas poesias que caíram em injusto olvido.
Foi das mais profícuas a sua discreta interferência e das
mais estimáveis a sua efectiva colaboração.
Ao terminar este bosquejo da existência do Campeão
das Províncias – que, vai para meio século, mereceu ao
município ser inscrito nas designações toponímicas aveirenses – ocorre lembrar que há muito existe um busto de
Manuel Firmino, que se destinava a perpetuar a sua memória
numa praça pública. Agora que as paixões passaram e a
distância permite sopesar com imparcial objectividade todos
os aspectos da sua acção, corresponderia a menoscabo dos
valores relevantes da obra construtiva que legou a Aveiro, a
negligência e ingratidão não lhe prestar o preito que a
outros presidentes, muito prestimosos e diligentes aliás, mas
não mais arreigados no amor da sua terra nem de tão extensa projecção nacional, se dedicou.
EDUARDO CERQUEIRA |