(ao findar de uma serena
tarde de Outono,
em algures, na região de Vouga)
O
CÉU, para as bandas do Poente, parece incendiado
sobre as brumas azuladas dos montes distantes. Céu ignescente! E em meio
dessas labaredas celestes a grande roda alaranjada do incêndio do Sol
vai
descendo para o Mar, lentamente, muito lentamente...
Os olhos do nosso Espírito ficam presos a esse quadro
de maravilha, onde se ajoelha a nossa sensibilidade. E tudo o mais é
nostalgia...
Ao redor, no santuário da Natureza, as coisas têm um
colorido de tons suaves, todo doçura e mansidão, a abrandar
irreflectidos impulsos.
Dos pinheirais das gândaras, e do restolho das ceifas, e
das florzinhas anónimas dos montes andam no ar essências que rescendem,
e ouve-se, ao largo, a toada feminina de
lânguida cantiga de coração enamorado, que vem até nossos
ouvidos entrecortada, soluçante:
Ó meu amor...
. . . . . . .
por causa de ti
choram os meus olhos...
A roda alaranjada do Sol continua a descer lentamente para o Mar... e
daqui a pouco é crepúsculo.
Agora são aqueles segundos de agonia, emotivos e místicos, de reticências e interrogações, quando a Luz, muito
suave e doce, tocada de magia e oiro, e púrpura, e pérola
anda religiosamente a beijar a Terra no derradeiro momento
do astro-rei mergulhar na distância quimérica dos longes.
Ocaso...
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49 / [Vol. XVIII - N.º 69 - 1952]
Minuto de emoção, e de recolhimento, e de sonho!... Por toda a
Natureza parecem pontificar divindades mitológicas a dissertarem baixinho sobre as grandes lendas da Vida,
muito mais interessantes que as sábias verdades do
Cosmos. É então que se podem perscrutar as almas das
coisas terrenas:
As árvores rezam, olhos postos nas alturas. As folhas e as simples ervas
dos montes tremem, beijam-se, murmuram, acarinham-se. Pressentem-se
contactos amorosos e adivinham-se mansas vozes de minúsculas e humildes
vidas... cicios vindos de toda a parte. E as flores têm policrómicos e
mágicos sorrisos de tanta suavidade que lembram poesia virgiliana.
Senhor! É Outono... O findar de uma serena tarde
de Outono...
A luz é branda, e morna, e triste.
Durante esses segundos emotivos (doces mundos de
bucolismo !), além, ao fundo da largueza daqueles vales, lobrigam-se
velas brancas de barcos, e as águas dos rios, e dos
lagos, e dos esteiros andam a luzir, tranquilas, à aproximação do crepúsculo, num reino de sonhos e de sombras azuis, por entre a
folhagem verde-amarelecida dos salgueiros, e dos choupos, e dos
lamigueiros.
Vimeiros e juncos marginam planícies ribeirinhas.
Senhor! É tudo tão
calmo, e belo, e bucólico...
s homens sonham!
E nostálgico então é o voo das aves, e a melopeia das
fontes, e o murmúrio das plantas, e o silêncio das tomadias, e o sorriso
das flores, e o misticismo dos claustros... à aproximação das sombras,
polvilhadas de melancolia e geradoras de quimeras, duendes da nossa
imaginação, a crescerem e a alongarem-se, subtilmente, silenciosamente,
parecendo ter vida alada e virem de um mundo irreal de nebulosas
fantasias.
Tangem sinos. São avé-marias!
Os homens sonham, e descobrem-se... Misto de superstição, de fé, e de respeito.
As almas recolhem-se.
Os corações têm dúvidas...
Agora já não se vê a roda alaranjada do Sol. Nem o
incêndio do Céu. Nem a bruma azulada dos montes. Penumbra. Serenidade.
Poesia.
Mistérios vagos andam no ar. Ecos de saudades perdidas. Ritornelos dos longes. Reminiscências de vidas já vividas.
De mansinho, o manto cinzento do crepúsculo, leve como o arminho e suave
como a sombra, surge de todos os lados para embrulhar a Terra, que as
coisas mansas querem dormir.
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50 /
Os homens sonham!... Mas os melros, irreverentes, a estas horas
emotivas e místicas deixam o sossego dos
cômoros e das carvalheiras e lá se vão em voos rápidos,
soltando risadas cascalhantes e sarcásticas, que furam o espaço, sobressaltam os homens, e fazem sorrir os deuses.
Nos álamos esguios já cantam rouxinóis!
Nas alturas acordam então as primeiras estrelas
– vigilantes pirilampos do Céu...
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |